Valéry louva a separação entre obra e autor. E não tem pudores em considerar benéfica a exclusão do autor e do texto quando se transita pelo terreno da crítica literária. Bizarro, mas tem mais. E na voz de vez de Umberto Eco. Basta ler ou ouvir falar o que se disse de determinado livro para comentá-lo. Tem também Michel de Montaigne. O filósofo francês garante que ler um livro e esquecê-lo é o mesmo que nunca tê-lo lido, embora isso não prejudique em nada o leitor. Claro que o fato o transforma em um não-leitor, mas paciência.
Professor de literatura francesa na Universidade Paris 8, na periferia parisiense, o contemporâneo Pierre Bayard junta Valéry,Montaigne, Eco e outros para mostrar a falta de propósito em ler um livro com o único objetivo de comentá-lo. "Como falar dos livros que não lemos?" parece um ensaio. São 208 páginas sobre um modo curioso de leitura. No prólogo, o autor explica que não lê.Mas o autor é personagem e uma conversa com Pierre Bayard revela não ser bem um ensaio o gênero do livro, mas uma ficção escrita por um personagem fictício transmutado em autor. Tudo leva o leitor a crer que trata-se do próprio Pierre Bayard, mas não é.
“Eu leio, e muito. O personagem conta que não cresceu entre livros e, claro,não é o meu caso”,explica.O professor já experimentou a fórmula em outros livros. Reinventou, sempre em tom de ensaio, o final de vários clássicos em outras publicações. A mais recente é Como melhorar as obras fracassadas?. Inédito no Brasil, o livro retoma 13 romances da literatura francesa e sugere como melhorar sua forma e seu conteúdo.
Lançado na França no ano passado e recém chegado às livrarias brasileiras pela Objetiva, "Como falar dos livros que não lemos?" funciona como um bálsamo para aqueles que se sentem culpados com fato de não visitarem a literatura com muito entusiasmo. “Livros aparentemente não lidos não deixam de exercer efeitos sensíveis sobre nós, através dos ecos que nos alcançam”, assegura Pierre Bayard.Um aviso: não se trata de uma tentativa de dissuadir leitores e muito menos de um manual para transitar sem tropeços por entreveros literários.
O professor divide em três categorias as não-leituras. Na primeira, estão os livros sequer consultados. Aqueles que o leitor nem sabe que existem. Ou os de que tem conhecimento, mas nunca tocou ou folheou. O importante aqui não é saber o conteúdo, defende Pierre Bayard , mas a situação do livro. Ou seja, o que ele representa na história da literatura. É o bibliotecário da obra de Robert Musil o exemplo mais contundente.
Em seguida vêm os livros não-lidos, mas eventualmente consultados. E o exemplo de Valéry serve a contento.Em 1923, o poeta escreveu extenso artigo na Nouvelle Revue Française sobre Proust e Em busca do tempo perdido. Detalhe: o poeta nunca leu a obra.Mas é capaz de situá-la no mundo das idéias e fazer sua crítica.Outra categoria importante abrange os livros dos quais se ouve falar. Em O nome da rosa, Umberto Eco conta a história de um monge capaz de reconstituir o conteúdo de um livro que não leu por meio de uma simples investigação sobre o tal volume. E, finalmente, a categoria das leituras esquecidas.Nesta, o próprio Pierre Bayard confessa se incluir inúmeras vezes.
Zero Hora / Data: 16/2/2008
COMO FALAR DOS LIVROS QUE NAO LEMOS?
Os livros que não lemos Professor de literatura francesa na Universidade de Paris, Pierre Bayard discute a indeterminação dos conceitos de leitura e de não-leitura em ensaio best-seller que defende a tese de que cada leitor monta sua própria rede de relações com uma obra CARLOS ANDRÉ MOREIRA A cautelem-se os que costumam comprar um livro instigados pelas promessas contidas no título. À primeira vista, a obra Como Falar dos Livros que não Lemos (Objetiva, 207 páginas) parece um volume de auto-ajuda para picaretas e arrivistas de toda ordem. E mesmo que em seu terço final ele às vezes chegue perto disso, mas não muito, o livro do professor francês de literatura Pierre Bayard é um delicioso e instigante ensaio sobre as contradições e dificuldades das definições correntes do que venha a ser leitura - e, por conseqüência, do que pode ser chamado "não-leitura". Ao abordar o mesmo tema, no magistral Uma História da Leitura, publicado em 1997 no Brasil pela Companhia das Letras, o crítico Alberto Manguel já justificava o uso do artigo indefinido no título da obra devido àquela ser uma dentre as milhares de histórias da leitura possíveis, uma para cada leitor. Com a liberdade formal proporcionada por essa escolha, Manguel construiu sua visão pessoal da história da leitura com uma série de ensaios mesclando depoimentos pessoais com tentativas de sistematizar uma linha narrativa cronológica e classificatória, elencando hipóteses históricas ao mesmo tempo em que apresentava diferentes tipos de experiências de contato com o universo da leitura. É um caminho em certo ponto similar ao que Bayard trilha em Como Falar de Livros que não Lemos. Ambos os ensaios concordam em um ponto essencial: a leitura é uma atividade cujo poder transformador independe de orientação especializada ou da condução dócil de um cicerone, cada leitor fará dela uma circunstância pessoal. A diferença é que essa conclusão leva Manguel a um elogio da leitura individual, enquanto Bayard aproveita para comentar que, se a leitura prescinde de recomendações de terceiros, mesmo formas socialmente reprováveis de apreciação de uma obra, como a própria não-leitura, são válidas como apreciação artística. O livro de Bayard é a defesa erudita e involuntária do mote de Oswald de Andrade: "não li e não gostei". Como Falar dos Livros que não Lemos é dividido em três partes. Já na primeira delas o autor detém-se sobre as complexas nuanças existentes em alguns conceitos tomados universalmente como válidos. A fim de estabelecer desde logo as ferramentas de sua reflexão, Bayard descarta a, para ele pouco clara, distinção entre livros lidos e não-lidos. Um livro não-lido pode ocupar um espaço tão central em uma cultura que determinados leitores terão sobre ele tantas informações quanto aqueles que o leram. E, mesmo no âmbito mais restrito das obras a quem alguém realmente se dedicou, há gradações para o que sobrou dessa leitura. Alguns lerão até boa parte antes de desistir, e outros lerão um livro inteiro e reterão sobre ele uma memória mais pálida do que a daqueles que não leram uma determinada obra, mas têm conhecimento do que dela já se disse, já se estudou e de sua importância: "É difícil, como se vê - e os fatos só vão acentuá-lo - determinar com precisão o que é a não-leitura, e, conseqüentemente, o que é a leitura. Parece que nós nos situamos, o mais das vezes, ao menos no caso dos livros que nos acompanham no interior de uma determinada cultura, em um território intermediário entre as duas, a ponto de se tornar difícil dizer, na maior parte dos casos, se nós os lemos" - escreve Bayard. Com o humor refinado que permeia todo o livro, Bayard propõe novas classificações, e as apresenta detalhadamente na primeira parte. Substitui "lido" e "não lido" por quatro categorias que pretendem abranger a variedade de interações de um leitor com a obra. São elas: os livros "desconhecidos", a grande maioria sobre a qual nada se sabe; os "folheados", aqueles que foram manuseados tendo sido percorridos até o fim ou não; os "de que ouvimos falar", sob os quais nos chegaram informações seja pela rede de trocas culturais da tradição seja pela resenha de uma publicação, como esta aqui; os "esquecidos", aqueles que, mesmo seguidos palavra por palavra até o fim vão gradualmente sendo erodidos da memória. Com exceção da categoria dos "desconhecidos", contudo, as demais não são estanques: nada impede que tenhamos ouvido falar de um livro que mais tarde folhearemos - e é impossível reter na memória humana a totalidade, palavra por palavra, de um livro, e portanto todos eles, em maior ou menor grau, são parcialmente esquecidos. O que sobra de cada um são ilhas de compreensão conectadas pelo impacto que a obra produziu no leitor. Falando assim, parece um árido exercício de taxonomia, mas a obra de Bayard, plena de uma ironia sutil, garante o interesse recorrendo, com texto impecável, a exemplos tirados da própria literatura: Proust, Valéry, Umberto Eco, Robert Musil, entre outros. Todos parte do que Bayard chama, em defesa de sua tese, de "biblioteca coletiva", o grande continuum literário para o qual cada autor contribuiu e no qual se situa de acordo com sua importância. O patrimônio coletivo que permite a alguém dissertar e ter opinião sobre um livro que não leu: a capacidade de situar autores e textos no grande panorama da literatura. "Para um verdadeiro leitor, preocupado em refletir sobre a literatura, não é um livro específico que conta, mas o conjunto de todos os outros, e prestar atenção exclusiva em um único traz o risco de perdermos de vista o conjunto e aquilo que, em todos os livros, faz parte de uma organização mais ampla e que permite compreendê-lo em profundidade." Na segunda parte, Bayard vai um pouco além: cada leitor vai priorizar aquilo que a ele interessar na grande biblioteca coletiva. Some-se a essa idiossincrasia o fato de que a recepção de um livro muda de acordo com o espírito do tempo e com a cultura na qual o leitor está imerso (Bayard exemplifica com o hilário relato de uma pesquisadora em dificuldades para explicar Hamlet a uma tribo africana que, para começar, não acredita em vida após a morte, divergindo já na primeira cena do catalisador da peça, o fantasma do rei morto). Em decorrência dessa combinação de fatores, as relações simbólicas, intelectuais e afetivas que um leitor estabelece com uma obra jamais serão as mesmas que as de outro leitor. E, já que muito do que se leu costuma desaparecer da memória, todo livro lido com paixão virá a ser substituído na mente e no coração do leitor por um outro livro, o livro que ele considera ter lido, não necessariamente o mesmo que o autor pensa ter escrito. "Mas, sobretudo, já que é verdade que os livros interiores de duas pessoas não podem coincidir, é inútil lançar-se em longas explicações diante de um escritor, que se vê ameaçado de ter a angústia aumentada à medida que evocamos o que ele escreveu, experimentando a sensação de que estamos lhe falando de um outro livro ou de que nos enganamos de pessoa. Ah, sim, e se alguém ficou curioso, na terceira parte Bayard chega enfim aos sutis conselhos para que um leitor se desvie com elegância das situações em que precisa falar de um livro que não leu. Também aqui o livro vale não pelas supostas dicas, e sim pelas pertinentes reflexões que Bayard retira delas. A grande ironia é que o livro, best-seller quando lançado na França no ano passado, foi alvo de uma série de ataques de quem viu nele um incentivo à trapaça intelectual. Algumas das críticas claramente feitas por pessoas que não leram a obra. E, pelas proposições de Bayard, tão válidas quanto esta, escrita por um sujeito que leu, folheou e conheceu o livro, e que neste, exato momento, provavelmente já começou a esquecê-lo e a substituí-lo por outro. |
O Globo / Data: 19/1/2008
Desconhecidos, folheados ou esquecidos...
À primeira vista, o livro "Como falar dos livros que não lemos?" parece um guia de humor. Com esse nome curioso, capítulos intitulados “Não ter vergonha” e “Situações de discurso com o ser amado” e uma tabela de abreviações em que são sugeridas as classificações LD, LF, LO e LE — livros desconhecido, folheado, de que ouvi falar e esquecido —, o ensaio que a Editora Objetiva acaba de lançar no Brasil pode aparentar ser mais uma obra para impressionar os amigos. Mas não é nada disso, garante seu autor, o professor de literatura francês Pierre Bayard. — Há uma compreensão equivocada de que meu objetivo é desestimular as pessoas a lerem. É o contrário. Eu sou um fã dos livros. Mas eu quero que as pessoas tenham uma boa experiência com a leitura. Na escola, a gente aprende a ler somente de uma maneira. Os professores falam dos livros importantes e dizem que você precisa lê-los do início ao fim, da primeira palavra até a última. O que eu defendo é a liberdade na leitura — explicou Bayard, por telefone, ao GLOBO. Mais do que uma defesa sobre a liberdade, o livro de Bayard é um ensaio extremamente bem fundamentado sobre todo o processo de leitura — ou, como o autor prefere, o processo intermediário que existe entre a leitura e a não-leitura. Parece confuso, mas no texto do professor francês tudo fica extremamente agradável e simples. A partir de obras de outros escritores, ele disseca as situações pelas quais passa um leitor, de diversas origens e formações. Através de um obituário escrito pelo poeta e filósofo francês Paul Valéry na morte de Marcel Proust, por exemplo, Bayard explica que é possível falar sobre a obra de alguém mesmo sem tê-la lido por completo. Em outro momento, ele trata do enredo de "O nome da rosa”, de Umberto Eco, no qual o monge Guilherme de Baskerville investiga assassinatos cometidos num monastério. As mortes envolvem um dos volumes da “Poética”, de Aristóteles, obra no qual ele faz uma análise do riso. O detalhe que interessa a Bayard é que Baskerville deduz os crimes sem nunca ter lido a obra de Aristóteles. — Mesmo alguns livros que não lemos fazem parte de nossas vidas. São os livros sobre os quais nós ouvimos falar. Eu não devo ser capaz de dizer exatamente o que eu li sobre Hegel, Kant, Freud ou Proust. É claro que eu li muita coisas desses autores, mas é que eu também li muitos livros que falam sobre esses autores. É difícil diferenciar uma coisa da outra. É estreito o limite entre ler e não ler. Quantas pessoas podem dizer que leram da primeira linha até a última linha, da capa até a contracapa, a “Bíblia”? — questiona Bayard. Já no capítulo “Situações de discurso diante de um professor”, o professor francês analisa o estudo da antropóloga americana Laura Bohannan com os tiv, um grupo étnico da África Ocidental. Nele, Laura relata a experiência que teve ao, oralmente, contar a alguns deles a história de “Hamlet”, de Shakespeare. O resultado foi que os tiv questionaram várias passagens do livro, por não entenderem, por exemplo, o significado de um fantasma ou não acharem estranho que a viúva Gertrudes se casasse pouquíssimo tempo depois da morte do marido. Bayard desenvolve, então, um conceito que ele chama de “livro interior”, uma espécie de filtro que varia de cultura para cultura e que determinaria a recepção de novos textos por parte do leitor. — Eu acho que alguns livros importantes não o são para mim ou para você. Isso não significa que é para se sentir culpado caso você não se saia bem lendo alguma coisa. Eu digo para os meus estudantes que eu não fui bem sucedido em ler “Ulisses”, do Joyce. Talvez não fosse o livro para mim. E não me sinto culpado em não ter lido “Ulisses” e explicar do que ele se trata — diz. Sobre os livros lidos e esquecidos, Bayard cita o ensaísta francês do século XVI Michel de Montaigne. Em seus “Ensaios”, Montaigne diz que, depois de ler um livro, detalhes “pequenos” como o autor e as palavras eram esquecidos prontamente. Até mesmo seus próprios escritos se perderiam na memória com o passar dos anos. Bayard afirma que Montaigne teria conseguido apagar qualquer limite entre leitura e não-leitura. O autor diz que a “confissão” do ensaísta nada mais é do que um resumo da relação que todas as pessoas têm com os livros. “Não guardamos em nossa memórias livros homogêneos, mas fragmentos arrancados de leituras parciais”, escreve ele. — Existe uma situação intermediária entre apenas ler ou não-ler um livro. Os intelectuais conhecem bem essa situação porque estão acostumados a folhear os livros, a começar uma leitura e não terminá-la. Mas muitas pessoas não entendem isso — afirma Bayard. — Quando alguém vai ao meu apartamento, vê aquela quantidade imensa de livros e pergunta se eu li todos, eu francamente digo que não. A questão é que eu vivo com os meus livros, eles são minhas companhias, meus amigos. Quando eu tenho problemas, eu peço a eles a solução, mas não leio todos. Dessa biblioteca, o professor francês tem dois volumes que podem resumir bem o espírito de liberdade pregado em "Como falar dos livros que não lemos?" (208 páginas). Um é a resposta dele à pergunta “qual o melhor livro que você não leu?”. Já o outro é uma confissão sobre um autor brasileiro. — “Ulisses” é o livro que não li e mais gostei. Eu tenho certeza que é um ótimo livro. Há muitas garotas que são interessantes, mas que podem não ser para mim e podem ser para você. A lógica é a mesma — brinca o simpático Bayard. — Dos autores brasileiros, eu adoro Machado de Assis. O “Dom Casmurro” eu realmente li. E até o reli. Reler é também uma ótima forma de ler um livro. É importante ser um leitor criativo. André Miranda |
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