quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A escrita feminina no panorama literário africano em língua portuguesa

A produção literária de autoria feminina ainda é muito incipiente nos países africanos de língua portuguesa. Isto constitui um paradoxo, já que durante as lutas libertárias as mulheres desempenharam importante papel político nas organizações que lutavam contra o colonialismo.

A literatura angolana se solidifica no final de 1940 com o movimento «Vamos Descobrir Angola», que gerou as bases literárias consolidadas e atestadas «pelos variados prêmios outorgados aos escritores, como o prêmio Camões, concedido a Pepetela em 1997» (Macêdo, Tania. In: Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa, p. 157).

No cenário literário angolano figura como precursora na poesia Alda Lara, autora de Poemas (1966), Poesia (1979) e de um livro de contos intitulado Tempo de Chuva (1973). A temática de sua obra é a opressão, que assola homens e mulheres em geral, e, apesar de abordar questões universais como a fraternidade, a solidariedade e a paz, seu enfoque poético está direcionado para as formas de ação feminina na busca do espaço sonhado, em especial nos anos de 1950-1960, quando se intensificava o projeto libertário angolano.

Tal projeto se nutria da utopia de homens e mulheres compartilharem a construção da nação idealizada pelos angolanos. Com nítida percepção do sofrimento que assolava a humanidade da época, Alda Lara ultrapassa a concepção nacionalista para ouvir as «vozes silenciadas» além da África de língua portuguesa:

Os gritos perderam-se sem encontrar eco.
Os punhos cerrados e os ódios calados
Dividiram os Homens,
que se não reconheceram mais...

Mas as lágrimas cavaram sulcos fundos
nos olhos vazios de esperança,
e os sulcos não se apagaram...

(«Poema», in:Antologia da poesia africana de língua portuguesa, Rio de Janeiro: Lacerda Editores, p.67).

Trilhando entre o «eu», o sonho e o povo, características que a aproximam de Alda Lara, Noémia de Sousa direciona seus versos para apreender o próprio «eu» como expressão da subjetividade feminina repleta de imagens que corporificam os desejos «espirituais, admirações, dores e sensações» (Mata, Inocência. Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, p. 122).

Em busca de uma maneira singular de ser moçambicana, Noémia de Sousa privilegia a investigação da infância, alicerçada na memória dos elementos da terra. As imagens da terra construídas em sua poesia corporificam a confraternização com sua infância rememorada imageticamente por meio de símbolos típicos de Moçambique, revivificados num código lingüístico repleto de marcas acústicas que caracterizam uma recorrência da poesia fundada na oralidade.

A valorização do ritmo, da musicalidade, da repetição de termos e expressões, das frases feitas, das sentenças, dos ditos e dos refrões, aspectos oriundos da oratura, enriquecem o fazer poético de Noémia de Sousa, que estabelece um pacto com o contexto, com a história local, o que reforça a autenticidade de sua poesia vincada na moçambicanidade. Segundo Alfredo Margarido, se as raízes do poeta são autenticamente moçambicanas, suas razões de ser, de estar, de existir terão também de ser moçambicanas (Margarido, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa, p. 486).

Noémia de Sousa não tem livros publicados, mas deixou um legado literário de impacto, como bem definiu António Jacinto ao tomar contato com o caderno Sangue negro, composto de 43 poemas, em 1951. Em suas reflexões, António Jacinto viu naquele discurso um caminho que poderia ser tomado também pelos angolanos em sua produção literária. «O impacto dos poemas propagou-se à Casa dos Estudantes do Império. Noémia de Sousa nunca publicou qualquer livro, para além desse caderno policopiado, de divulgação clandestina, pois nem todos os textos poderiam circular sem problemas» (Laranjeira, Pires. Literaturas africanas de expressão portuguesa, p. 269).

Numa fase em que os jornais eram o lugar de reflexões contundentes, parte dos poemas de Noémia de Sousa circularam por revistas, jornais e coletâneas da época, como O Brado Africano, Itinerário, Vértice e Mensagem (CEI), entre outros. O fazer poético desta autora encontrou no ser negro envolto numa aura de valoração do que é da terra seu viés discursivo para contestar a colonização em Moçambique. Segundo Pires Laranjeira, em Literaturas africanas de língua portuguesa, a poesia de Noémia de Sousa situa-se na intersecção do neo-realismo com a Negritude, embora ainda não houvesse tomado contato com os textos da negritude em voga no Haiti e Cuba, por exemplo.

No poema «Negra», Noémia de Sousa corporifica na imagem feminina características da «mãe-terra», transferindo sensações, desejos e sonhos que sendo aparentemente uma particularidade da mulher moçambicana ali idealizada acabam por forjar no corpo do poema um sentimento que ultrapassa a busca de um «eu» individualizado. Quando o sujeito lírico se identifica como cidadã moçambicana, constata-se que a sua dor é também a das demais mulheres de seu grupo social e se assemelha, numa leitura alargada do poema, à busca da subjetividade feminina que nutre os sonhos das «filhas da mãe negra», ou melhor, da grande mãe África silenciada em várias partes pelo jugo colonialista.

Este poema, na visão de Alfredo Margarido, nos coloca perante as «gentes estranhas» que «com seus olhos cheios de outros mundos» pretenderam captar os encantos da África, mas que, por via dos seus rendilhados cantos formalistas, não puderam aceder à substância autêntica da mulher negra africana. Tal é, afinal, seu grande desejo: identificar a África, identificar-se com ela. (Margarido, Alfredo. Estudos sobre literatura das nações africanas de língua portuguesa, p.488).

Numa leitura intertextual entre «Negra», de Noémia de Sousa, e «Prelúdio», de Alda Lara, verifica-se a força da voz poética feminina, que no dizer de Inocência Mata, em Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, se liga à idéia de regresso e comunhão com a Terra, com o Povo e com a causa coletiva.

As seguintes estrofes do poema «Prelúdio», de Alda Lara, ilustram a busca da identificação imagética da situação a que foram expostas as comunidades africanas de língua portuguesa, em especial as mulheres, durante a colonização:

Pela estrada desce a noite...
Mãe-Negra, desce com ela...
(...)
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
(...)
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...

(MATA, Inocência. In: Literatura angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, p.112).

As marcas da oralidade e da História que permeiam a poesia de Alda Lara e Noémia de Sousa também estão presentes no itinerário poético da angolana Ana Paula Tavares, autora de Ritos de passagem (1985), O lago da lua (1999) e de um livro de crônicas intitulado O sangue da buganvília (1998). Ana Paula busca o espaço profícuo para encenar na força criativa das palavras formas e tons de uma escrita singular. Presenciam-se em seu discurso cenas de dor, de carência, de guerra e de morte, subjacentes a uma voz lírica que trilha a tradição, recriando o passado a partir da seleção e interpretação do patrimônio cultural angolano para converter as inúmeras vozes femininas presentes em seu texto numa poética do «grito» libertário, para além do silenciado cercado a que as mulheres angolanas estiveram culturalmente submetidas.

A ensaísta Laura Cavalcante Padilha, no artigo «Paula Tavares e a semeadura das palavras», assinala a presença da «palavra grito» nos textos da poetisa como forma de «tentar quebrar o silêncio, pois o sujeito histórico reconhece a necessidade de preencher tal silêncio. De qualquer modo e com muita urgência» (in: África & Brasil: letras em laços, p. 288).

Ana Paula Tavares percorre o universo que protesta contra a situação vivida pelas mulheres e crianças de sua pátria. Em O sangue da buganvília: crônicas, a autora diz:

Faz falta a palavra grito a crescer por cima desse silêncio todo, construída livremente com o respeito antigo pelo lugar, mas trazendo as novas do tempo, dos participantes e das promessas. É preciso que a palavra acolha esta mais-valia de tantos anos de espera e silêncio e se solte e proteste e renasça na plantação das consciências (p. 33).

Assim, o caos deixado pela guerra não esconde a raiz de sua procura: um desejo de conhecimento do mundo que necessita, com urgência, reencontrar o sentido da humanidade. Ele aponta, antes, para um retorno às origens, uma abertura para outra possibilidade de organização do mundo a partir do som, do grito, da palavra poética. Dimensionada pelos sentidos que recuperam através da palavra o cheiro, os sons, os ritmos da terra, como referências para cruzar aspectos da tradição angolana e da fala das mulheres partida pela história de guerras e exclusão a que foram submetidas.

Sob o signo da letra, a obra de Ana Paula Tavares pode ser definida pelo acúmulo de experiências da vida diária, transformando sua terra e sua gente em matriz de sentidos. Assim, o perfil de uma especial face angolana em seus poemas monta-se por meio da convergência de signos como fogueiras, gado, lago, lua, lavras, frutos, etc. Todos organizados segundo o princípio da contenção que favorece uma sintaxe singular dos sentidos.

No cenário poético contemporâneo situa-se também Vera Duarte, cabo-verdiana com poemas publicados em várias antologias poéticas e autora do livro Amanhã amadrugada (1993). Com um discurso marcado por sua posição política, esta escritora procura interpretar os sentimentos e sonhos daqueles que metaforiza por meio da voz lírica, e capta o desejo de

(...)
Homens mulheres crianças
Na pátria livre libertada
Plantando mil milharais
Serão a chuva caindo
Na nossa terra explorada

(DUARTE, Vera. 1993, p.99).

Para reinventar o sentido da vida em Cabo Verde, a poética de Vera Duarte representa abundância vivificante nas horas tristes, reanimadas pela voz lírica feminina que clama por todos aqueles que habitam imageticamente o Arquipélago, que ainda busca no plano real uma saída semelhante à que supriu a falta de chuvas, de liberdade, para vencer a dor que se esvai nos versos:

(...)
Num setembro de chuvas abundantes
a água varreu o lamaçal
limpou os corpos caídos
levou dejectos e tudo
e apenas deixou
- redimidos -
os homens, a terra
e o futuro

(DUARTE, Vera, in: Amanhã amadrugada, p.67).

As imagens dos tempos difíceis são paradigmaticamente apagadas pela chuva complacente, companheira de luta, «amante amorosa que se entrega com doçura» (Sepúlveda, Maria do Carmo, in: África & Brasil: letras em laços, p. 334) ao processo de purificação na reinvenção poética capaz de tecer os sonhos para alimentar a alma do homem cabo-verdiano.

A escritura de Vera Duarte constrói-se a partir da ruptura com as formas canônicas do verso, demarcadoras dos limites entre a prosa e a poesia. Ela elabora seus textos livremente com o intuito de se libertar das amarras a que está submetido o sujeito, símbolo daquelas vozes que encontram na poesia a invocação à natureza.

Vozes pedindo chuva...
tuas rochas pedindo chuva...
terra à espera de chuva
poemas de chuva caindo

(Duarte, Vera. p.78).

Para concluir o panorama literário das vozes femininas dos países de língua portuguesa, convoca-se aqui Paulina Chiziane, autora de A balada de amor ao vento (1990), Ventos do apocalipse (1995), O sétimo juramento (2000) e Niketche, uma história de poligamia (2002). Estas duas últimas obras criticam os costumes e a postura patriarcal da sociedade moçambicana, e também a prática de obter o poder a qualquer preço. Estas obras distintas têm em comum a denúncia dos tortuosos meios encontrados por um sistema social que silencia as vozes femininas em prol de uma valoração das ações e feitos masculinos.

Em O sétimo juramento os valores animistas constituem o foco da narrativa, que traz à tona uma prática recusada pelo sistema colonial, mas subentendida no comportamento sócio-cultural vigente durante o processo revolucionário moçambicano. No dizer de Ana Mafalda Leite (Literaturas africanas e formulações pós-coloniais, p.69), o "apagamento" das tradições religiosas animistas e a ocidentalização dos costumes levaram, por um lado, ao seu recrudescimento clandestino e, por outro, à incapacidade de defesa e compreensão comportamental que possibilitavam. O choque cultural se faz presente nesta passagem de O sétimo juramento:

− Diz-me, avó, pode o meu filho estar possesso, pode? − Os espíritos fazem a vítima sofrer. Abrem caminhos, fecham caminhos, transtornam. Dão cabo da cabeça, enlouquecem. (...) Estou a rever memórias do tempo antigo. (...) As almas não morrem, Vera, encarnam-se. E este filho nunca foi teu, nunca te pertenceu. Começa por decifrar o mistério do seu nome (...) No nome está a raiz do problema. Os antepassados sempre disseram A VITO I MPONDO (Chiziane, Paulina, p. 59).

Além da fragmentação conceitual acerca dos rituais do passado, visíveis na fala da personagem que protagoniza a cena de possessão do filho, constata-se no decorrer da leitura que ela se torna vítima da ambição de um homem que faz uma "viagem iniciática ao mundo dos mortos, não olhando a meios, sacrificando ritualmente a família, para conseguir os seus almejados objetivos" (Leite, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais, p. 70).

Neste cenário de poder masculino, a figura feminina encontra-se duas vezes violentada pelos códigos sociais estabelecidos: pelo patriarcado e pela ausência de conhecimento sobre as tradições religiosas da comunidade a que pertence, e que a ajudariam a compreender pelo menos os efeitos das ações daquele homem nos membros da família, quando estabelece um pacto com os «mundos infernais» para obter rapidamente o poder desejado.

A crítica aos costumes patriarcais destoantes em O sétimo juramento também será feita pela via da ironia em Nieketche, uma história de poligamia. Segundo Ana Mafalda Leite, Nieketche está inscrita numa linha narrativa feminina de crítica à poligamia, que se tornou recorrente no cenário literário de mulheres africanas que buscam denunciar por meio da paródia a «forma perversa como a poligamia foi adulterada na sociedade urbana, não se respeitando os direitos que as mulheres tinham na sociedade tradicional» (Leite, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais, p. 70).

Entre os temas propostos pelas escritoras, está o repensar da condição feminina, num cenário social marcado pela opressão, pela submissão feminina e pelas guerras coloniais que silenciaram a confraternização presente no ritual do contar estórias em volta das fogueiras. Mas há também lugar para o amor revivificado na intersecção dos tempos, ponto de convergência entre tradição e modernidade.

A poética e a prosa femininas nas comunidades africanas de língua portuguesa colocam o leitor diante de cenas e sinais de mulheres em espera e ação, em silêncio e canto, em cansaço e renovação, metaforizadas por vozes marcadamente orais que aproximam os sentidos na reescrita literária, reinventando imageticamente o papel da mulher nessas comunidades.

Notas

Professora Doutora Substituta da Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro -UERJ

.

in

união dos escritores angolanos

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