terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Agostinho Neto - A poesia como arma de Combate

 


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A poesia como arma de combate

Outra das vozes denunciadoras da violência colonial, e que de Lisboa ecoaria nas matas do Norte angolano, foi Agostinho Neto, poeta de rara capacidade discursiva, lúcido e sensível, autor de uma poesia alicerçada nas raízes mais fundas da terra angolana, desvendando angústias, silêncios, cantos sofridos da terra-mãe, com enorme despojamento estético, prodigiosa de ritmo discursivo; um canto linear para se tornar perceptível, um canto para as massas, para o despertar das consciências, transportando outras violências, outras latitudes onde o homem sofra os horrores da fome, da opressão, das injustiças: no Congo, na Geórgia, no Amazonas – uma escrita profundamente humana e solidária.
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Como Neruda, Agostinho Neto sabe que a poesia é ainda e sempre uma arma a usar e a manejar antes de todos os combates, para que o combatente reserve para si essa bagagem, esse cadinho de alma nas atrocidades da luta: ou seja, que a revolta seja justa e ideologicamente consequente; as vontades só se mobilizam se apetrechadas, também, com os instrumentos da arte e da cultura. Toda a revolução é um acto cultural, sabemos isso desde a Comuna de Paris, passando por Lenine, até ao Sartre. Porque, sobretudo, é necessário que o verbo se transmude em acto, que a poesia se transforme em acção criadora e fecunda, redentora, anunciadora do novo: Criar criar/criar nos espírito criar no músculo criar no nervo/criar no homem criar na massa/criar/criar com os olhos secos, mesmo sobre os temores mais fundos, o mais duro e irracional arbítrio, é preciso Criar criar/sobre a profanação da floresta/sobre a fortaleza impudica do chicote/criar sobre o perfume dos troncos serrados, criar sem que a dor se espelhe, junto com a natureza e os homens, com os punhos acesos, com as lágrimas tolhidas, Criar/criar com os olhos secos, para que os opressores não rejubilem, não se julguem eternamente vencedores e isentos de expiação.

Uma luta dos povos

É essa aspiração do direito inalienável a uma pátria livre e justa, a uma luta que o poeta sabia não ser apenas do povo Angolano mas mais larga, juntando nessa frente os povos de África ainda sujeitos à exploração e jugo coloniais, que determina o poema Aspiração, no qual Agostinho Neto regressa às origens do seu espaço, às suas memórias da terra mãe, para nos dar a pungência do inevitável, o desejo de libertação que é, ao mesmo tempo, aspiração soberana de nessa pátria poder inscrever as raízes culturais e identitárias do seu Povo: «Ainda/o meu sonho de batuque em noites de luar//(…) Ainda o meu espírito/Ainda o quissange/a marimba/a viola/o saxofone/ainda os meus ritmos de ritual orgíaco//(…) Ainda o meu sonho/o meu grito/o meu abraço/a sustentar o meu Querer// E nas sanzalas/nas casas/nos subúrbios das cidades/para lá das "linhas"/nos recantos escuros das casas ricas/onde os negros murmuram: ainda// o meu Desejo/transformado em força/inspirando as consciências desesperadas».
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E em registo de revolta íntima, o poema «Sagrada Esperança», traça os contornos perenes de uma luta internacionalista que, no dizer de Oscar Lopes, «é a esperança que, hoje, faz realmente a história, a história de cada pátria que se quer livre (…): todas as mães negras/ cujos filhos partiram. (…) Eu já não espero/ sou aquele por quem se espera/ sou eu minha mãe/ a esperança somos nós.
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De Agostinho Neto, enquanto poeta empenhado no estudo e incremento da nossa língua comum, escreveu Oscar Lopes: Agostinho Neto, que escreveu originalmente algumas poesias em quimbundo, é hoje um poeta apenas publicado em português, para que nenhum compatriota o sinta como especialmente ligado a uma só das etnias da sua pátria. A língua portuguesa funcionava, para Agostinho Neto e outros intelectuais revolucionários, como factor de coesão nacional. Ainda Oscar Lopes: Agostinho Neto, como Amílcar Cabral (…) participou na resistência portuguesa ao fascismo antes da sua luta directamente anticolonial. (…) Ouvi-o a ele fazer distinções características de uma plena maturidade política angolana que a tantos de nós, portugueses, nos falta. Neto distinguia entre os laços culturais luso-angolanos de objectiva raiz histórica – e a barbárie do colonial-fascismo português.
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Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Samora Machel, sabiam que a sua luta não se dirigia «ao Povo português», mas ao regime que a todos explorava e oprimia.

Bibliografia: Resistência Africana – antologia poética org. por Serafim Ferreira (Diabril-1975)
«Cifras do Tempo», de Oscar Lopes (ed. Caminho)
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