sábado, 23 de fevereiro de 2008

Ah, essa falsa cultura...

ENSAIOS Segunda-feira, 28/1/2008 . Ah, essa falsa cultura... . Sérgio Augusto

Como dar conta de tantos livros? Eis um drama universal, que vários livros já inspirou. O último da espécie que li intitulava-se Los Demasiados Libros, do poeta e ensaísta mexicano Gabriel Zaid, aqui traduzido pela Summus, informação que só estou lhe passando, "paresseux lecteur", por tratar-se de leitura rápida (tem em torno de 150 páginas), ademais prazerosa e inspiradora. Zaid possui uma biblioteca de mais de 10 mil livros. Não é um colecionador, um bibliômano; apenas adora ler; e é claro que: 1) não leu todos eles; 2) nem sequer folheou a maioria; 3) vários só leu até a metade, se tanto. Como todo mundo, aliás. Complexo? Zero.
Acumular milhares de livros não lidos sem perder a pose nem o desejo de comprar outros mais é um dos apanágios do verdadeiro homem ilustrado, defende-se Zaid de eventuais patrulheiros culturais. Até porque livros descartáveis ou apenas de consulta é o que não falta. Mesmo quem lê muito rápido, sem prejuízo do gozo e da assimilação, sofre um bocado com o acúmulo de livros ao seu redor. Acompanhar o ritmo do mercado editorial é um anseio impossível, uma frustração permanente, que, como a morte, deve ser encarada como uma fatalidade ecumênica. Não sei se os que lêem menos, sobretudo por falta de tempo, sofrem mais que os bibliófagos, mas é entre eles que se encontra o maior número de preocupados com a pecha de inculto e alienado. Para estes já existe um remédio. Paradoxalmente, sob a forma de livro. E, ainda que o autor rejeite o rótulo, um livro de auto-ajuda, quiçá de alta ajuda. Publicado na França, Comment Parler des Livres que l'on n'a pas Lus? (Editions Minuit) já foi traduzido para o inglês, também virou best-seller na Alemanha, e tem tudo para virar franquia retórica nas tertúlias do mundo inteiro, pois o sonho de poder falar sobre livros que não lemos talvez seja mais intenso e disseminado que a quimera de ter lido todos os livros importantes publicados até hoje. Seu autor, Pierre Bayard, 52 anos, mestre em literatura e psicanalista, já aprontou várias petulâncias. Há sete anos, publicou Comment Améliorer les Oeuvres Ratées, em que sugere mudanças em obras menores de Marcel Proust, Marguerite Duras e outros medalhões. Em 2002, lançou Enquête Sur Hamlet: Dialogue des Sourds, no qual tenta provar que Claudius não matou seu irmão, o rei da Dinamarca e pai de Hamlet. Comment Parler des Livres que l'on n'a pas Lus? é seu 12º livro. Embora possa parecer um açougueiro promovendo as virtudes do vegetarianismo, de insincero Bayard não pode ser acusado. Já no prefácio admite ler pouco, por falta de tempo e interesse, e confessa ter dado aulas e palestras sobre obras em que nunca pôs os olhos. De messiânico, sei não. Afinal, ele se diz investido da missão de salvar a humanidade das profundas neuroses semeadas pelo fetiche livresco, vale dizer do sentimento de culpa e humilhação que costuma afligir os que não gramaram do princípio ao fim os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Aos quais poderíamos acrescentar os 17 tomos da Comédia Humana, de Balzac; as quase mil páginas de Ulisses, de James Joyce; as 800 páginas de A Montanha Mágica, de Thomas Mann; as quase 400 páginas de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; as 1.190 páginas de Guerra e Paz, de Tolstoi (na tradução da Aguilar) ― para ficarmos só em alguns dos mais célebres catataus da literatura ocidental. Partindo de uma constatação razoavelmente lógica ― se lemos um livro de ponta a ponta, muitos outros terão de ser desprezados ou, na melhor das hipóteses, lidos pela metade ou apenas folheados ― Bayard propõe algo mais que uma atualização pós-moderna do Método de Leitura Dinâmica de Evelyn Wood, que tantos seguidores amealhou nos anos 60, entre os quais o presidente John Kennedy e milhares de brasileiros. É uma nova e estrambótica maneira de se lidar com um livro, um vade-mécum que mais parece uma paródia de Jacques Derrida e da Modesta Proposta de Jonathan Swift, aquele panfleto satírico (safra 1729) em que o autor de As Viagens de Gulliver recomendava que os irlandeses à beira de miséria faturassem algum transformando seus rebentos em alimento para os ricos. Ou uma paráfrase daquela competição inventada pelos Monty Python, cujos participantes tinham 15 minutos para resumir os sete volumes da Recherche proustiana. A leitura tradicional, letra por letra, palavra por palavra, está superada, pontifica Bayard, que nunca terminou Ulisses nem O Homem Sem Qualidades (de Robert Musil), só conhece A Eneida (de Virgílio) e Oliver Twist (de Charles Dickens) através de ensaios, não se lembra de mais nada de A Interpretação dos Sonhos (de Freud) e O Lobo da Estepe (de Hermann Hesse), e não faz a mais remota idéia do conteúdo da Retórica de Aristóteles. Embora mencione Oscar Wilde, seu raciocínio não se apóia literalmente na conhecida boutade wildiana: "Nunca li um livro antes de criticá-lo para não me deixar influenciar pela sua leitura." O quesito influência não o aflige, mas as raízes de seu raciocínio estão, sem dúvida, no Wilde do monológico ensaio "O Crítico Como Artista", no qual o provocante irlandês, após salientar ser inútil beber o tonel inteiro para conhecer a origem e a qualidade de um vinho, argumenta: "Pode-se dizer facilmente em meia hora se um livro é bom ou não vale nada. Bastam, de fato, dez minutos, se se possui o instinto da forma." Também são referências respeitáveis o sábio Montaigne, que lia à beça mas esquecia de tudo ("nulle retention", queixou-se num de seus ensaios), e Paul Valéry, que encontrava maneiras de elogiar autores cujos livros sequer abrira ou lera por alto, como Proust, e esculachar outros, como Anatole France. A propósito, se esquecemos do que trata um livro que efetivamente lemos, podemos considerá-lo lido? Aqui e ali Bayard menciona personagens de Graham Greene, Umberto Eco e David Lodge que questionam a necessidade da leitura tal como vem sendo há séculos praticada. Que utilidade tem saber que Leopold Bloom come um sanduíche de gorgonzola no almoço?, questiona Bayard. Mais vale saber que Ulisses é um romance experimental de Joyce, inspirado na Odisséia de Homero, que faz uso do "fluxo de consciência" para descrever um dia (16 de junho de 1904) na vida de alguns poucos dublinenses, já não fará feio numa roda de amigos cultivés. E o prazer da leitura? Uma coisa é saber que Dostoiévski introduziu a psicologia no romance ou que Capitu tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada, outra é experimentar, com o máximo de concentração, a febril deambulação de Raskolnikov por São Petersburgo e a crescente paranóia de Bentinho de que foi corneado pela mulher. A seus alunos e também aos filhos, Bayard ensinou pessoalmente a sua "prática indisciplinada da leitura": primeiro, examinar a capa e a lombada do livro; depois, ler a primeira frase, passar os olhos nas passagens cruciais, e monitorar tudo o que a seu respeito é dito e publicado. Dito por quem o tenha lido de cabo a rabo, presumo; do contrário, como iremos localizar as tais "passagens cruciais"? Livros que se tornam fenômenos por razões extra-literárias, divulgados e discutidos ad nauseam pela mídia, são autênticos pitéus coloquiais. Mas quantos de vocês aí leram até o fim Os Versos Satânicos e O Nome da Rosa? Descomplexidamente confesso: nem abri o primeiro e não consegui ir além da trigésima sexta página do segundo. A proposta de Bayard soa leviana, para não dizer funesta (e rimar com modesta). Imagino o horror causado em culturalistas & bibliômanos como Harold Bloom, E.D. Hirsch, Alberto Manguel, Sven Birkerts, e nos apóstolos do "close reading"; e o prazer dado a Franco Moretti, excelente ensaísta e professor da Universidade de Stanford, na Califórnia, que até na Alemanha causou sensação com uma conferência sobre "como falar em literatura sem nunca ter lido um romance." Mas é inegável que Comment Parler des Livres que l'on n'a pas Lus? diverte e funciona como quebra-galho social, cheio de dicas para fazer farol e evitar gafes com autores e leitores tradicionais. Ou mesmo escrever resenhas: "Ponha o livro à sua frente, feche os olhos e tente perceber o que nele possa interessá-lo. Aí, então, comece a escrever sobre si mesmo." Na presença de um autor, o mais aconselhável é elogiar sua obra sem entrar em detalhes. Detalhes, diante dos elogios, são irrelevantes. E, quanto mais vaidoso o autor, muitíssimo mais relevantes os elogios. Deixar o subconsciente expressar sua relação pessoal com a obra, nem que seja para discorrer apenas sobre a expressividade da capa e a elegância da tipologia, é outro conselho que Bayard oferece à sua clientela. Falar de si mesmo, usando o livro como pretexto, sem aprofundar-se no conteúdo, costuma funcionar, principalmente quando o tergiversador força a imaginação e acaba inventando o seu próprio livro. "Não quero justificar a não leitura, apenas ensinar as pessoas a viver sem pânico com os livros, ajudá-las a encontrar seus próprios caminhos através da cultura, inclusive aquelas alheias ao universo da palavra escrita, que, de tão apegadas à cultura das imagens, têm dificuldade de voltar à leitura. Quero evitar que a cultura cause novos traumas, que a leitura continue sendo vista como um aterrorizante espectro do conhecimento. Quero libertar os alunos da produção de relatórios exaustivos sobre tudo o que leram, obrigados pelo professor. Isso não é leitura, é burocracia." Bayard quer muita coisa. Eu também. Ler seu livro, por exemplo. Ou vocês acham que eu cometeria a descortesia de o ler antes de escrever as linhas acima? Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado em 11 de novembro de 2006, no "Caderno 2" d'O Estado de São Paulo.
Para ir além , COMO FALAR DOS LIVROS QUE NAO LEMOS? Autor: BAYARD, PIERRE Tradutor: JANOWITZER, REJANE Editora: OBJETIVA Assunto: LITERATURA ESTRANGEIRA-TEORIA E CRITICA LITERARIA .
Neste ensaio, Pierre Bayard trata uma questão comum no dia-a-dia - como falar dos livros que não lemos? Numa mesa de bar, numa reunião em família ou numa roda de amigos é preciso ter noções dos assuntos em pauta para não passar vergonha. Bayard considera o 'não-leitor' uma figura tão importante como o devorador de livros. . Saiu na Imprensa: Correio Braziliense / Data: 17/2/2008 Literatura e Liberdade
O bibliotecário do romance O homem sem qualidades (Robert Musil) confessa ao militar que nunca leu um livro sequer dos milhares de exemplares guardados na biblioteca pela qual é responsável.A leitura de um único exemplar embaralharia todo o seu saber sobre a leitura. O importante é saber do que tratam os livros, não lê-los. O poeta Paul Valéry vai pelo mesmo caminho. Não achou necessário ler Marcel Proust para proferir conferências sobre Em busca do tempo perdido.Tampouco considerou a possibilidade de mergulhar nos livros de Anatole France antes de homenageá- lo em público.

Valéry louva a separação entre obra e autor. E não tem pudores em considerar benéfica a exclusão do autor e do texto quando se transita pelo terreno da crítica literária. Bizarro, mas tem mais. E na voz de vez de Umberto Eco. Basta ler ou ouvir falar o que se disse de determinado livro para comentá-lo. Tem também Michel de Montaigne. O filósofo francês garante que ler um livro e esquecê-lo é o mesmo que nunca tê-lo lido, embora isso não prejudique em nada o leitor. Claro que o fato o transforma em um não-leitor, mas paciência.

Professor de literatura francesa na Universidade Paris 8, na periferia parisiense, o contemporâneo Pierre Bayard junta Valéry,Montaigne, Eco e outros para mostrar a falta de propósito em ler um livro com o único objetivo de comentá-lo. "Como falar dos livros que não lemos?" parece um ensaio. São 208 páginas sobre um modo curioso de leitura. No prólogo, o autor explica que não lê.Mas o autor é personagem e uma conversa com Pierre Bayard revela não ser bem um ensaio o gênero do livro, mas uma ficção escrita por um personagem fictício transmutado em autor. Tudo leva o leitor a crer que trata-se do próprio Pierre Bayard, mas não é.

“Eu leio, e muito. O personagem conta que não cresceu entre livros e, claro,não é o meu caso”,explica.O professor já experimentou a fórmula em outros livros. Reinventou, sempre em tom de ensaio, o final de vários clássicos em outras publicações. A mais recente é Como melhorar as obras fracassadas?. Inédito no Brasil, o livro retoma 13 romances da literatura francesa e sugere como melhorar sua forma e seu conteúdo.

Lançado na França no ano passado e recém chegado às livrarias brasileiras pela Objetiva, "Como falar dos livros que não lemos?" funciona como um bálsamo para aqueles que se sentem culpados com fato de não visitarem a literatura com muito entusiasmo. “Livros aparentemente não lidos não deixam de exercer efeitos sensíveis sobre nós, através dos ecos que nos alcançam”, assegura Pierre Bayard.Um aviso: não se trata de uma tentativa de dissuadir leitores e muito menos de um manual para transitar sem tropeços por entreveros literários.

O professor divide em três categorias as não-leituras. Na primeira, estão os livros sequer consultados. Aqueles que o leitor nem sabe que existem. Ou os de que tem conhecimento, mas nunca tocou ou folheou. O importante aqui não é saber o conteúdo, defende Pierre Bayard , mas a situação do livro. Ou seja, o que ele representa na história da literatura. É o bibliotecário da obra de Robert Musil o exemplo mais contundente.

Em seguida vêm os livros não-lidos, mas eventualmente consultados. E o exemplo de Valéry serve a contento.Em 1923, o poeta escreveu extenso artigo na Nouvelle Revue Française sobre Proust e Em busca do tempo perdido. Detalhe: o poeta nunca leu a obra.Mas é capaz de situá-la no mundo das idéias e fazer sua crítica.Outra categoria importante abrange os livros dos quais se ouve falar. Em O nome da rosa, Umberto Eco conta a história de um monge capaz de reconstituir o conteúdo de um livro que não leu por meio de uma simples investigação sobre o tal volume. E, finalmente, a categoria das leituras esquecidas.Nesta, o próprio Pierre Bayard confessa se incluir inúmeras vezes.

Veja mais
Zero Hora / Data: 16/2/2008 COMO FALAR DOS LIVROS QUE NAO LEMOS?

Os livros que não lemos Professor de literatura francesa na Universidade de Paris, Pierre Bayard discute a indeterminação dos conceitos de leitura e de não-leitura em ensaio best-seller que defende a tese de que cada leitor monta sua própria rede de relações com uma obra

CARLOS ANDRÉ MOREIRA

A cautelem-se os que costumam comprar um livro instigados pelas promessas contidas no título. À primeira vista, a obra Como Falar dos Livros que não Lemos (Objetiva, 207 páginas) parece um volume de auto-ajuda para picaretas e arrivistas de toda ordem. E mesmo que em seu terço final ele às vezes chegue perto disso, mas não muito, o livro do professor francês de literatura Pierre Bayard é um delicioso e instigante ensaio sobre as contradições e dificuldades das definições correntes do que venha a ser leitura - e, por conseqüência, do que pode ser chamado "não-leitura".

Ao abordar o mesmo tema, no magistral Uma História da Leitura, publicado em 1997 no Brasil pela Companhia das Letras, o crítico Alberto Manguel já justificava o uso do artigo indefinido no título da obra devido àquela ser uma dentre as milhares de histórias da leitura possíveis, uma para cada leitor. Com a liberdade formal proporcionada por essa escolha, Manguel construiu sua visão pessoal da história da leitura com uma série de ensaios mesclando depoimentos pessoais com tentativas de sistematizar uma linha narrativa cronológica e classificatória, elencando hipóteses históricas ao mesmo tempo em que apresentava diferentes tipos de experiências de contato com o universo da leitura.

É um caminho em certo ponto similar ao que Bayard trilha em Como Falar de Livros que não Lemos. Ambos os ensaios concordam em um ponto essencial: a leitura é uma atividade cujo poder transformador independe de orientação especializada ou da condução dócil de um cicerone, cada leitor fará dela uma circunstância pessoal. A diferença é que essa conclusão leva Manguel a um elogio da leitura individual, enquanto Bayard aproveita para comentar que, se a leitura prescinde de recomendações de terceiros, mesmo formas socialmente reprováveis de apreciação de uma obra, como a própria não-leitura, são válidas como apreciação artística. O livro de Bayard é a defesa erudita e involuntária do mote de Oswald de Andrade: "não li e não gostei".

Como Falar dos Livros que não Lemos é dividido em três partes. Já na primeira delas o autor detém-se sobre as complexas nuanças existentes em alguns conceitos tomados universalmente como válidos. A fim de estabelecer desde logo as ferramentas de sua reflexão, Bayard descarta a, para ele pouco clara, distinção entre livros lidos e não-lidos. Um livro não-lido pode ocupar um espaço tão central em uma cultura que determinados leitores terão sobre ele tantas informações quanto aqueles que o leram. E, mesmo no âmbito mais restrito das obras a quem alguém realmente se dedicou, há gradações para o que sobrou dessa leitura. Alguns lerão até boa parte antes de desistir, e outros lerão um livro inteiro e reterão sobre ele uma memória mais pálida do que a daqueles que não leram uma determinada obra, mas têm conhecimento do que dela já se disse, já se estudou e de sua importância: "É difícil, como se vê - e os fatos só vão acentuá-lo - determinar com precisão o que é a não-leitura, e, conseqüentemente, o que é a leitura. Parece que nós nos situamos, o mais das vezes, ao menos no caso dos livros que nos acompanham no interior de uma determinada cultura, em um território intermediário entre as duas, a ponto de se tornar difícil dizer, na maior parte dos casos, se nós os lemos" - escreve Bayard.

Com o humor refinado que permeia todo o livro, Bayard propõe novas classificações, e as apresenta detalhadamente na primeira parte. Substitui "lido" e "não lido" por quatro categorias que pretendem abranger a variedade de interações de um leitor com a obra. São elas: os livros "desconhecidos", a grande maioria sobre a qual nada se sabe; os "folheados", aqueles que foram manuseados tendo sido percorridos até o fim ou não; os "de que ouvimos falar", sob os quais nos chegaram informações seja pela rede de trocas culturais da tradição seja pela resenha de uma publicação, como esta aqui; os "esquecidos", aqueles que, mesmo seguidos palavra por palavra até o fim vão gradualmente sendo erodidos da memória. Com exceção da categoria dos "desconhecidos", contudo, as demais não são estanques: nada impede que tenhamos ouvido falar de um livro que mais tarde folhearemos - e é impossível reter na memória humana a totalidade, palavra por palavra, de um livro, e portanto todos eles, em maior ou menor grau, são parcialmente esquecidos. O que sobra de cada um são ilhas de compreensão conectadas pelo impacto que a obra produziu no leitor.

Falando assim, parece um árido exercício de taxonomia, mas a obra de Bayard, plena de uma ironia sutil, garante o interesse recorrendo, com texto impecável, a exemplos tirados da própria literatura: Proust, Valéry, Umberto Eco, Robert Musil, entre outros. Todos parte do que Bayard chama, em defesa de sua tese, de "biblioteca coletiva", o grande continuum literário para o qual cada autor contribuiu e no qual se situa de acordo com sua importância. O patrimônio coletivo que permite a alguém dissertar e ter opinião sobre um livro que não leu: a capacidade de situar autores e textos no grande panorama da literatura.

"Para um verdadeiro leitor, preocupado em refletir sobre a literatura, não é um livro específico que conta, mas o conjunto de todos os outros, e prestar atenção exclusiva em um único traz o risco de perdermos de vista o conjunto e aquilo que, em todos os livros, faz parte de uma organização mais ampla e que permite compreendê-lo em profundidade."

Na segunda parte, Bayard vai um pouco além: cada leitor vai priorizar aquilo que a ele interessar na grande biblioteca coletiva. Some-se a essa idiossincrasia o fato de que a recepção de um livro muda de acordo com o espírito do tempo e com a cultura na qual o leitor está imerso (Bayard exemplifica com o hilário relato de uma pesquisadora em dificuldades para explicar Hamlet a uma tribo africana que, para começar, não acredita em vida após a morte, divergindo já na primeira cena do catalisador da peça, o fantasma do rei morto). Em decorrência dessa combinação de fatores, as relações simbólicas, intelectuais e afetivas que um leitor estabelece com uma obra jamais serão as mesmas que as de outro leitor. E, já que muito do que se leu costuma desaparecer da memória, todo livro lido com paixão virá a ser substituído na mente e no coração do leitor por um outro livro, o livro que ele considera ter lido, não necessariamente o mesmo que o autor pensa ter escrito.

"Mas, sobretudo, já que é verdade que os livros interiores de duas pessoas não podem coincidir, é inútil lançar-se em longas explicações diante de um escritor, que se vê ameaçado de ter a angústia aumentada à medida que evocamos o que ele escreveu, experimentando a sensação de que estamos lhe falando de um outro livro ou de que nos enganamos de pessoa.

Ah, sim, e se alguém ficou curioso, na terceira parte Bayard chega enfim aos sutis conselhos para que um leitor se desvie com elegância das situações em que precisa falar de um livro que não leu. Também aqui o livro vale não pelas supostas dicas, e sim pelas pertinentes reflexões que Bayard retira delas. A grande ironia é que o livro, best-seller quando lançado na França no ano passado, foi alvo de uma série de ataques de quem viu nele um incentivo à trapaça intelectual. Algumas das críticas claramente feitas por pessoas que não leram a obra. E, pelas proposições de Bayard, tão válidas quanto esta, escrita por um sujeito que leu, folheou e conheceu o livro, e que neste, exato momento, provavelmente já começou a esquecê-lo e a substituí-lo por outro.

O Globo / Data: 19/1/2008 Desconhecidos, folheados ou esquecidos...

À primeira vista, o livro "Como falar dos livros que não lemos?" parece um guia de humor. Com esse nome curioso, capítulos intitulados “Não ter vergonha” e “Situações de discurso com o ser amado” e uma tabela de abreviações em que são sugeridas as classificações LD, LF, LO e LE — livros desconhecido, folheado, de que ouvi falar e esquecido —, o ensaio que a Editora Objetiva acaba de lançar no Brasil pode aparentar ser mais uma obra para impressionar os amigos. Mas não é nada disso, garante seu autor, o professor de literatura francês Pierre Bayard. — Há uma compreensão equivocada de que meu objetivo é desestimular as pessoas a lerem. É o contrário. Eu sou um fã dos livros. Mas eu quero que as pessoas tenham uma boa experiência com a leitura. Na escola, a gente aprende a ler somente de uma maneira. Os professores falam dos livros importantes e dizem que você precisa lê-los do início ao fim, da primeira palavra até a última. O que eu defendo é a liberdade na leitura — explicou Bayard, por telefone, ao GLOBO.

Mais do que uma defesa sobre a liberdade, o livro de Bayard é um ensaio extremamente bem fundamentado sobre todo o processo de leitura — ou, como o autor prefere, o processo intermediário que existe entre a leitura e a não-leitura. Parece confuso, mas no texto do professor francês tudo fica extremamente agradável e simples. A partir de obras de outros escritores, ele disseca as situações pelas quais passa um leitor, de diversas origens e formações. Através de um obituário escrito pelo poeta e filósofo francês Paul Valéry na morte de Marcel Proust, por exemplo, Bayard explica que é possível falar sobre a obra de alguém mesmo sem tê-la lido por completo. Em outro momento, ele trata do enredo de "O nome da rosa”, de Umberto Eco, no qual o monge Guilherme de Baskerville investiga assassinatos cometidos num monastério. As mortes envolvem um dos volumes da “Poética”, de Aristóteles, obra no qual ele faz uma análise do riso. O detalhe que interessa a Bayard é que Baskerville deduz os crimes sem nunca ter lido a obra de Aristóteles. — Mesmo alguns livros que não lemos fazem parte de nossas vidas. São os livros sobre os quais nós ouvimos falar. Eu não devo ser capaz de dizer exatamente o que eu li sobre Hegel, Kant, Freud ou Proust. É claro que eu li muita coisas desses autores, mas é que eu também li muitos livros que falam sobre esses autores. É difícil diferenciar uma coisa da outra. É estreito o limite entre ler e não ler. Quantas pessoas podem dizer que leram da primeira linha até a última linha, da capa até a contracapa, a “Bíblia”? — questiona Bayard. Já no capítulo “Situações de discurso diante de um professor”, o professor francês analisa o estudo da antropóloga americana Laura Bohannan com os tiv, um grupo étnico da África Ocidental. Nele, Laura relata a experiência que teve ao, oralmente, contar a alguns deles a história de “Hamlet”, de Shakespeare. O resultado foi que os tiv questionaram várias passagens do livro, por não entenderem, por exemplo, o significado de um fantasma ou não acharem estranho que a viúva Gertrudes se casasse pouquíssimo tempo depois da morte do marido. Bayard desenvolve, então, um conceito que ele chama de “livro interior”, uma espécie de filtro que varia de cultura para cultura e que determinaria a recepção de novos textos por parte do leitor. — Eu acho que alguns livros importantes não o são para mim ou para você. Isso não significa que é para se sentir culpado caso você não se saia bem lendo alguma coisa. Eu digo para os meus estudantes que eu não fui bem sucedido em ler “Ulisses”, do Joyce. Talvez não fosse o livro para mim. E não me sinto culpado em não ter lido “Ulisses” e explicar do que ele se trata — diz. Sobre os livros lidos e esquecidos, Bayard cita o ensaísta francês do século XVI Michel de Montaigne. Em seus “Ensaios”, Montaigne diz que, depois de ler um livro, detalhes “pequenos” como o autor e as palavras eram esquecidos prontamente. Até mesmo seus próprios escritos se perderiam na memória com o passar dos anos. Bayard afirma que Montaigne teria conseguido apagar qualquer limite entre leitura e não-leitura. O autor diz que a “confissão” do ensaísta nada mais é do que um resumo da relação que todas as pessoas têm com os livros. “Não guardamos em nossa memórias livros homogêneos, mas fragmentos arrancados de leituras parciais”, escreve ele. — Existe uma situação intermediária entre apenas ler ou não-ler um livro. Os intelectuais conhecem bem essa situação porque estão acostumados a folhear os livros, a começar uma leitura e não terminá-la. Mas muitas pessoas não entendem isso — afirma Bayard. — Quando alguém vai ao meu apartamento, vê aquela quantidade imensa de livros e pergunta se eu li todos, eu francamente digo que não. A questão é que eu vivo com os meus livros, eles são minhas companhias, meus amigos. Quando eu tenho problemas, eu peço a eles a solução, mas não leio todos. Dessa biblioteca, o professor francês tem dois volumes que podem resumir bem o espírito de liberdade pregado em "Como falar dos livros que não lemos?" (208 páginas). Um é a resposta dele à pergunta “qual o melhor livro que você não leu?”. Já o outro é uma confissão sobre um autor brasileiro. — “Ulisses” é o livro que não li e mais gostei. Eu tenho certeza que é um ótimo livro. Há muitas garotas que são interessantes, mas que podem não ser para mim e podem ser para você. A lógica é a mesma — brinca o simpático Bayard. — Dos autores brasileiros, eu adoro Machado de Assis. O “Dom Casmurro” eu realmente li. E até o reli. Reler é também uma ótima forma de ler um livro. É importante ser um leitor criativo. André Miranda

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