*
Comecemos pelas casas de
banho e balneários nas escolas públicas, um tema pertinente e candente que
interessa aos alunos que se declaram de sexo indeterminado ou contrário àquele
que aparentam ter (peço desculpa por eventual imprecisão, mas isto é de
compreensão difícil para leigos). Houve um primeiro despacho do Governo a
regulamentar o assunto, em 2019, mas o Tribunal Constitucional declarou-o
inconstitucional por ser matéria reservada da AR, sendo então retomado por
projectos de lei do PS e do BE. E esses projectos foram agora a parecer do
Conselho Nacional de Ética e Ciências da Vida, cujos conselheiros se dividiram:
alguns propõem que às casas de banho e balneários já existentes, para rapazes e
raparigas, se acrescentem novas construções para sexos indeterminados; outros,
mais simplesmente, propõem que as casas de banho já existentes passem a ser
“neutras”, servindo todos os sexos — existentes, declarados e a existir ou a
declarar no futuro. Sobre isto e as soluções propostas tenho várias dúvidas
substanciais e uma terminal.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
São dúvidas substanciais as
seguintes:
— uma casa de banho é um lugar
onde se satisfazem necessidades fisiológicas ou é um lugar onde se afirma a
identidade sexual perante o mundo?
— se, como pretende o segundo
grupo de conselheiros, todas as casas de banho e balneários devem passar a ser
de regime livre, como se assegura o apregoado direito à intimidade, por
exemplo, de raparigas assumidas como tal que veem entrar nas suas instalações
um rapaz que ali vai satisfazer as suas necessidades a pretexto de que se sente
rapariga? E quem garante que está a ser genuíno?
— mas se, pelo contrário, se
optar pela solução alternativa de construir um terceiro género de instalações
para o terceiro género de orientações sexuais, calcularam os conselheiros
defensores desta solução quanto custaria ao país — em grosso e por aluno
interessado — proceder a esse acrescento nos milhares de escolas públicas?
— e, já agora e por força do
princípio da igualdade, por que razão se há-de limitar este revolucionário
direito a jovens quase todos menores de idade? Não deveria ele ser estendido a
todos os portugueses e, por maioria de razão, a adultos com a sexualidade mais
bem definida, em todos os edifícios públicos e privados do país?
Quanto à dúvida terminal, é muito
simples:
— este importantíssimo passo, a
que poderemos com justiça chamar a “Revolução das Casas de Banho”, é mesmo
essencial para melhorar a qualidade da democracia e da vida em sociedade? Não
seria mais digno darmos casas de banho decentes aos trabalhadores imigrantes da
agricultura alentejana?
2
A mando do Chega, prepara-se uma
revisão constitucional que temo seja pretexto para infestar a Constituição com
mais um elenco de direitos e garantias que mais parecem saídos de um programa
de Governo ou de uma aula de catequese do que de um texto fundamental. Quando
foi feita, em 1976, os constituintes gabaram-se de ter parido a segunda maior
Constituição do mundo, só atrás da da então Jugoslávia, ignorando que a
História tinha já ensinado que quanto mais pequena é uma Constituição mais
fiável, duradoura e respeitada se torna. Agora, entre outros acrescentos e
“aperfeiçoamentos” ditados pelas modas do tempo, pretende-se criminalizar
constitucionalmente os maus-tratos e abandono de animais. Mas uma Constituição
não é um Código Penal, e mesmo um Código Penal não consegue reprimir aquilo que
tem que ver com má-educação, maus instintos e má natureza. E, como disse alguém
cujo nome infelizmente não retive, como se pode pretender criminalizar o
abandono de animais e não o fazer para aqueles que abandonam seres humanos, os
seus pais ou avós, em hospitais, lares ou sozinhos em casa? Se eu pudesse,
acrescentaria apenas um artigo novo à Constituição: “São proibidas todas as
formas de demagogia.”
3
A poucos dias de mais uma
tentativa de votar uma lei da eutanásia que há nove anos se arrasta num
exaustivo processo legislativo no Parlamento (e tudo menos precipitado, como
disse Cavaco Silva), Luís Montenegro veio, a destempo, propor um referendo. É
lícito que ele tenha — como eu tenho e tantos têm — dúvidas, porventura
insolúveis, sobre a eutanásia. Mas para aqueles que ainda mais licitamente a
reclamam para si mesmos não vejo que “outras alternativas” de que ele fala
pudessem ser consideradas através de um referendo ou de mais um adiamento.
4
Para um jornal como o “Público”,
que, desde o início da guerra na Ucrânia, subscreveu abertamente as posições e
a informação da NATO e do Ocidente no conflito, é de saudar a entrevista feita
ao historiador russo Yuri Slezkine. Embora Slezkine seja um historiador da nova
geração, crítico de Putin e do regime e de há muito a viver nos Estados Unidos,
como professor em Berkeley, o seu olhar sobre o conflito não deixa de reflectir
uma outra visão das coisas — que a informação dos media ocidentais tem sido
comodamente avessa a escutar. Sobretudo quando ele procura na História parte
das razões do conflito — mais uma aversão dos comentadores pró-NATO, que acham
que a História começou a 24 de Fevereiro: “Como historiador, não consigo
imaginar nenhum governante russo, nenhum czar, nenhum secretário-geral do
partido comunista a dizer que se a Ucrânia se quer juntar a uma aliança militar
hostil está no seu direito... Se a NATO está a aproximar-se e a tornar-se mais
hostil, o que faria se estivesse no Kremlin?” Slezkine recorda, aliás, como a
Rússia pós-soviética tentou várias vezes aproximar-se do Ocidente —
inclusivamente, pedindo a adesão à NATO — e foi sempre repudiada.
Há coisas sérias no horizonte:
o tribunal especial para deitar mão às reservas russas no Ocidente ou a nova
guerra comercial do aliado americano contra a Europa. Mas aqui podem esperar:
temos a questão das casas de banho para o terceiro sexo nas escolas, a
criminalização constitucional do abandono de animais e o desentendimento entre
o treinador e o comentador de futebol Marcelo em relação a CR7
Agora, que o Parlamento Europeu
declarou a Rússia como um “Estado patrocinador do terrorismo” — uma figura
inexistente no direito público internacional — e se fala na criação de um
tribunal ad hoc para julgar retroactivamente os crimes de guerra russos na
Ucrânia, as subsequentes declarações de Ursula von der Leyen parecem trazer
alguma luz ao objectivo pretendido: condenar a Rússia ao pagamento de uma
indemnização de guerra, destinada a financiar a reconstrução da Ucrânia e o
custo de todo o armamento que lhe foi sendo fornecido para manter a guerra.
Custo estimado: 300 mil milhões de euros — equivalente ao montante das reservas
russas, públicas e privadas, congeladas em bancos ocidentais. A arquitectura
jurídica que teria de ser montada para pôr de pé esta operação não tem
precedente algum no direito internacional, nem sequer nos Acordos de Versalhes
ou de Nuremberga, subverteria de futuro todo o comércio mundial e as próprias
relações entre Estados e, obviamente, equivaleria a uma declaração de guerra
formal à Rússia, com consequências permanentes para a paz no mundo e, em
especial, na Europa.
É suicidário que seja a própria
Europa a escolher este caminho e a recusar qualquer via negocial para o fim da
guerra. E é incompreensível que o faça no momento em que os Estados Unidos dão
sinais crescentes de estarem fartos desta guerra e cada vez mais virados para o
Oriente, ao mesmo tempo que a uma Europa que já está a pagar, na energia e nos
alimentos, o grosso da factura de guerra se preparam para lhe acrescentar o
custo de uma guerra comercial “aliada”, desencadeada pela nova Lei de Redução
da Inflação, autêntica machadada nas exportações europeias para os EUA. Já
houve tempos em que o secretário de Estado Kissinger, para se justificar de
maltratar a Europa, dizia que não sabia o número de telefone da Europa,
querendo significar que não sabia quem respondia pela Europa. Esses tempos
parecem repetir-se agora, mas com uma diferença: já há um número de telefone na
Europa — é o do secretário-geral da NATO. A “ressuscitada” NATO, tão saudada
pelos europeus, que deveria ser o braço armado da política externa consensual
do Ocidente, é hoje, pela mão do seu secretário-geral, apenas o braço armado da
política externa americana — da Ucrânia até à China. Mas Stoltenberg é também,
e se repararem, o ministro dos Estrangeiros da Europa. É ele quem viaja pelas
várias capitais europeias, quem está presente em todos os fóruns, quem fala
antes e acima de todos os dirigentes europeus não sobre a disposição de forças
ou sequer sobre a política de defesa europeia mas sobre a política externa
europeia — da Ucrânia até à China. Agora, quando os americanos querem falar com
a Europa, falar pela Europa ou dar ordens à Europa, telefonam a Jens
Stoltenberg.
5
Desde que a selecção de futebol
chegou ao Catar, Cristiano Ronaldo fez tudo para chamar sobre si o exclusivo
das atenções, e os jornalistas portugueses presentes fizeram-lhe a vontade,
massacrando-nos diariamente com as novelas à volta do CR7 como se nada mais
existisse de importante do que ele e os seus estados de espírito. E mesmo
depois de três jogos de absoluta desilusão e de uma manifestação de mal-educada
insubordinação contra o treinador, não ouvi nem li, entre as dezenas de
jornalistas e comentadores de futebol que pululam por todos os lados — desde o
mais insignificante estagiário até aos mais encartados, como Marcelo Rebelo de
Sousa —, um só que se tenha atrevido a defender a sua saída da equipa. Porém,
atreveu-se, enfim, o treinador. E, como já se tinha visto no ensaio geral
contra a Nigéria, a equipa joga infinitamente melhor sem ele, liberta da
escravidão de ter de servir os seus interesses pessoais, os seus recordes, o seu
egoísmo, o seu ego. É, de facto, uma tristeza ver terminar assim uma carreira
verdadeiramente notável, mas não se pode ajudar eternamente quem não quer e
tudo faz para não merecer ser ajudado.
Miguel Sousa Tavares escreve
de acordo com a antiga ortografia
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