sábado, 3 de dezembro de 2022

Carlos Coutinho - Mais um milhão...


202212 02
OBSERVEI algumas vezes na minha aldeia uma certa forma de cumprimentar que nobilitava mais o cumprimentador que o cumprimentado e que raramente se podia tomar como verdadeira. Por qualquer razão que me escapa, só as mulheres usavam esta fórmula que, além da exuberância da manifestação fisionómica, assentava numa frase invariável e com ressonância cortesã, talvez camoniana: “Ora, viva quem é uma flor!”

Já me apeteceu algumas vezes usar a mesma saudação, não porque me fosse necessário eu parecer camoniano ou sequer dionisino, mas tão-só porque a pessoa em causa era quase sempre a mesma e florescia a olhos vistos.

Só que eu nunca seria capaz de falar como, por exemplo, Bernardo de Bonaval, expoente da lírica galaico-portuguesa ainda hoje muito reverenciado, sobretudo a norte do rio Minho:
"A dona que eu amo e tenho por Senhor
amostra-me-a Deus, se vos en prazer for,
se non dade-me-a morte.
"A que tenh'eu por lume d'estes olhos meus
e porque choran sempr(e) amostrade-me-a Deus,
se non dade-me-a morte.
"Essa que Vós fezestes melhor parecer
de quantas sei, a Deus, fazede-me-a veer,
se non dade-me-a morte.
"A Deus, que me-a fizestes mais amar,
mostrade-me-a algo possa con ela falar,
se non dade-me-a morte."
A tal acontecer, poderia revelar-se como aristocrático gesto ou pedante suicídio que só os samurais praticaram e que o desvairado Yukio Mishima – que, na realidade se chamava Kimitake Hiraoka – usou espetacularmente em 1970, num também azarento dia 25 de novembro, quando acabava de escrever O Mar da Fertilidade.

E, já agora, aproveito para atestar a valia do meu faro que desde cedo me avisou de que tal como nunca alguém assinou como Almerindo de Cebolais de Baixo, também a nossa grande pintora Josefa nunca alegou ser de Óbidos.

Tal como eu sabia, Josefa de Ayala Figueira era filha de outro artista como ela, Baltazar Gomes Figueira que, cerca de 1620, foi até Sevilha, onde imperavam gigantes como Velásquez e Zurbarán, e onde se casou com a andaluza Catarina de Ayala.

Foi quanto bastou para que, 16 anos depois, uma esquisita filha de ambos chamada Josefa desse nas vistas como talentosa, apesar de ter nascido na Andaluzia, se recusar a ser considerada súbdita do monarca espanhol. Josefa abriu o seu próprio caminho “al andar”, como proclamava Machado, e em 1634 já estava a viver em Peniche, seguindo alguns anos depois para Coimbra, onde a jovem andaluza frequentou à sua maneira o Convento da Graça. Já na década de 1650, foi com a família para Óbidos, terra natal do seu apagado progenitor.

Aí pintou e vendeu os seus quadros, assinando como “Josefa em Óbidos”, para que não se fosse à procura, noutro local, da sua pintura cada vez mais famosa. E foi preciso que aparecesse um historiador de respeito, Sérgio Luís de Carvalho, para pôr finalmente os pontos também nestes is, confirmando os dados que eu possuía e explicando por que nunca existiu uma tal “Josefa de Óbidos”.

Coisas do mercado da arte. Que já naquele tempo recorria a certos cuidados nos negócios.
Mas, adiante, que também não quero parecer pedante. Rima e é verdade.

À tarde
ATÉ um reacionarão de Portalegre que declara ser jornalista e assina como JMT (“Público”, 1.12.2022) conseguiu perceber ontem que “o Serviço Nacional de Saúde precisa de mais dinheiro. A Segurança Social precisa de mais dinheiro. As escolas precisam de mais dinheiro. Os tribunais precisam de mais dinheiro. As Forças Armadas precisam de mais dinheiro. Os museus precisam de mais dinheiro. Os transportes públicos precisam de mais dinheiro. A TAP precisa definitivamente de mais dinheiro. Donde, a primeira questão é: há alguma área do Estado que hoje não precise de mais dinheiro?”

Lamentavelmente não percebeu a escondida vantagem de só em janeiro poder acontecer a primeira reunião da comissão interministerial que reúne seis ministérios constituintes da tardia Estratégia Nacional de Combate à Pobreza.

Então, não está bem de ver que é crucial dar tempo de chegar à Ucrânia àquele milhão de euros (mais um!) que o ministro Cravinho vai mandar, protegido pelo mutismo cúmplice de Costa e Marcelo?

Eis a única pergunta avançada pelo JMT:

“Onde é que o país vai arranjar o dinheiro de que o Estado precisa?”

Vá lá, podia ser pior a última tirada, como ele tantas vezes faz no “Observador” e no “Eixo do Mal” de Balsemão.

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