* José Pacheco Pereira
Opinião -
O conhecimento da história é mais rápido e profundo quando se lida com as coisas reais. - 20 de Janeiro de 2018, 6:58
No trabalho que eu e mais de uma
centena de voluntários e amigos fazemos de recolha de documentos, objectos,
imagens, recortes, etc., etc., é vulgar ouvir pessoas que desvalorizam as coisas
físicas, em detrimento das suas digitalizações. Na recente campanha eleitoral
autárquica era muito comum pedirmos aos candidatos e candidaturas os seus
materiais e receber a resposta: “Está tudo na Internet” ou no Facebook, ou em
qualquer outro suporte electrónico. E nós dizíamos: “Não, não é verdade.” E
mesmo que muita coisa estivesse, muita coisa faltava. Podia haver a imagem de outdoor,
mas não havia a fotografia da sua colocação numa praça ou rotunda, e escapavam t-shirts,
canetas, cinzeiros, caixas de medicamentos, e chapéus (a novidade nos “brindes”
da última campanha), que mostram linhas de desenvolvimento da propaganda
política e do seu público, para além de não se saber o que é que tinha sido
efectivamente publicado em papel, o que mostra que alguém deu relevância àquele
panfleto e não a outro que apareceu apenas como entrada no Facebook. Sim, é
importante ter toda a informação digitalizada disponível (ela própria mais
perecível do que se imagina, como mostra o esforço do Arquivo.pt em arquivar os
sites mortos), mas é igualmente importante ter a dimensão física, real e não
virtual, daquilo que representa a actividade política, cultural e social, que é
um retrato importante do nosso espaço público.
A seguir a dizer “Não, não está
tudo na Internet”, acrescentamos: “Não é a mesma coisa.” E este segundo
elemento é talvez até mais importante do que o primeiro. Na verdade, nós homens
(ainda) somos uma entidade física real e não virtual. O nosso mundo depende dos
nossos sentidos e do seu alcance, e o corpo humano é naturalmente imperfeito e,
mesmo com os aparelhos e instrumentos que alargam os nossos sentidos,
continuamos a ter um mundo que depende do que vemos e do que ouvimos e das
noções de espaço e tempo de cada época. Esta última afirmação remete já para a
existência de um espaço social que é uma construção histórica e cultural — não
temos a mesma noção de espaço se formos europeus ou se formos chineses, os
limites do público e do privado são distintos e “civilizacionais”, com o
“encolhimento” actual da privacidade, e com o tempo também se passa a mesma
coisa.
O relógio, o device que
todos temos acoplado ao nosso corpo, seja no pulso, seja no telemóvel, molda o
nosso tempo pelo tempo da indústria, que tão arduamente teve de ser “imposto”
às primeiras gerações de operários industriais que vinham do campo com outro
tempo, o do sol a sol. E mesmo esse tempo e esse espaço estão a sofrer nos dias
de hoje uma profunda mutação com o domínio de uma sociabilidade da contínua
presença (gerada pelo telemóvel e pelo software de mensagens) e pela
enorme aceleração do tempo, com a hegemonia do tempo rápido induzido, por
exemplo, pelos jogos de vídeo e pela prevalência por todo o lado da imagem em
movimento, com um enorme efeito de desatenção e dificuldade de pensar em tempo
lento, assim como a percepção obsessiva dos seus sinais na moda, na
publicidade, na apologia da juventude, da novidade, da rapidez, e na ausência
de tempo lento.
Voltando ao que se guarda e ao
que se arquiva, “não é a mesma coisa” o analógico e o digital, o real e o
virtual. Um exemplo que eu e os meus amigos recolectores conhecemos bem é o
efeito poderoso do “real” sobre o virtual quando se trata de fazer uma
exposição. Podemos ter um ecrã a passar filmes e imagens digitalizados, podemos
ter hologramas, mas é o objecto físico, seja uma faixa com as suas dimensões
gigantescas — não é fácil transmitir a noção do tamanho, a não ser... pelo
tamanho — ou uma pequena escultura de cerâmica, feita na Vista Alegre, com um
trabalhador esmagado pelo saco que transporta e que é uma peça de reclame dos
cimentos Liz, que atrai a atenção, essa preciosa e rara qualidade.
O “diálogo”, se assim se pode
chamar, entre um visitante e o material que é exposto é de natureza muito
diferente, porque são duas entidades reais que se confrontam. O mesmo se passa
quando restauramos um antigo copiografo e o fazemos funcionar para uma plateia
de jovens que não fazem nenhuma ideia do que era escrever à máquina num stencil,
corrigir os erros com verniz das unhas, saber que há coisas que não se podem
fazer num stencil, como seja o excesso de sublinhados que diminuem a
vida útil da folha encerada que acaba por se rasgar. Não há nenhuma virtude nem
mérito em ter de fazer as coisas assim para produzir um panfleto clandestino,
nem temos um átomo de nostalgia. Hoje é muito mais fácil, mais rápido e melhor
com um computador, um processador de texto e uma impressora a laser, mas o
conhecimento da história é mais rápido e profundo quando se lida com as coisas
reais. É o mesmo com as reconstituições de batalhas mais rigorosas, muito
comuns nos EUA, e o conhecimento de como se matava com arco e flecha, ou a
vantagem das formações militares gregas antigas, e tudo isso depende e muito da
dimensão física das coisas e da sua percepção.
E voltando ao “está tudo na
Internet”, dá-se um efeito perverso de distorção da memória. Primeiro, por
muita coisa que já esteja na Internet, a esmagadora maioria não está. Uma das
pragas, por exemplo, do jornalismo dos nossos dias é a preguiçosa utilização
dos motores de busca, ou, pior ainda, da Wikipédia, para “despachar” um artigo,
deixando de fora informação preciosa porque está no arquivo de recortes do
jornal, mas não em linha. Uma das coisas em que insistimos em preservar, e que
“salvamos”, são os arquivos de recortes que são muito comummente deitados ao
lixo. Esta redução da memória àquilo que está em linha, e mesmo assim muitas
vezes mal procurado, acelera a dominância de uma memória colectiva muito curta,
escassa e pobre.
E mais uma vez pode-se
acrescentar: e “também não é a mesma coisa”. “Folhear” continua a ser um método
mais eficaz de trabalhar com documentos, como colecções de recortes, por
exemplo, em que o tempo humano da atenção e a facilidade de andar para trás e
para a frente, de forma “fuzzy”, é muito eficaz para encontrarmos as
coisas que não sabíamos que existiam. “Folhear” não substitui “procurar”, em
que os instrumentos digitais são muito mais eficazes para informação precisa,
mas adequa-se mais a investigar, ou sequer a conhecer um meio ou um contexto,
que a “procura” não dá.
As ameaças à memória, a
destruição acelerada dos sinais físicos da história (considera-se apenas o
património monumental e mesmo assim mal), a pseudomodernidade que reduz tudo o
que “existe” ao que está acessível a um motor de busca são uma praga dos nossos
dias. Não é um resultado de qualquer evolução tecnológica inevitável, é um
processo social e cultural que vai a par com a ascensão da nova ignorância, o
predomínio da superficialidade, a crise da atenção, a adolescente obsessão do
“já” e a substituição da conversação pela emissão de uma forma de apitos que
dizem “estou aqui”. Eu e os meus amigos recolectores combatemos tudo isto,
usando como bandeira (também nós...) o dito que a “preservação da memória do
passado é uma arma da democracia do presente”. E é. Ámen.
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