segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Henrique Raposo - Não, não estamos em 1967


* Henrique Raposo

OPINIÃO - 

Em 1967, uma tempestade idêntica à de quinta-feira passada matou 700 pessoas. Ou melhor, o regime assumiu 700 mortos, mas esse número peca por escasso. Aqueles migrantes, portugueses e clandestinos, moravam em barracas ao lado de ribeiras como a de Odivelas e de Frielas e foram levados pelas enxurradas. Centenas de corpos ficaram espalhados nas ruas, entalados entre carros, até na copa das árvores. Reparem: as pessoas subiram às árvores mas morreram afogadas na mesma. Na quinta-feira passada, uma chuvada idêntica só matou uma pessoa. Não digam que Portugal não muda ou que Portugal não evolui, porque isso é errado e sobretudo injusto

Éuma das coisas que mais me irrita: quando alguma coisa negativa rebenta em Portugal (um caso de corrupção ou uma tragédia natural), a atitude de boa parte dos portugueses é esta: “isto só neste país”, “pá, só neste país”. É uma espécie de excepcionalismo ao contrário. O excepcionalismo americano ou francês leva os respetivos indígenas a pensar que as coisas boas só podem acontecer nos EUA ou França. O excepcionalismo português assume o contrário: as coisas más só acontecem em Portugal e “lá fora” só há coisas boas. É como se os outros países não tivessem corrupção, pobreza ou cheias.

Este mecanismo mental não é um pormenor: é um traço cultural que dificulta duas coisas. Primeira: entorpece o debate sobre as reformas do país. Se o país é sempre a choldra, se é geneticamente assim, inferior, decadente, ineficaz, então para quê o esforço, então para quê mudar seja o que for? Este baixo queirosianismo iliba o português de um compromisso sério com a melhoria da sua comunidade.

O segundo efeito está, portanto, à vista: o desapego permanente entre o português e Portugal, que só é interrompido nos picos emocionais do futebol. Em Portugal, parece que só há um superpatriotismo, aliás, um nacionalismo agressivo e místico na altura dos jogos da seleção; no dia a dia, porém, na resolução dos problemas reais do país, esse nacionalismo esvazia-se até à indiferença e as pessoas caem no cinismo do “isto já deu o que tinha a dar”, “este país não muda”. Muda, muda. E muitas vezes muda para melhor.

Em 1967, uma tempestade idêntica à de quinta-feira passada matou 700 pessoas. Ou melhor, o regime assumiu 700 mortos, mas esse número peca por escasso. Aqueles migrantes, portugueses e clandestinos, moravam em barracas ao lado de ribeiras como a de Odivelas e de Frielas e foram levados pelas enxurradas. Centenas de corpos ficaram espalhados nas ruas, entalados entre carros, até na copa das árvores. Reparem: as pessoas subiram às árvores mas morreram afogadas na mesma. Na quinta-feira passada, uma chuvada idêntica só matou uma pessoa. Não digam que Portugal não muda ou que Portugal não evolui, porque isso é errado e sobretudo injusto.

O baixo queirosianismo do “isto é uma choldra” ou “isto já deu o que tinha a dar” revela preguiça e alguma ingratidão por aquilo que se fez no último meio século em Portugal e, repito, iliba as pessoas de uma ação concreta sobre problemas concretos.

12 DEZEMBRO 2022 

https://expresso.pt/opiniao/2022-12-12-Nao-nao-estamos-em-1967-e4d69841


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