quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Entrevista a Richard Zimler – Revista Visão 2020 12 13

 IDEIAS

13.12.2020 às 19h00

SÍLVIA SOUTO CUNHA

LUCÍLIA MONTEIRO

“As pessoas mais ignorantes, racistas, homofóbicas e misóginas pensam que têm luz verde para dar opiniões, aparecer, escrever e financiar campanhas eleitorais. Já não têm vergonha”


O escritor Richard Zimler em entrevista à VISÃO

As memórias têm o seu próprio tempo, sabemo-lo. Richard Zimler, 64 anos, autor norte-americano naturalizado português, com uma dúzia de romances muito amados, guardou durante 25 anos um romance inédito em Portugal. Insubmissos (Porto Editora, 356 págs., €17,70) faz a catarse da morte do irmão, e de tantos amigos nos braços do “Anjo da Morte”, sob as espadas dos “cossacos invisíveis” do vírus da sida. Romance poderoso, retrata essa outra pandemia, que varreu a América (e não só), nos anos 1990, e é leitura fundamental nesta proximidade do 1 de dezembro, Dia Mundial da Luta Contra a Sida. Um professor de música norte-americano com muitos lutos feitos, um aluno de guitarra infetado e o seu pai pedreiro enfrentam um diagnóstico positivo e a sombra da morte: “São três pessoas corajosas, à procura de uma redenção diferente. Este livro é um grito de paixão e de esperança”, descreve o autor. O título, militante, foi ideia do marido de Zimler, o cientista Alexandre Quintanilha, vencedor do Prémio Ciência Viva 2020 – um fechar de círculo com todo o sentido.


No prefácio de Insubmissos, conta que, em 1996, por receio dos conservadores e de uma não renovação do visto de trabalho em Portugal decidiu não publicar o romance. Acha que perdeu aí a oportunidade de ser agente de mudança?

Há momentos na vida em que nenhum dos caminhos possíveis é perfeito ou adequado. Em 1996, vi-me obrigado a escolher entre o sacrifício da não publicação do livro ou o da possibilidade de eu e o Alexandre [Quintanilha] não continuarmos a criar uma nova vida em Portugal: escolhi o caminho que me parecia mais sensato e com menos riscos. Não tenho remorsos. Se o livro tivesse sido publicado, poderia ter tido um impacto grande, mas podia ter provocado uma reação tão negativa que me obrigaria a sair do País. E eu estava ainda tão traumatizado, vulnerável e frágil, com a morte do meu irmão nos EUA, que a possibilidade de mudar, mais uma vez, era impensável.


Defende que, “sem o saber”, escreveu então um “livro muito corajoso e honesto”. Em 2020, Insubmissos é apresentado como obra arriscada. Publicá-la ainda é um gesto de coragem, ou há também, aqui, um certo marketing do nosso frágil mundo editorial?


Para o melhor e para o pior, nunca faço estratégias de marketing. Se as fizesse, nunca teria escrito um romance sobre um jovem seropositivo com VIH, porque obviamente nunca chegaria às listas de bestsellers, em 1996. Não sei se publicar Insubmissos exige muita coragem neste momento, o País evoluiu muito. Nos últimos dez anos, fiz mais de 400 encontros nas escolas e vejo jovens de 16, 17, 18 anos, que se assumiram como homossexuais ou lésbicas, e parecem-me bem aceites: falam abertamente sobre o tema, têm amigos, os professores encorajam-nos… Nas grandes cidades, é possível alguém ter uma orientação sexual diferente e ter uma vida realizada. Isso é espetacular. Por outro lado, sabemos que ainda há correntes muito, muito conservadoras, que preferiam que eu não tivesse o direito de me casar. Em 2010 [quando a Assembleia da República aprovou o casamento civil entre indivíduos do mesmo sexo], 97 deputados votaram contra um País de mais igualdade. Essas pessoas não desapareceram: alguns continuam no Parlamento, outros são administradores de empresas, Manuela Ferreira Leite (que liderava a campanha contra o direito ao casamento) ainda aparece na televisão… Esta gente ainda tem poder. Não faço ideia se vão complicar a minha vida. Já tenho a minha cidadania portuguesa, e estou numa posição mais sólida do que em 1996. Se alguém quiser correr comigo, vai ser muito difícil.


Há, agora, mais gente sem vergonha do seu discurso preconceituoso. Assistimos a um retrocesso?

Sem dúvida. Basta olhar para o meu país de origem, os EUA: 70 milhões votaram num sociopata, assumidamente racista, completamente ignorante, que não acredita na Ciência e nas alterações climáticas, que tirou a América do Acordo de Paris e que acha que podemos injetar-nos com desinfetante para combater o vírus da Covid-19. Setenta milhões de pessoas valorizam a ignorância! É um momento preocupante para o planeta. Em Portugal, o meu medo maior é que um partido como o Chega tem o apoio de organizações internacionais com imenso capital, e pode continuar a subir nas sondagens e representar uma força retrógrada e nefasta na sociedade portuguesa. Basta olhar para os outdoors do deputado do partido espalhados por todo o lado para saber que alguém com muito dinheiro os está a apoiar.


Acredita na tese do “insatisfeito” que aposta nas cartas fora do baralho democrático?

É difícil saber o porquê disto estar a acontecer. Eu diria que Trump, Boris Johnson, Viktor Orbán e muitos outros líderes abriram a caixa de Pandora. Atualmente, todas as pessoas mais ignorantes, racistas, homofóbicas, misóginas, pensam que têm luz verde para dar as opiniões, para financiar as suas campanhas eleitorais, para escrever nos jornais, para aparecer na televisão… Já não têm vergonha de expressar opiniões que, no passado, teriam sido consideradas estranhas, retrógradas e ofensivas. Lembro-me, por exemplo, da proposta do Chega para retirar os ovários às mulheres que interrompessem a gravidez, ou de separar os ciganos da restante população: era impensável um político propor isto há 20 anos.


A democracia não está equipada para lidar com isto?

Há muito tempo que levanto a pergunta seguinte: até que ponto devia uma democracia permitir a divulgação e o financiamento de grupos antidemocráticos? Não tenho a resposta. Mas é uma questão cada vez mais pertinente. E é evidente que temos todos de lutar para reforçar a nossa jovem democracia em Portugal.


Insubmissos assume-se como catarse e memorial ao seu irmão, vítima de sida. Harold, irmão do professor, cola-se a essa figura?

O meu irmão Jerry era uma pessoa complicada, insatisfeita com a vida, e não aceitava completamente a sua sensibilidade. Perto do fim, ficou com uma raiva terrível, direcionada em parte aos nossos pais. A situação tornou-se muito traumatizante para mim. Um dia, ele disse-me [esta frase citada no romance]: “Sem ti, eu seria um órfão.” Para mim, foi um momento absolutamente poderoso, em que percebi a minha responsabilidade: não havia mais ninguém. Nunca vou recuperar completamente daquilo, nem quero: tornou-me a pessoa que sou agora. [Silêncio.] É complexo.


O romance é a sua biografia com nomes trocados?

Insubmissos não é isso. Há muita ficção no livro. Nunca fiz uma viagem com o meu irmão ou com outra pessoa com estes conflitos e dramas: essa parte é como um road movie e nada tem que ver com a minha história. Estou presente mais no aspeto dos fantasmas: todos nós, que perdemos pais, avós, irmãos, etc., vivemos rodeados por fantasmas. E tenho uma teoria de que os mortos não são como os dos livros do Stephen King e dos filmes de terror: os mortos querem o melhor para nós, são uma fonte de garra, urgência, desejo, solidariedade e empatia.


Há uma passagem impressionante em que descreve os muitos amigos mortos pela sida em São Francisco, “pendurados num cabide especial no Madison Square Garden da minha memória”. Sente a “culpa do sobrevivente”?
Sim. Mas o que sinto mais é a injustiça. Às vezes, estou a andar pela rua, paro de repente, e é um murro no estômago: penso no Jerry e na injustiça de ele ter morrido aos 35 anos, um homem com a possibilidade de criar uma vida maravilhosa, e de tudo ter desaparecido devido a um vírus. Durante muito tempo, pensei que também ia morrer, porque podia ter apanhado o vírus antes de conhecer o Alexandre. Passei dez anos à espera dos primeiros sintomas da sida. Felizmente, não aconteceu. Mas se tivesse morrido em 1994, não teria escrito O Último Cabalista de Lisboa nem Insubmissos, não teria a carreira de romancista. Por isso, sinto-me grato, mesmo no pior dos dias, quando chove ou quando um deputado do Chega consegue entrar no Parlamento, de ter esta oportunidade de viver. De poder ver um pôr do sol, comer uma boa refeição, partilhar uma cama com o Alexandre.


Escreve: “É provável que seja pecado dizer isto, mas a cultura e a história sem sexo são praticamente inúteis.” O sexo, tão presente no romance, é essencial?
O sexo é importantíssimo por muitas razões. Uma delas é porque é uma força incontrolável. Os ditadores têm medo do sexo, porque as pessoas formam uniões físicas e espirituais sem qualquer controlo. E isso é magnífico. O sexo dá-nos a força para ultrapassar também os preconceitos. Um branco racista que se apaixona por uma negra tem a possibilidade de perceber que todos somos humanos, bonitos, fantásticos. E não há nada que aconteça ao nosso corpo que não aconteça ao cérebro e vice-versa. Uma história sem sexo não é possível.


Estamos novamente sob o ataque de “microscópicos cossacos”, “cossacos invisíveis que cheiram a pneumonia”. Parecem-lhe acertadas as comparações feitas entre a pandemia da sida e a da Covid-19?

Até certo ponto. Para mim, o que têm em comum é o facto de estarmos a viver com um nível constante de stresse, de risco. Nos anos 1990, em São Francisco, ninguém tinha outro assunto que não o da sida. Todos nós, homossexuais, pais, filhos, avaliamos o risco de infetar os outros.


À Covid-19 não chamamos um moralista “Anjo da Morte”. Ainda…
Sim, a sida veio com uma profunda estigmatização das primeiras comunidades afetadas: os homossexuais, os toxicodependentes… Daí a culpabilização abominável da vítima: “O vírus é um castigo de Deus.” Evitamos isto, no caso da pandemia da Covid-19. E tivemos sorte: se o vírus tivesse começado com ciganos em Portugal, imaginem a reação dos conservadores… Felizmente, a Covid-19 não é uma sentença de morte, ao contrário da sida: 99,9% dos que a apanhavam morriam em cinco, seis, sete, oito anos.


Crê que este vírus destrói a relação com o outro, como dizem alguns? Vem aí uma geração traumatizada?

Acredito que o ser humano pode recuperar rapidamente, esquecendo os traumas do passado. No meu caso, levou-me muito tempo a ultrapassar o medo completamente ilógico em relação às outras pessoas por causa da sida: demorou três, quatro anos. Provavelmente, vai demorar o mesmo tempo para que certas pessoas voltem a dar beijinhos ou abracem o seu irmão. Mas penso que isto não vai causar traumas entre os mais jovens: eles têm uma força vital tão grande…


Outra tese: vamos ter um mundo diferente e melhor?

Depende dos seres humanos, e eu já não acredito que estes aprendam com a História. Já escrevi muitos romances sobre a Inquisição, o Holocausto. Se os seres humanos tivessem aprendido as lições mais importantes do Holocausto, não teríamos guerras nem limpezas étnicas. Mas sou um otimista e acredito que é possível aprender lições valiosas com a Covid-19: a necessidade de valorizar a nossa própria vida, de proteger os outros, de focar nos valores de empatia e solidariedade, de desfocar os valores do egoísmo.


Saber qual dos dois presidentes, Trump ou Biden, leria Insubmissos, é conhecer a América atual?

Não sei… Os livros são fundamentais. Mas não sei se os políticos nos EUA beneficiariam da leitura deste romance ou d’O Último Cabalista de Lisboa. Os políticos atuais não são contadores de histórias e não valorizam a História ou a literatura: valorizam tweets. E Proust, Stendhal, Dostoievski, não dão soluções rápidas… Com Joe Biden e Kamala Harris, existe a possibilidade de negociar soluções duradouras, lógicas, sensatas e inteligentes – há zero possibilidades de tais soluções com os republicanos. O período dos EUA como farol da esperança acabou. Vai demorar décadas para que possa ser criada uma América com mais igualdade, menos racismo. E há muitas forças poderosas, como Wall Street, que não o desejam. Temos de ser todos insubmissos para lutar pela democracia.

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