sábado, 10 de dezembro de 2022

José Pacheco Pereira - A cultura do papel e a democracia – os efeitos sociais do deslumbramento tecnológico

 * José Pacheco Pereira 

Opinião

O deslumbramento tecnológico impede-nos de ver os monstros que já estão aí, como seja o uso dos telemóveis e as redes sociais como instrumentos de controlo pessoal.

José Pacheco Pereira

10 de Dezembro de 2022, 0:15

Aviso a tempo por causa do tempo: não tenho nenhuma particular nostalgia pelos media mortos, pelas tecnologias analógicas ultrapassadas pelo digital, nem saudades do cheiro dos livros, nem do tacto do papel, ou coisas semelhantes. Se há qualquer coisa que o digital faça melhor do que o analógico fazia, beneficiamos todos. E, muitas vezes, é o digital que ganha essa batalha tecnológica, mas também muitas vezes não é.

O problema é que o deslumbramento tecnológico dos nossos dias faz verdadeira aquela expressão sobre deitar fora o menino juntamente com a água do banho – aliás, uma actividade ainda não digitalizada. O problema que nasce desse problema é que muitas actividades humanas com uma dimensão não digital, como seja ler (depois explico-me), olhar para o mundo que está fora dos ecrãs, relacionar-se realmente e não virtualmente, socializar-se numa dimensão humana, interagir com coisas, perceber a dimensão, distinguir a verdade da mentira, ser sabedor e culto, de novo numa dimensão humanista, conservar a memória para cem anos e não para uma década, defender a privacidade e o controlo democrático, por aí adiante, em muitos destes aspectos, o mundo digital pode e vai melhorar, mas não consegue ultrapassar um resíduo que vem de sermos nós mesmos não digitais, metade de “alma” ou “fantasma”, como diria Descartes, metade máquina, mais máquina do que pensamos, mas mesmo assim só parcialmente.

Do mesmo modo que um macaco, escrevendo à sorte numa máquina de escrever, pode produzir o Hamlet de Shakespeare, se tiver um número gigantesco de tentativas, mas mesmo assim finito, tudo o que nós somos hoje pode, de facto, vir a ser uma combinação de hardware com software. Mas falta quase tanto tempo como o do que o macaco precisa, muito mais tempo do que o nosso universo tem para existir. Por isso, convenhamos que não é um problema actual no seu máximo, mas já é no seu mínimo.

Ilustração de De Homine, de Descartes DR

Isso significa que, como se passa com muitas coisas, as modas e, acima de tudo, o que tenho chamado “o deslumbramento pelas novidades tecnológicas” (não é novo, entrámos no século XX assim e, depois de 1914, percebemos que não era bem assim) têm efeitos perversos em áreas como a educação e o ensino, a sociabilidade, o saber, a política democrática e, essencialmente, na nossa liberdade. Tudo isto tem uma razão simples – nunca nenhuma tecnologia mudou o mundo per se, nem a máquina a vapor, nem a electricidade, nem a computação, tudo coisas conhecidas muito antes de serem usadas. A chave é o seu uso social, através do modo como a sociedade as usa, e isso depende de movimentos sociais, económicos e políticos profundos, que tanto podem dar melhorias significativas à condição de vida humana, como gerar monstros.

O deslumbramento tecnológico impede-nos de ver os monstros que já estão aí, como seja o uso dos telemóveis e as redes sociais como instrumentos de controlo pessoal, criando uma sociabilidade de presentificação, desculpem o neologismo, e de exibição como afirmação competitiva de personalidade, que permite o bullying, a violação da privacidade e o controlo que a pergunta “onde é que tu estás”, que era rara num telefone antigo, personifica.

O que torna estas tecnologias perigosas é a combinação entre a preguiça, o facilitismo, o desprezo pela privacidade como valor, a arrogância da ignorância e a indiferença pelo valor da liberdade

Do mesmo modo, a chamada “big data”, cuja recolha crescente traduz a digitalização de muitos actos quotidianos, de levantar dinheiro a passar por uma portagem, deu aos governos um poder incontrolado enorme, que se acentua, ao mesmo tempo como sinal de caminho para uma autocracia, ou como exercício dessa mesma autocracia. Já uma vez disse que, se a PIDE existisse hoje, ou qualquer outra polícia política, podia exercer a sua acção sem precisar de qualquer lei especial, apenas acedendo às bases de dados, do fisco, da Uber ou das farmácias, aos metadados e às escutas, e podia prender quem combatesse contra a ditadura. Os chineses estão na vanguarda destes processos.

O que torna estas tecnologias perigosas numa democracia não são apenas os interesses económicos das grandes empresas do sector, ou a ganância de poder dos governantes, mas é a combinação entre a preguiça, o facilitismo, o desprezo pela privacidade como valor, a falsa noção de empoderamento por se ter uma voz numa rede social, as concessões ao poder político, a arrogância da ignorância, e a indiferença pelo valor da liberdade e da individualidade.

A haver um verdadeiro programa liberal, de liberdade “a sério” que não esqueça o resto da canção de Sérgio Godinho, é aqui que muitos combates deviam ser travados: para que as facturas não sejam por regra discriminadas, para que não haja inversão do ónus da prova no fisco, para que não haja acesso aos metadados pelas polícias sem controlo judicial, para que muitos dados recolhidos seja das viagens, seja de consultas médicas, sejam obrigatoriamente apagados quando percam utilidade, para que se defenda o sigilo profissional dos advogados, para que não se concentre num cartão de identidade nada mais do que a identidade, para que não haja buscas ilegais nas operações stop, e, acima de tudo, para que desde a escola ao debate público não se aceite que pseudo-argumentos de segurança e eficácia permitam ao Estado ter poderes que não deve ter numa sociedade democrática.

Vamos em seguida ver o que é que tudo isto tem que ver com a cultura do papel e a sua necessidade.

 

https://www.publico.pt/2022/12/10/opiniao/opiniao/cultura-papel-democracia-efeitos-sociais-deslumbramento-tecnologico-2030861


Sem comentários: