Opinião
O deslumbramento tecnológico impede-nos de ver os monstros que já estão aí, como seja o uso dos telemóveis e as redes sociais como instrumentos de controlo pessoal.
10 de
Dezembro de 2022, 0:15
Aviso a tempo por causa do tempo: não tenho nenhuma
particular nostalgia pelos media mortos, pelas tecnologias analógicas
ultrapassadas pelo digital, nem saudades do cheiro dos livros, nem do tacto do
papel, ou coisas semelhantes. Se há qualquer coisa que o digital faça melhor do
que o analógico fazia, beneficiamos todos. E, muitas vezes, é o digital que
ganha essa batalha tecnológica, mas também muitas vezes não é.
O problema é que o deslumbramento tecnológico dos
nossos dias faz verdadeira aquela expressão sobre deitar fora o menino
juntamente com a água do banho – aliás, uma actividade ainda não digitalizada.
O problema que nasce desse problema é que muitas actividades humanas com uma
dimensão não digital, como seja ler (depois explico-me), olhar para o mundo que
está fora dos ecrãs, relacionar-se realmente e não virtualmente, socializar-se
numa dimensão humana, interagir com coisas, perceber a dimensão, distinguir a
verdade da mentira, ser sabedor e culto, de novo numa dimensão humanista,
conservar a memória para cem anos e não para uma década, defender a privacidade
e o controlo democrático, por aí adiante, em muitos destes aspectos, o mundo
digital pode e vai melhorar, mas não consegue ultrapassar um resíduo que vem de
sermos nós mesmos não digitais, metade de “alma” ou “fantasma”, como diria
Descartes, metade máquina, mais máquina do que pensamos, mas mesmo assim só
parcialmente.
Do mesmo modo que um macaco, escrevendo à sorte numa
máquina de escrever, pode produzir o Hamlet de Shakespeare, se tiver um
número gigantesco de tentativas, mas mesmo assim finito, tudo o que nós somos
hoje pode, de facto, vir a ser uma combinação de hardware com software.
Mas falta quase tanto tempo como o do que o macaco precisa, muito mais tempo do
que o nosso universo tem para existir. Por isso, convenhamos que não é um
problema actual no seu máximo, mas já é no seu mínimo.
Ilustração
de De Homine, de Descartes DR
Isso significa que, como se passa com muitas coisas,
as modas e, acima de tudo, o que tenho chamado “o deslumbramento pelas
novidades tecnológicas” (não é novo, entrámos no século XX assim e, depois de
1914, percebemos que não era bem assim) têm efeitos perversos em áreas como a
educação e o ensino, a sociabilidade, o saber, a política democrática e,
essencialmente, na nossa liberdade. Tudo isto tem uma razão simples – nunca
nenhuma tecnologia mudou o mundo per se, nem a máquina a vapor, nem a
electricidade, nem a computação, tudo coisas conhecidas muito antes de serem
usadas. A chave é o seu uso social, através do modo como a sociedade as usa, e
isso depende de movimentos sociais, económicos e políticos profundos, que tanto
podem dar melhorias significativas à condição de vida humana, como gerar
monstros.
O deslumbramento tecnológico impede-nos de ver os
monstros que já estão aí, como seja o uso dos telemóveis e as redes sociais
como instrumentos de controlo pessoal, criando uma sociabilidade de
presentificação, desculpem o neologismo, e de exibição como afirmação
competitiva de personalidade, que permite o bullying, a violação da
privacidade e o controlo que a pergunta “onde é que tu estás”, que era rara num
telefone antigo, personifica.
O que torna
estas tecnologias perigosas é a combinação entre a preguiça, o facilitismo, o
desprezo pela privacidade como valor, a arrogância da ignorância e a
indiferença pelo valor da liberdade
Do mesmo modo, a chamada “big data”,
cuja recolha crescente traduz a digitalização de muitos actos quotidianos, de
levantar dinheiro a passar por uma portagem, deu aos governos um poder
incontrolado enorme, que se acentua, ao mesmo tempo como sinal de caminho para
uma autocracia, ou como exercício dessa mesma autocracia. Já uma vez disse que,
se a PIDE existisse hoje, ou qualquer outra polícia política, podia exercer a
sua acção sem precisar de qualquer lei especial, apenas acedendo às bases de
dados, do fisco, da Uber ou das farmácias, aos metadados e às escutas, e podia
prender quem combatesse contra a ditadura. Os chineses estão na vanguarda destes processos.
O que torna estas tecnologias perigosas numa
democracia não são apenas os interesses económicos das grandes empresas do
sector, ou a ganância de poder dos governantes, mas é a combinação entre a
preguiça, o facilitismo, o desprezo pela privacidade como valor, a falsa noção
de empoderamento por se ter uma voz numa rede social, as concessões ao poder
político, a arrogância da ignorância, e a indiferença pelo valor da liberdade e
da individualidade.
A haver um verdadeiro programa liberal, de liberdade “a sério” que não
esqueça o resto da canção de Sérgio Godinho, é aqui que muitos combates deviam
ser travados: para que as facturas não sejam por regra discriminadas, para que
não haja inversão do ónus da prova no fisco, para que não haja acesso aos
metadados pelas polícias sem controlo judicial, para que muitos dados
recolhidos seja das viagens, seja de consultas médicas, sejam obrigatoriamente
apagados quando percam utilidade, para que se defenda o sigilo profissional dos
advogados, para que não se concentre num cartão de identidade nada mais do que
a identidade, para que não haja buscas ilegais nas operações stop, e,
acima de tudo, para que desde a escola ao debate público não se aceite que
pseudo-argumentos de segurança e eficácia permitam ao Estado ter poderes que
não deve ter numa sociedade democrática.
Vamos em seguida ver o que é que tudo isto tem que ver
com a cultura do papel e a sua necessidade.
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