domingo, 11 de dezembro de 2022

Carlos Coutinho - Gratos e ingratos

* Carlos Coutinho

   VERIFICO mais uma vez que estes exercícios de rememoração têm quase sempre um problema sério. Agora é o Afonso de Albuquerque a reclamar de mim mais um bocadinho de prosa. Vamos a isso, que também há quem goste.

   Segundo uma tradição que remonta ao século XVII, Afonso de Albuquerque, um fidalgote de segunda categoria, nasceu em Alhandra, à beira-Tejo, na Quinta do Paraíso. Mas uma historiadora incansável, Alexandra Pelúcia, apurou que essa quinta, na segunda metade do século XV, estava na posse dos condes de Penela, pelo que é mais provável que o Afonsito tenha nascido na sede do património de referência de seus ascendentes paternos ou maternos, que se situava, respetivamente, em Vila Verde dos Francos e em Atouguia da Baleia, perto de Peniche, onde a pirataria atacava com frequência, 

   Quanto à data de nascimento, segundo o próprio, deverá ter ocorrido cerca de 1461 ou 62, mas alguns historiadores acham que terá sido em dezembro de 1452 ou 53. Era o segundo dos quatro filhos de Gonçalo de Albuquerque, 3.º Senhor de Vila Verde dos Francos, de Leonor de Meneses, filha de Álvaro Gonçalves de Ataíde 1.º Conde de Atouguia, e de Guiomar de Castro. 

   Portanto Afonso, através de seu pai, que desempenhava um importante cargo na corte, descendia por via natural da família real portuguesa. Foi educado em Matemática e Latim clássico na corte de D. Afonso V, onde cresceu e travou amizade com príncipe D. João, futuro rei centralista muito dado a jogos de morte requintada. Por curiosidade sua, Afonso aprendeu táticas de guerra baseadas no terror e foi exímio a aplicá-las. Encarregado que fora de conquistar praças ribeirinhas e impor o domínio português no Índico.

   Abreviando, falhado o ataque a Calecute, Afonso de Albuquerque formou uma poderosa armada, reunindo 23 naus e 1 200 homens. Relatos contemporâneos afirmam que pretendia combater a frota mameluca egípcia no Mar Vermelho ou regressar a Ormuz. ~

   Contudo, informado por Timoja, um corsário hindu ao serviço do Reino de Bisnaga, de que seria mais fácil encontrá-la em Goa, onde se havia refugiado após a Batalha de Diu, dada a doença do sultão Hidalcão e a guerra entre os sultanatos desavindos do Decão, investiu de surpresa na captura de Goa, que pertencia ao sultanato de Bijapur e era o melhor porto comercial da região, além de entreposto de cavalos árabes. 

   Falhou, mas, no dia 25 de novembro, Albuquerque reapareceu em Goa com uma frota totalmente renovada e Diogo Mendes de Vasconcelos, a seu lado com os reforços de Malaca e 300 malabaris. Em menos de um dia tirou Goa a Ismail Adil Shah e seus aliados otomanos, que se renderam a 10 de dezembro.

   Estima-se que 6 000 dos 9 000 defensores muçulmanos da cidade morreram, quer na violenta batalha nas ruas ou afogados, quando tentavam escapar à ferocidade dos vencedores. Goa tornou-se o centro da presença portuguesa, com a conquista a desencadear o respeito dos reinos vizinhos: o sultão de Guzerate e o samorim de Calecute enviaram embaixadas, oferecendo alianças, concessões e locais para fortificar. 

   Afonso de Albuquerque servira dez anos no Norte de África, onde adquiriu experiência militar: em 1471 acompanhou D. Afonso V nas conquistas de Tânger, Anafé e Arzila, onde passou alguns anos como oficial na guarnição. Em 1476, acompanhou o príncipe D. João nas guerras com Castela, tendo participado na Batalha de Toro. Em 1481, quando o príncipe D. João subiu ao trono como D. João II, Albuquerque regressou a Portugal e foi nomeado seu estribeiro-mor. 

   Quando o novo rei,  D. Manuel I, ascendeu ao trono, mostrou desconfiança relativamente a Afonso de Albuquerque, que era íntimo do temido D. João II e 17 anos mais velho.

   Em 6 de Abril de 1503, já numa idade madura e com uma longa carreira militar, Afonso de Albuquerque foi enviado na sua primeira expedição à Índia, regressando em julho de 1504 «mais cheio de glórias que de despojos», mas foi bem recebido por D. Manuel. 

 A sua conduta, por vezes imprudente e tirânica, e a suspeita de que pretendia passar de vice-rei a rei levou D. Manuel a substituí-lo pelo seu arqui-inimigo, Lopo Soares de Albergaria. 

   Afonso de Albuquerque, desgostoso, meteu-se ao mar para regressar a Portugal, mas morreu durante a viagem, a 16 de dezembro de 1515. É-lhe atribuída a frase de "Mal com el-rei por amor dos homens, mal com os homens por amor de el-rei.", que terá exclamado ao saber da sua substituição.
 
   Pouco antes de morrer, em resposta a uma carta do rei admoestando-o pelos gastos e conquistas excessivas, e por não se ter dedicado ao objetivo inicial, escreveu uma carta ao rei em tom digno e afetuoso, assumindo a sua conduta e pedindo para o seu filho natural as honras e recompensas que eram justamente devidas a si próprio:

   "Senhor.  Eu nam escrevo a vos alteza per minha mão, porque, quando esta faço, tenho muito grande saluço, que he sinal de morrer: eu, senhor, deixo quá ese filho per minha memória, a que deixo toda minha fazemda, que he assaz de pouca, mas deixo lhe a obrigaçam de todos meus seruiços, que he mui grande: as cousas da india ellas falarám por mim e por elle: deixo a india com as principaes cabeças tomadas em voso poder, sem nela ficar outra pendença senam cerrar se e mui bem a porta do estreito; isto he o que me vosa alteza encomendou: eu, senhor, vos dey sempre por comselho, pera segurar de lá india, irdes vos tirando de despesas: peçoa vos alteza por mercee que se lembre de tudo isto, e que me faça meu filho grande, e lhe dè toda satisfaçam de meu seruiço: todas minhas confianças pus nas mãs de vos alteza e da senhora Rainha, a elles m emcomemdo, que façam minhas cousas grandes, pois acabo em cousas de voso seruiço, e por elles vollo tenho merecido; e as minhas tenças, as quaes comprey pela maior parte, como vossa alteza sabe, beijar lh ey as mãos pollas em meu filho: escrita no mar a 6 dias de dezembro de 1515. Afomso dalboquerque  carta de Afonso de Albuqerque ao rei D. Manuel.

   O rei Venturoso, reconhecendo demasiado tarde a sua fidelidade, procurou reparar a injustiça com que Afonso fora tratado, cumulando de honras o seu filho natural Brás de Albuquerque e cumprindo assim o último pedido do defunto.

2022 12 11

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