DANIEL OLIVEIRA
O império de um troll
Uma
ponte com mais de 140 anos, monumento nacional dos Países Baixos que sobreviveu
à II Guerra Mundial, esteve a dias de ser desmontada para abrir passagem ao
gigantesco iate de Jeff Bezos. Era a única passagem entre o estaleiro onde foi
construída a embarcação de 460 milhões de dólares, com 127 metros de
comprimento e três mastros, e o mar aberto. O clamor popular conseguiu reverter
a decisão, mas o episódio é sintomático dos excessos da concentração de
riqueza. Comprar uma ilha é muito anos 90. Agora, depois de a pandemia ter
duplicado a riqueza dos principais milionários, vai-se ao espaço, constroem-se
iates do tamanho de navios de guerra e estoira-se um valor superior à riqueza
produzida anualmente na Letónia para comprar uma pequena rede social.
Sim, mesmo sendo a maior aquisição de uma empresa por um
indivíduo, o Twitter não é o Facebook ou o Instagram. Tanto em número de
utilizadores como no modelo de financiamento, é uma pequena rede. Tem menos
alcance do que a sua congénere chinesa, o Weibo, e cerca de metade do Snapchat.
Mas é lá que estão os mais influentes, e o seu modelo favorece mensagens
curtas, a um ritmo frenético, com um grande impacto noticioso. Com a aquisição,
Elon Musk consegue condicionar a política. Este é um negócio de poder, e o interesse
da direita americana é compreensível.
FOTO DADO RUVIC/REUTERS
Musk promete que o “jornalismo-cidadão” tornará o Twitter
numa fonte credível de informação. Só que, ao contrário de carros e foguetes
espaciais, gerir uma rede social é gerir uma complexa teia de interações
humanas. A redução dos ténues mecanismos de moderação e o regresso de milhares
de contas que disseminavam fake news fizeram disparar o conteúdo abusivo e
antissemita, exponenciado pelos despedimentos em massa e pela degradação das
condições de trabalho na empresa. Com o ambiente mais tóxico, há uma deserção
de anunciantes. A forma caótica como tem gerido a empresa, dos planos
espetacularmente falhados para garantir uma subscrição mensal ou atrasos no
pagamento da renda da sede, revelam a versão gourmet do princípio de Peter.
Para distrair da incompetência e da censura, Elon Musk lançou um inquérito aos
utilizadores para saber se queriam que deixasse de ser o CEO. O “sim” venceu, o
que é indiferente, porque há muito tinha anunciado que não tencionava ficar.
Mas a comunicação social mordeu o isco, como sempre fez com Trump.
A apologia do “jornalismo-cidadão” esconde a dificuldade de
Musk lidar com o escrutínio do jornalismo profissional. Há umas semanas,
divulgou um trabalho de um freelancer que correspondia a documentos vazados
pela sua empresa sobre a forma como durante 48 horas funcionários do Twitter
tinham impedido, na administração anterior, a propagação de uma notícia do
tabloide “New York Post” sobre o suposto conteúdo de um portátil do filho de
Biden. No dia seguinte à publicação dos “Twitter Files”, Musk condenou o
silêncio dos principais jornais. Mesmo correspondendo a acusações graves que
confirmam o risco da concentração de poder e a falta de transparência na gestão
destas redes, o “New York Times” revelou que foi ele que se negou a dar-lhes essa
informação, preferindo disponibilizá-la a um jornalista que aceitasse fazer o
trabalho sem acesso aos documentos na íntegra ou a certeza de que não teriam
sido editados.
No meio de uma gestão caótica, Musk passou de intransigente
defensor da liberdade de expressão à suspensão de contas de jornalistas e à
proibição de links para outras plataformas. Quando os bilionários falam de
liberdade, defendam as democracias. Só a sua própria liberdade, sem limites, os
preocupa
Num país polarizado e com uma longa história de violência
política, Musk espalha as teorias de conspiração que Trump adorava com o mesmo
efeito pavloviano nas massas que o veneram: o antigo responsável pela política
de moderação no Twitter, Yoel Roth, teve de mudar de casa depois de o multimilionário
o lançar às feras. E veremos se Anthony Fauci, antigo responsável pelo combate
à covid, que também tem sido seu alvo, não terá de lhe seguir o exemplo. Musk é
tão perigoso como Trump para a democracia. Mas a uma escala global.
Depois de chamar “marionetas sem vergonha” aos reguladores
que apontam o dedo às suas práticas empresariais, Musk suspendeu contas de meia
dúzia de jornalistas que há vários anos escreviam sobre ele (algumas foram
reativadas), inventando uma regra sobre a publicação de links para a conta que
indica os voos e destino do seu jato privado. Pelo meio, anunciou uma
funcionalidade que permite, a quem pague oito dólares por mês, pontuar as
publicações no Twitter, reduzindo o alcance de alguns utilizadores, o que
diminuirá a presença de correntes que lhe desagradam, transformando a rede numa
caixa de ressonância de quem pensa como ele, que são os que vão pagar a
mensalidade. Em poucas semanas, Musk passou de intransigente defensor da
liberdade de expressão para a suspensão de jornalistas, proibição de links para
outras plataformas e entrega de poder a quem mais paga para silenciar opiniões
minoritárias na rede (não na sociedade). Sabemos que a concentração de poder
político leva à tirania. Passa-se o mesmo com o poder económico. Parafraseando
Robert Reich, que disse que “quando os bilionários falam de liberdade, vigiem
as vossas carteiras”, diria: quando os bilionários falam de liberdade, defendam
as democracias. Porque só a sua própria liberdade, sem limites, os preocupa.
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https://expresso.pt/opiniao/2022-12-23-O-imperio-de-um-troll-a4916a72
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