.segunda-feira, 26 de dezembro
de 2022
Martinho
Júnior, Luanda
“REMEMBER” HAITI!
Em África fica-se com a sensação
que jamais se foi tão longe quanto o necessário para resgatar toda a humanidade
não só dum passado genocida como de um presente de domínio hegemónico que se
nutre dos modos e dos tempos desse genocídio, da escravatura sua contemporânea,
do colonialismo, do “apartheid” e de todas as sequelas desse longo processo de
degradação ética e moral de muito mais de 5 séculos!
Explicá-lo em termos dialéticos é
um processo fecundo que está por muito averiguar e aprofundar, porque muitas
convenções ditadas por longos processos de aculturação à “civilização
ocidental” têm sido mantidas, garantindo a formatação mental dos africanos,
limitando-os, confinando-os, enfim, subjugando-os!...
Um dos marcos a considerar é
incontornavelmente a questão do Haiti que África desconhece, em muitos casos
recusando-se a abordá-la, de tão inibida que está pelas convenções
“ocidentais”, conforme se pode verificar, por exemplo, por via da agenda dos
países de África, Caraíbas e Pacífico. “ACP”…
África recusa-se basicamente a
debruçar-se sobre a revolução dos escravos de há mais de 200 anos no Haiti, a
revolução que marcou a ignição das lutas armadas de libertação desde logo na
América… e recusa-se a debruçar-se também porque todo o processo libertário do
Haiti foi propositadamente inquinado não só pelo poder das potências
colonizadoras (e neocolonizadoras) desde então, mas porque dando sequência à
IIª Guerra Mundial, a hegemonia unipolar sustentada pelo exercício
anglo-saxónico cada vez mais a partir dos Estados Unidos, multiplicou as
ingerências e as manipulações sobre as pequenas ilhas das Caraíbas desde a
inércia da sua própria expansão, intoxicando premeditadamente todo o
conhecimento e compreensão histórica e antropológica que pudesse haver sobre a
revolução haitiana e sobre o que se foi abatendo sobre o Haiti!
A luta armada de libertação em
África desse modo confinou-se às convenções “ocidentais” não só temporalmente
(historicamente), mas também antropológica, sociológica, psicológica e
sobretudo ideologicamente!...
Sobretudo ideologicamente por que
a história da escravatura dos afrodescendentes na América e a ignição
revolucionária que constituiu a revolução dos escravos do Haiti, ou foram
amputadas da memória de África, ou sofreram manipulações de interpretação por
parte dos interesses de domínio que culminaram no império da hegemonia
unipolar!
Figuras como
Franz Fanon, que estudou a psicologia do opressor e do oprimido (“Os condenados
da Terra”) e o estado latente de ruptura do seu inter relacionamento, ou de
Amílcar Cabral que se propunha ao “suicídio de classe” para fazer emergir a
figura do combatente da luta armada de libertação em África, são nesse aspecto
algumas das excepções que merecem a referência e a honra próprias dum patamar
de cultura de que África se alheou!
As suas abordagens sendo
excepção, não tiveram suficiente continuidade, nem mereceram a preocupação no
sentido de se aprofundar o conhecimento histórico e antropológico que mergulha
nos fenómenos do genocídio, da escravatura e do próprio colonialismo inerentes
aos sucessivos expedientes de domínio sobre o Sul Global!
Assim o conceito de ruptura ficou
mutilado, confinando-se às premissas marxistas-leninistas que só surgiram com a
introdução da máquina ao invés da força braçal do trabalho escravo, com o
advento da Revolução Industrial com expressão colonial na Conferência de
Berlim!
Essa mutilação esteve também na
base da sobrevalorização dos conceitos da “Guerra Fria” estimulados acima de
tudo pelo processo de domínio que conduziu ao império da hegemonia unipolar,
acompanhado no seu reverso pela subvalorização das capacidades de
Não-Alinhamento, apesar da Conferência de Bandung e do seu dramático espectro
no Sul Global (lembre-se o que aconteceu em relação à Indonésia e à Jugoslávia,
a título de exemplo).
A carga energética e mental para
se abordar o que ao imperialismo diz respeito, no Sul Global deve ser anterior
à Revolução Industrial!
É a revolução cubana primeiro,
quando o Comandante Fidel assumiu a necessidade de se pagar a dívida ética e
moral para com África, ou a revolução bolivariana, quando desenterra do olvido
a gesta do prócer da independência Lourenço Chirindo, antecessor de Simon
Bolivar, que se aproximam da interpretação mais justa e mais saudável das
profundas (e profícuas) raízes da luta armada de libertação no Sul Global, que
remontam a épocas antes da revolução industrial!
Fazem-no enquanto nações, estados
e povos caribenhos também afrodescendentes que revelam, além de José Marti e de
Simon Bolivar, a gesta do Haiti e respeitam os imensos ensinamentos que há a
colher dela!
A legitimidade sobre a ruptura
portanto não se consumou no patamar saudável em benefício de toda a humanidade,
nem no espaço, nem no tempo, pelo contrário: a necessidade de ruptura nestes
tempos decisivos de mudança de paradigma, recrudesceu, dado o bárbaro carácter
da hegemonia unipolar e o peso de seus tentáculos, vassalagens e
“emparceiramentos” contra natura, por África adentro!
Ao contrário das nações e povos
autóctones da América, os africanos perderam-se em convencionados labirintos
que não tocaram suas próprias raízes desde os críticos aspectos transatlânticos
de sua escravatura!
OS AFRICANOS ESTÃO LIMITADOS E
CONFUNDIDOS NA VISÃO DE SI PRÓPRIOS E DOS OUTROS!
A base da percepção dos africanos
sobre si próprios e sobre os outros, estando convencionada, limitada, confinada
e confundida (fazendo-se deliberadamente uso dos chavões do interesse e
conveniência dos processos de domínio), não só rejeita a perceção sobre o
Haiti, mas inibe a percepção sobre a história contemporânea do Haiti, tal como
o estado neocolonial em que os povos se encontram!
Em África quem ousa estudar o
Haiti e as lições que se desprendem de sua história?
Esse estado de prostração por
inibição, é já um estado mental propício ao neocolonialismo e evidencia-se à
medida que se vão esclarecendo os processos de domínio hegemónico unipolar
eminentemente anglo-saxónicos, processos que lançam mão de seu poder “hard
power” como do seu poder “soft power”!
O poder instrumentalizado do
Pentágono revela-nos precisamente isso e é assim que o Comando África contempla
“hard power” e “soft power”, ou seja, um misto de exercício militar confundido
com os parâmetros de inteligência “civis”…
São esses poderes que criaram e
recriaram chavões generalistas impeditivos de apreciação consciente rebelde,
capaz de levar por diante a legítima ruptura, como o termo “Guerra Fria”, ou
ainda o conceito sobre “esquerda” e “direita”, quando o verdadeiro conceito que
conta é a luta de libertação quando segue a lógica com sentido de vida… ou a
sua inexistência!
O domínio da hegemonia unipolar
condiciona ainda mais os conceitos e as interpretações dos africanos, como se a
ruptura fosse um processo não mais vigente, ultrapassado no espaço e no tempo,
subvertendo desse modo as ideologias que nutrem o poder em África, a ponto de
procurar separar classes dirigentes de todos os outros substractos sociais e
prejudicando qualquer veleidade de gerar, sob os escombros da Conferência de
Berlim e onde quer que seja, desde logo “um só povo e uma só nação”!
As amarras mentais que prendem os
africanos às convenções “ocidentais” foram-se institucionalizando e por isso
África tem tantas dificuldades em sair do pântano duma economia ultraperiférica
tal qual hoje se encontra!
Com a mudança de paradigma em
curso, essa confusão lançada sobre os africanos que estão longe de consumar a
ruptura porque ideologicamente confinados, limitados e pressionados, torna-se
mais exposta, daí, por exemplo, estarem-se a condenar de forma tão
convencionada, os golpes de estado contra os expedientes da “FrançAfrique”,
quando eles se tornaram mais-que-legítimos nos termos da ruptura neocolonial
que está por fazer!
A confusão contudo vai mais longe
e revela-se nas apreciações que se fazem em relação aos outros, por vezes
nutridas de intestinos contraditórios!
O próprio fenómeno de luta armada
de libertação está assim em cheque, como está em cheque até onde ele continua a
ser legítimo!
As interpretações sobre a
libertação da Europa demonstram esse dilema que repesca a “Guerra Fria” e os
conceitos inculcados de “esquerda” e “direita” por via da confusão que não leva
em conta subjacentes contraditórios, considerando por exemplo que o “apartheid”
sul-africano está em pé de igualdade com as iniciativas em curso por parte da
Federação Russa, integradas num amplo processo de mudança de paradigma!
Apagar a necessidade de ir mais
longe na legitimidade da luta de libertação, é isso que nos traz o capitalismo
neoliberal, porque é ele que hoje introduz neocolonialismo!
Há uma crise existencialista em
África: “to be or not to be”?!...
ALINHAR COM AS REGRAS DA
HEGEMONIA UNIPOLAR?
No seguimento da Cimeira Estados
Unidos – África (retiramos propositadamente o termo América), o Presidente João
Manuel Gonçalves Lourenço deu uma entrevista à “Voice of America”, uma entidade
conhecida como um instrumento “soft power” da Central Intelligence Agency, CIA.
Na entrevista ao “senhor Angola”
da “VOA”, o veterano João Santa Rita e no que diz respeito ao choque que se faz
sentir no campo de batalha da Ucrânia, num momento em que os emergentes vão
marcando a mudança de paradigma desmascarando as pretensões da “civilização
ocidental” regida pelos anglo-saxónicos “straussianos”, o argumento para o voto
favorável à Ucrânia “desalinha” Angola em relação à percepção histórica dum
contencioso que já leva séculos!...
“Desalinha” também Angola da
lógica com sentido de vida!
O “Grande Jogo” da tensão entre a
Rússia e o Império Britânico, sintomaticamente ocorre desde o tempo da
revolução dos escravos no Haiti, advindo ambos os fenómenos históricos do
início do século XIX…
… No imenso continente
Asiático-Europeu (assim se deve considerar com os olhos do Sul Global ao invés
do apelativo conceito que se expressa como “continente Euroasiático”), tem tido
a “ilha” interior do Afeganistão a charneira do impasse, tal como o Haiti nas
Caraíbas, se levarmos em conta Cuba versus Estados Unidos, ou
Venezuela Bolivariana versus Estados Unidos…
De facto na Ásia-Europa o choque
entre uma potência marítima como o foi o Reino Unido (agora o seu legado são os
Estados Unidos) e uma potência transcontinental como a Federação Russa e com os
olhos na China, não pode ficar sem profunda referência face aos contenciosos
actuais que nas Caraíbas se distendem também sobre o impasse do Haiti!
A ruptura que há a fazer sendo
contra o neocolonialismo, é pela libertação das nações, dos estados e dos povos
do Sul Global, ou seja a libertação justa de toda a humanidade que só tem uma
saída: lógica com sentido de vida!
As opções a favor da libertação
de toda a humanidade do fardo que constitui a hegemonia unipolar, ganham hoje
uma revigorada expressão e impulso, porque é a opção ética, moral e cívica que
deve nutrir todo o Sul Global como antes a revolução dos escravos no Haiti, ou
a luta armada de libertação em África!
Compreende-se desse modo a tensão
em que se encontra a Europa e a pressão no sentido de sua libertação pois a
Europa, além de ocupada militarmente, tem sido instrumentalizada enquanto
vassala, a ponto de estar à beira de se tornar de novo “carne para canhão”!
O “desalinhamento contra natura”
de Angola começou a ser feito alinhando-a de facto com a opção marítima dos
piratas e corsários de sempre, a perversa versão dos acontecimentos segundo a
trilha de Sua Majestade Britânica, contrariando a coerência de 47 anos de
Não-Alinhamento que impôs imensos sacrifícios sim, mas manteve, a nível dos
relacionamentos internacionais, o “alto facho levado aceso” do MPLA sobre todas
as patrióticas cabeças dos que se têm identificado com o povo angolano e com
todos os povos africanos, particularmente os da África Austral e Central, ainda
que no alheamento das lições emanadas desde a saga histórica do Haiti.
A OPÇÃO PELA HEGEMONIA, ESTÁ À
BEIRA DE SER UMA OPÇÃO PELA ESPADA DOS QUE ESTÃO DESTINADOS A “CARNE PARA
CANHÃO”!
O “desalinhamento contra natura”
da Angola, ao invés de seguir a cultura do Não-Alinhamento recomendável para
África (que continua a ser uma ultraperiferia económica, pasto dos artifícios
coloniais e neocoloniais advenientes de antes dos tempos da Conferência de
Berlim conforme comprova o alheamento sobre a revolução dos escravos do Haiti
enquanto ignição de outras libertárias revoluções), vai com cada vez mais
evidências no sentido da barbárie, desde logo ao utilizar-se um falso pretexto,
relativo às nações, aos estados, aos seus territórios e aos povos!
Nenhum outro continente teve uma
arquitectura feita sob tão violenta opressão como África sujeita ao
esquadrinhar da Conferência de Berlim pelas potências coloniais e neocoloniais
e por isso a noção de território só pode ser distinta quando comparada à
questão de estado, de nação, de território e de povo noutros continentes…
Nenhum outro continente esteve
sujeito a algo similar à Conferência de Berlim, numa altura em que ficava
comprovado desde o Haiti que a liberdade para os africanos, sendo legítima,
afinal só podia ser conseguida com muito sangue, suor e lágrimas e um processo
de ruptura que está longe de ter terminado!
Tanto pior quando se recorda o
“bastião branco” da África Austral, alinhavado desde o Le Cercle pelo Exercício
Alcora e o seu prolongado sucedâneo enquanto houve “apartheid”, tal como suas
sequelas!
Impossível, quando se tem
presente esses ingredientes que continuam a fazer parte dos expedientes
dominantes, “baralhar as cartas e dar de novo” num jogo híper viciado!
A ética, a moral e a componente
cívica do “apartheid” era barbárie, enquanto o exercício dos emergentes
multilaterais, tanto na Ucrânia quanto em Taiwan, está de facto no mesmo pé de
legitimidade dos que levaram a cabo a expressão armada da luta de libertação no
Haiti, na América Latina, na Ásia e em África, neste caso de Argel ao Cabo, com
uma vantagem: buscam a paz e a harmonia por via da cooperação, da
solidariedade, do comércio e da integração económica e financeira em novos
moldes, ao invés de recorrer às armas, ao genocídio, ao caos, ao terrorismo, à
pirataria e à desagregação!
De facto o regime implantado em
Kiev por via do golpe de estado de EuroMaidan, tem tudo a ver com neonazismo e
suas práticas, repescando as redes “stay behind” de Stepan Bandera conformes,
pela sua natureza, à essência do “apartheid” do bastião branco na África
Austral, ou à essência da intervenção napoleónica no Haiti, que a revolução dos
escravos derrotou!
Na Europa tanto pior quando se
recorda a devassa da União Soviética, ou o estilhaçar da Jugoslávia, porque a
hegemonia agarra-se ao caos étnico e religioso em pleno século XXI, para levar
avante os seus propósitos de confundir, dividir, desagregar, a partir dos
oceanos para dentro dos continentes, tal como o faz em suas práticas de
conspiração o Pentágono e a instrumentalização da Organização do Tratado do
Atlântico Norte que tenta juntar os cacos sem qualquer responsabilidade ou
coerência democrática!
África deve-se antecipar em
relação à Europa, no que diz respeito à ruptura com as convenções “ocidentais”
que condicionam até à asfixia!
Estudar a história do Haiti,
torna-se obrigatório para África saber sair do pântano que os da hegemonia
unipolar a tentam colocar, apesar dos esforços dos que protagonizam a mudança
de paradigma!
Círculo 4F, Martinho
Júnior, 24 de Dezembro de 2022
Imagem:
Recuperação de “Reconstrução”,
quadro dum pintor haitiano que expõe na tela a continuada aspiração de
liberdade dos descendentes dos escravos na Hispañiola –
https://paginaglobal.blogspot.com/2019/03/estado-do-mundo.html; https://frenteantiimperialista.org/blog/2019/03/11/estado-do-mundo/.
.
Alguns textos de suporte:
. Grande entrevista: João
Lourenço fala sobre a aproximação aos EUA e mandatos presidenciais – https://www.voaportugues.com/a/grande-entrevista-jo%C3%A3o-louren%C3%A7o-fala-sobre-aproxima%C3%A7%C3%A3o-com-os-eua-e-sobre-os-seus-mandatos-presidenciais/6884470.html;
. Grande Jogo – https://en.wikipedia.org/wiki/Great_Game;
. Do material secreto do 5º
Departamento do GUGB do NKVD da URSS – sobre a participação de estadistas
americanos e britânicos em operações financeitras… – https://www.prlib.ru/item/1295744;
. África, Caraíbas e Pacífico
– https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/africa-caraibas-e-pacifico/.
Alguns textos de Martinho
Júnior:
. A aposta pela vida – http://paginaglobal.blogspot.com/2014/02/haiti-aposta-pela-vida.html;
. Um país invisível – http://paginaglobal.blogspot.com/2014/02/haiti-um-pais-invisivel.html;
. As muitas lições do Haiti
– http://paginaglobal.blogspot.com/2011/05/as-muitas-licoes-do-haiti.html;
. Estado do mundo –
https://paginaglobal.blogspot.com/2019/03/estado-do-mundo.html; https://frenteantiimperialista.org/blog/2019/03/11/estado-do-mundo/.
à(s) dezembro 26, 2022
Enviar a mensagem por emailDê a sua opinião!Partilhar no TwitterPartilhar no FacebookPartilhar no Pinterest
https://paginaglobal.blogspot.com/2022/12/inclinacao-contra-natura-martinho-junior.html
Sem comentários:
Enviar um comentário