Opinião
Num mundo ideal, num Natal
próximo o tio facho e o cunhado homofóbico estarão diferentes. Desistir é mais
doloroso do que aturar.
* Carmo Afonso
26 de Dezembro de 2022, 0:00
«Vivemos em proximidade apenas
com aqueles que pensam como nós. São esses que procuramos para amigos e para
interagirem connosco nas várias plataformas. Estamos cada vez mais afunilados.
Nas redes sociais, temos os grupos dos comunistas, o dos bloquistas e o dos
centro-esquerda, e as barreiras entre eles são feitas a granito. À direita, os
fossos também existem. Mas diria que se notam menos. Talvez porque o que move a
esquerda são projetos que têm acentuadas diferenças entre eles, enquanto a
direita anda na disputa pelo pódio de quem mais critica o marxismo cultural.
Ninguém procura aproximações. Isto não acontece só em política. Há exceções;
amizades improváveis, mas elas reluzem e dão nas vistas de tal forma que
confirmam a regra de que aquilo não é suposto. Ficamos com a convicção de que é
mesmo possível viver num mundo em que todos foram escolhidos a dedo para não
nos contrariarem com as suas opiniões. E isso acontece se não forem
inteiramente coincidentes com as nossas. Facílimo.
Era o tema de uma instalação do
Rodrigo Oliveira. Dizia assim: “We cannot escape from each other.” A
perfeita maldição. E podia ser também a legenda para o Natal.
Este Natal, e depois de um
intervalo de dois anos cheios de limitações, as famílias voltaram a juntar-se e
esse reencontro foi uma boa maneira de avivar aquilo que poderia entretanto ter
ficado esquecido: temos de aturar-nos uns aos outros. Este ditado faz lembrar
um outro, mais ambicioso e utópico, que impunha que nos deveríamos amar uns aos
outros. A verdade é que, já que temos de nos aturar, seria mais fácil fazê-lo
se nos amássemos, mas ninguém nos pode pedir tanto.
Devemos fazer das nossas vidas um
exercício com alguma coerência e estabelecer limites para o que estamos
dispostos a tolerar e aquilo que já não é possível. É sabido que esse caminho
tende a ser cada vez mais apertado e que cada vez cabem lá menos. Não é nada
natalício.
Mas faz sentido. Se não toleramos
racismo, porque devemos tolerar um
familiar racista à mesa connosco? Sabemos que o racismo é um problema com a
importância e a potencialidade de causar sofrimento, injustiça e até a
destruição de vidas. Como ser tolerante com isto?
Mas, se falamos de racismo,
também podemos falar de homofobia. Porque devemos aceitar e receber na esfera
mais pessoal e íntima quem despreza ou desrespeita a forma como outros se identificam
ou amam?
E se falamos de homofobia, também
devemos falar de transfobia. É que milhares de portugueses, que já compreendem
o tema da homossexualidade, continuam a não entender as pessoas transgénero. É
o típico fenómeno de: “Tudo bem que gostem de pessoas do mesmo sexo, mas
mudarem de sexo já é doença e se continuamos assim isto vai por aí a fora e não
tem limites.” Eventualmente, uma boa parte dos portugueses é transfóbica. Que
fazer a estas pessoas?
Claro que está aqui presente um
pressuposto que não é o predominante nas famílias portuguesas: serem os
progressistas a ocupar o lugar de quem julga e avalia os restantes. Na maioria
das vezes, são os “fóbicos” e os “istas” que se encontram nessa posição e são
os “diferentes” que se sentem mal recebidos nas festas familiares ou que até já
desistiram de aparecer.
Os avanços que o mundo tem
feito no sentido de uma sociedade mais justa têm acontecido graças à
intolerância de muitos relativamente aos preconceitos dos outros. Também na
vida, como na regra matemática, o menos por menos pode dar mai
É matéria altamente pessoal. Mas
os avanços que o mundo tem feito no sentido de uma sociedade mais justa têm
acontecido graças à intolerância de muitos relativamente aos preconceitos dos
outros. Podíamos pensar que não é com intolerância que se cura a intolerância,
mas não é bem assim. A intolerância pode resultar. Também na vida, como na
regra matemática, o menos por menos pode dar mais.
É verdade que, se a família quer
estar junta, ela tem de se esforçar, mas os esforços não têm todos o mesmo
valor. Num anúncio espanhol do whisky J&B, deste Natal, vemos um avô
que, durante semanas, tenta aprender a maquilhar-se. Aquele processo surge como
sendo um enigma. Na noite da consoada, chama um dos netos à parte e faz-lhe uma
maquilhagem altamente profissional. É assim que o leva à mesa. Mistério
resolvido, e só não chora quem não tem coração. Cada vez mais os publicitários
convencem as pessoas a comprar coisas enquanto lhes passam uma mensagem relativa
a um tema sensível. Mas a escolha que fazem é capitalizar o progressismo. As
marcas apostam que são mais os que estão dispostos a mudar do que os
empedernidos.
Num mundo ideal, num Natal
próximo o tio facho e o cunhado homofóbico estarão diferentes. No mundo real,
pode ser um pai ou um irmão e podem não ter vontade nenhuma de ficar
diferentes. No mundo real, temos mesmo de nos aturar uns aos outros. Desistir é
mais doloroso do que aturar.
A autora é colunista do
PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
https://www.publico.pt/2022/12/26/opiniao/opiniao/natal-festa-termos-aturar-2032681
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