Uma das características da Rua 31 de Janeiro na época em que, no século passado, se transformou em importante centro dos comércios do "fato feito", era o ser a preferida dos logistas estrangeiros. Era esse o caso da Casa Vicent.
posted by alquimista @ 3:34 PM
ANTES E DEPOIS
Começou por se chamar Rua de Santo António, por começar junto à Igreja de Santo António dos Congregados (primeira foto), mas, após a implantação da República pasou a chamar-se 31 de Janeiro em homenagem aos precursores deste novo regime que no Porto protagonizaram a primeira tentativa do derrube da Monarquia em 31 de Janeiro de 1891. Essa Revolução fracassou em grande parte devido à famosa "Trincheira da Morte" (segunda foto) instalada pelas tropas fiéis à Monarquia no cimo desta rua e que desbaratou os revolucionários que por ela tentavam subir.
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Rua da Polémica [31 de Janeiro]
Germano Silva -
in "Jornal de Notícias" - Domingo, 21 de Agosto de 2000
A Rua de 31 de Janeiro mudou três vezes de nome, por razões políticas, no espaço de meio século
.Dava sei lá o quê para saber ao certo quem foi a senhora Teresa que deu o primitivo nome à calçada que em tempos idos corria ao lado do mosteiro das monjas de S. Bento da Avé Maria, e que agora continua, paralela à estação do caminho de ferro, mas com a nova denominação de Rua da Madeira. Sei que é topónimo muito antigo que remonta, provavelmente, ao tempo em que por ali se andava a construir a muralha fernandina, ou seja, ao século XIV. Já houve quem quisesse associar o nome daquela dama ao da mãe do nosso primeiro rei – o que não tem qualquer fundamento, além do mais porque a artéria em questão ainda não devia existir ao tempo em que D. Teresa viveu. Agora do que eu tenho a certeza, é que era por ali, por aquela calçada torcicolada que até há pouco mais de duzentos anos se fazia a ligação entre a antiga Porta de Carros e a Praça da Batalha. Porque ainda não existia a actual Rua de 31 de Janeiro. E é sobretudo sobre esta artéria que hoje irei falar.
Por iniciativa de João de Almada e Melo que foi, sem dúvida, o grande reformador do Porto, a Junta das Obras Públicas elaborou um plano de melhoramentos para a cidade que, entre outras, contemplava esta deliberação: "... assentouse que não havendo communicação algua de tranzito comodo entre o Bairro de Santo Ildefonso e o do Bonjardim, se divião abrir duas ruas de communicação entre estes dous Bairros... e que a primera dessas ruas deve principiar a sua abertura na frente do Pateo da Igreja dos Congregados, e seguir a sua diresão em linha reta a dezembocar na frente da Igreja de Santo Ildefonso." Estava, pois, projectada a abertura de uma nova rua no Porto.
Embora a decisão de abrir a nova artéria tivesse sido tomada em 1784, foi só a partir de 1805, dezanove anos depois da morte do seu mentor, digamos assim, que o novo melhoramento ficou à disposição do público e, naturalmente, ao serviço da cidade. O primeiro nome dado à nova artéria foi o de Rua Nova de Santo António. De Santo António, compreensivelmente, por ter o seu início junto da igreja de Santo António dos Congregados, também conhecida por Santo António da Porta de Carros, por ficar em frente a esta porta aberta na muralha. Nova, para a distinguir de uma outra artéria que já tinha o nome de Santo António e que ficava relativamente perto daquele mesmo sítio. Era uma rua que estabelecia a ligação entre o alto da então chamada Calçada dos Clérigos (agora rua) e a Rua da Picaria, também denominada, exactamente por isso, Rua de Santo António da Picaria. Desta artéria, que se estendia até aos extintos Lavadouros, existem ainda alguns belos prédios setecentistas na parte nascente da actual Praça de D. Filipa de Lencastre.
.Já tudo desapareceu. A partir de 30 de Agosto de 1874, porque já não existia a tal Rua de Santo António que ligava o alto dos Clérigos com a Picaria, a outra artéria, a partir daquela data, passou a chamar-se simplesmente Rua de Santo António, tendo-lhe sido retirada a palavra Nova. Depois de 1910, com a implantação do regime republicano, e tendo em conta que naquela rua tivera o seu trágico epílogo a primeira revolução republicana que houve em Portugal, no dia 31 de Janeiro de 1891, a Câmara, em homenagem aos revoltosos, deu a essa artéria o nome de Rua de 31 de Janeiro. Durou trinta anos esta denominação. Em 1940 a Câmara do Estado Novo restituiu à rua o seu antigo nome. Mas esta mudança não foi pacífica. Suscitou até larga polémica nas páginas de alguns jornais da cidade, porque havia muita gente que se opunha à alteração, praticamente imposta pelo regime autoritário então em vigor. Trinta e quatro anos depois, logo a seguir à Revolução dos Cravos, a rua volta a readquirir o nome com que homenageia a Revolução Republicana de 1891. Até hoje.
.A construção da nova artéria não foi tarefa fácil. O declive do terreno dificultou de certo modo os trabalhos. Para se avaliar melhor dessa dificuldade, bastará dizer que uma grande parte da rua está assente em robustas arcadas de pedra que formam uma espécie de túneis que, inclusivamente, dão passagem de um lado para o outro. Na parte mais baixa, isto é, nas proximidades da entrada da actual Rua de Sá da Bandeira, que naquela época ainda era a Rua do Bonjardim, houve necessidade de usar a técnica da estacaria para ultrapassar as dificuldades surgidas com a "mina do Bolhão" que por ali passava e que abastecia de água o Mosteiro de S. Bento da Avé Maria.
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Duas curiosidades
.Tratando-se de uma das mais prestigiadas ruas da cidade no que diz respeito a actividade comercial, muito haveria a destacar desse ponto de vista. mas como o espaço não abunda, irei aqui focar apenas duas interessantes curiosidades. de entre as muitas e bem seleccionadas casas comerciais que ornam a nova artéria, contava-se um bem afreguesado estabelecimento de venda de jóias de imitação denominado Bera Diamond Palace que, rapidamente, conquistou um invulgar sucesso. A popularidade deste estabelecimento foi de tal modo projectada na cidade, que a palavra "bera" passou a ser utilizada para depreciar qualquer objecto que não fosse verdadeiro ou que não tivesse qualidade.
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Outro estabelecimento, e este ainda em actividade, é a Farmácia Central. O seu fundador de apelido Salgado, quis acrescentar àquele nome o de Lencart e ficou a ser Salgado Lencart. Formou este último nome com as letras da palavra Central e passou a usar a denominação Lencart para todos os produtos que eram manipulados na sua farmácia.
in http://barnabe.weblog.com.pt/arquivo/068616.html
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No dia 31 de Janeiro de 1891, pelas duas horas da madrugada, vários regimentos de cavalaria, infantaria, caçadores e guarda fiscal convergiram no Campo de Santo Ovídio. Ao mesmo tempo, no quartel de infantaria 18, na actual Praça da República, duas companhias arrombaram as portas do aquartelamento e juntaram-se aos revoltosos. “Nisto aparece a música do 10 de infantaria, que forma à frente das tropas executando A Portuguesa. As cornetas tocaram, e as forças puseram-se em marcha, enquanto alguns populares a saudavam e os sinos da Lapa tocavam a rebate” (Ilustração Portuguesa, 1891).
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Faz hoje precisamente 114 anos que Portugal fez a primeira tentativa para se livrar de vez da monarquia. É, e deverá ser para sempre, um dia de regozijo.
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O golpe, como se sabe, correu mal. Vinte dias depois do programa do Partido Republicano ter sido aprovado, tropas e povo eram escorraçados num banho de sangue Rua de Santo António abaixo pela guarda municipal instalada nas escadarias dos balaústres da igreja de Santo Ildefonso. A República tinha durado uma manhã, proclamada por Alves da Veiga na varanda da Câmara. Porque falhou? Porque, opina José Augusto Seabra, os revolucionários, “apesar da coragem dos oficiais, dos sargentos e dos soldados, ladeados pelo povo anónimo e conduzidos por chefes como o alferes Malheiro, o capitão Leitão ou o tenente Coelho”, iam “às ordens dos chefes civis empolgados mas pouco preparados para o combate às armas”. Ou porque, diz Maria de Fátima Bonifácio, “os maiorais do partido [Republicano] abandonaram à sua má sorte” os sargentos da guarnição do Porto que fizeram a revolta.
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O 31 de Janeiro é, antes de mais, o movimento de pensadores como Sampaio Bruno, Basílio Teles e João Chagas, homens que estão nos fundamentos democráticos e socialistas que sempre tiveram abrigo na cidade do Porto e na base de uma das mais esquecidas e vibrantes aventuras intelectuais da segunda década do século XX, a Renascença Portuguesa.
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E tudo isto é ainda mais, diz-nos o recentemente desaparecido José Augusto Seabra: “Em todo o caso, como escreveu João Chagas, o 31 de Janeiro foi ‘o mais luminoso e viril movimento de emancipação que ainda sacudiu Portugal no último século’. E por isso mesmo Basílio Teles aduziu, em defesa dos republicanos do Porto, que ‘os erros que cometeram, prejudicando, talvez, a obra concebida por inteligências mais lúcidas e ânimos mais decididos, a posterioridade lhos perdoaria em atenção ao que sofreram, enquanto a monarquia roubava’. É que, com o seu sacrifício, os heróis do 31 de Janeiro fecundaram o húmus de onde iriam brotar as sementes vivas que no 5 de Outubro de 1910 haveriam de germinar na República democrática enfim vitoriosa” (artigo completo, incitando a Porto 2001 Capital Europeia da Cultura a celebrar o 31J, aqui.)
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E quem tem tudo isto a ver connosco? Pergunto num sentido lato, bem para além das esquerdas e libertarismos que convergem no Barnabé, nestes tempos em que somos insistente e exageradamente apelidados de “o blogue do Bloco” (epíteto que gostaria que as pessoas fossem deixando de lado, porque só quem não lê com atenção as opiniões dos aqui oito escreventes é que não percebe as profundas diferenças de opinião que nos unem – sim, diferenças que nos unem). Perguntava: que tem o 31 de Janeiro a ver com todos nós?
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Quero com esta pergunta chegar a isto: à ignorância, ou silêncio, a que a direita vota a história do liberalismo e do republicanismo português. Continuo a não perceber porque é que, num campo exclusivo de evocações de valores, e não de análises históricas, a direita não se reclama também herdeira das lutas que libertaram o país do absolutismo e da monarquia (a ditadura salazarista é outra conversa, claro). Falo, é óbvio, da direita com quem se pode ainda dialogar, uma direita ilustrada. Só vejo um motivo para este branqueamento: o medo de associação aos extremismos – e isso é absurdo. Mas, acima de tudo, ignorância. Qualquer manual de história moderna ensina-nos que também no liberalismo e na I República houve direita democrática – portanto, há um património que a direita de hoje pode reclamar com todo o à vontade. No entanto, nada disso acontece, e com isso, queira a direita ou não, para o melhor e para o pior, nesta discussão é a “esquerda histórica” que fica sempre com saldo positivo na história do progresso em Portugal.
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Que tem então o 31 de Janeiro a ver com todos nós? Que devia ser uma data comemorada por todos. Em relação a isto sou totalmente patriótico. As consequências históricas do acontecido nesta data transformaram aquele dia no Porto numa referência total.
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Em 10 de Abril de 1848, tão só 14 anos depois do liberalismo ter triunfado na Guerra Civil, o republicano Casal Ribeiro publicava o panfleto anónimo É tarde e terminava este texto, no mínimo embaraçoso para D. Maria II, anunciando o inevitável final da monarquia: “Se alguém duvidar, dir-lhe-emos – esperem e verão!”. E todos viram, em 1910, o resultado da obra de anos a fio, de uma forma ou de outra, de um conjunto enorme de lutadores anónimos ou conhecidos, civis ou militares, maçons, carbonários, saint-simonianos, proudhonianos, positivistas, socialistas, comunistas, anarquistas ou simples democratas à procura de um país mais humano.
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No topo deste post está a fotografia dos combatentes civis do 31 de Janeiro, condenados ou absolvidos. Entre eles, João Chagas (terceiro da fila da frente a contar da esquerda), o abade Pais Pinto (quinto da terceira fila), Aurélio da Paz dos Reis (sétimo da segunda fila), Homem Cristo (na última fila, de chapéu) (foto retirada do catálogo Manual do Cidadão Aurélio da Paz dos Reis, Centro Português de Fotografia, 1998). Que gente civilizada! Presos, mas a ler o jornal! E de tranquilíssimas e convictas faces. Como se nos dissessem: “Esperem e verão!”.
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Por acaso costumo vê-los quando vou à minha cidade, ali pelos lados da Baixa, subindo ou descendo a Rua 31 de Janeiro.
Afixado por: JR em fevereiro 1, 2005 04:03 PM
joão macdonald:
Gostei do post.
Mas, permita-me a pergunta: qual é a sua visão da relação entre o Liberalismo e a República ?
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Tenho comigo uma pedra rolada apanhada na praia do Mindelo, no dia do desembarque, pelo meu trisavô (ele próprio o escreveu na pedra que ainda hoje é religiosamente guardada na família). Sim, ele foi um dos 7.500 Bravos. Que foi ferido e quase lá deixou a vida, tendo, nesse dia sido condecorado pelo próprio D. Pedro IV com a Torre Espada que o Rei trazia ao peito.
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Esse lado da minha família (o materno) sempre se orgulhou de ser liberal. E, no entanto, mantiveram-se monarquicos ferrenhos até à morte de D. Manuel II.
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Do outro lado, o paterno, todos eram republicanos ferrenhos. Mas, os seus antepassados foram ... Miguelistas igualmente ferrenhos ! (Hoje, em ambos os lados, há gente de direita, do centro e da esquerda.)
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O que se passou com ambos os ramos da minha família, passou-se com muitas outras: algumas conheço-as bem.
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Não sou socióloga, mas a minha interpretação é a seguinte: os Liberais ganharam e tornaram-se situacionistas; os Absolutistas perderam e viraram oposicionistas. Daí a tornarem-se republicanos foi um passo: era a oposição que havia. Quando surge e Estado Novo, dá-se nova inversão. Os derrotados da República, voltam à mó de cima, e os antigos vencedores da mesma, passam novamente à oposição - socialistas ou comunistas: era o que havia. Com o 25 de Abril o esquema repete-se.
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Onde estão afinal as raizes da esquerda e da direita em Portugal ? Em ideias ? Ou em causas muito antigas que, se formos a ver, talvez tenham ainda mais que ver com as invasões napoleónicas ? Ou mesmo com os exilados do tempo do Marquês de Pombal que importaram de Inglaterra os ideiais de Liberdade, mas também a Maçonaria ?
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E muitas outras questões se poderiam por ...
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PS: não sou socióloga, mas sou licenciada em História, e não me fiquei pela História que aprendi na Faculdade.
Afixado por: Isabel Coutinho em fevereiro 1, 2005 08:17 PM
Cara Isabel Coutinho,
Excelentes questões, que aqui tentarei responder, eu que não sou nem sociólogo nem historiador, nem licenciado em qualquer ciência humana.
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Em primeiro lugar, creio que há um erro de interpretação da sua parte quando afirma que os absolutistas, tendo perdido e virado oposicionistas, passaram rapidamente a republicanos – “era a oposição que havia”. As minhas leituras de modo algum apontam nesse sentido. Aliás, não só até à Patuleia resistiram em vários pontos do país guerrilhas absolutistas, como o próprio D. Miguel ganhou uma aura de D. Sebastião que, entre uns poucos, se prolonga até hoje (para confirmar a popularização do mito, é ler "A Brasileira de Prazins" de Camilo). Mais: pelo menos até ao início do século XX manteve-se vigente um decreto de D. Maria II que proíbia a D. Miguel e seus descendentes a entrada em Portugal, sob pena de morte em processo sumário. Se miguelistas houve que tivessem passado a republicanos, ignoro algum digno de nota (mas admito que seja apenas ignorância minha).
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Por outro lado, a Isabel lança uma questão importantíssima: “Onde estão afinal as raízes da esquerda e da direita em Portugal?”. No que diz respeito ao período posterior à Guerra Civil, creio que a resposta é bastante clara.
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Correndo o risco de ser simplista, permita-me a síntese. A Carta de 1826 estabelece a divisão. A direita é a que defende esta nova Constituição, que mantém o veto do rei, em última instância, superior às decisões do Parlamento. A esquerda é a que protela pelo contrário. O golpe de Setembro de 1836 – o dos setembristas – separou de vez as águas. O cabralismo – portanto, os cartistas –, mesmo com o interregno (1846-47) resultante da Guerra Civil da Patuleia, manteve a Carta de 26. Passando rapidamente por cima de algumas concessões aos setembristas, só após 1851 – isto é, depois do duque de Saldanha ter expulso Costa Cabral do poder –, portanto a partir do primeiro período da Regeneração, é que a esquerda liberal (desde sempre sob a égide de Passos Manuel, entre outros) viu finalmente consagradas as suas reivindicações liminares, entre elas um sistema de eleições directas. Foi, entre outras consagrações, o que aconteceu com o Acto Adicional à Carta de 1852.
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Indo então à sua questão central: como se relaciona o Liberalismo e a República? Pois precisamente a partir da esquerda liberal.
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Primeiro, o contexto europeu. Há um ano essencial para perceber isto: 1848. É o ano em que os ideais liberais e mesmo republicanos se consolidam em países como a Itália, Áustria, Hungria ou Prússia. Tão só porque a Revolução Industrial lança novos conflitos sociais e políticos ao criar novas questões sociais, novas classes, problemas novos e, consequentemente, novas expectativas. O "Manifesto" de Marx e Engels é publicado em 1848. Mau grado a nossa eterna distância em relação a estes cenários principais, não ficámos de todo incólumes às novidades.
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Impossibiltada até 1852 de fazer vingar as suas ideias fundamentais, a esquerda liberal portuguesa – os setembristas, isto é, os radicais –, derrotados que foram na Patuleia (1847) começam um processo teórico e político de esvaziamento do trono da sua relevância política. Eis os argumentos e estratégias: o trono não tem legitimidade porque é hereditário; as consciências devem ser laicizadas através da educação; a fé católica deverá ser substituída pela devoção patriótica. O que temos é então a “gradual republicanização da monarquia”. Aqui está, parece-me, a resposta à sua pergunta de como o Liberalismo e Republicanismo se relacionam.
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(Irmos mais atrás neste assunto, mesmo antes de chegar ao século XVIII, seria contar a incrível vida de Gomes Freire, mas isso é outra história...)
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A Isabel conta-nos a sua história familiar para, se bem entendi, questionar a linearidade das origens e descendências das esquerdas e direitas, do liberalismo e republicanismo. O tema que enuncia é fascinante, muito próprio de um historiador de micro-história (o italiano Carlo Ginzburg, por exemplo), mas eu não posso, não devo e nem consigo entrar por aí. Mas creia-me que entendo perfeitamente como isso pode mexer com as nossas crenças e interpretação do nosso passado familiar e colectivo. Em 1919, durante a brevíssima Monarquia do Norte e as perseguições que aconteceram na cidade do Porto, havia dias, contava a minha avó, em que o seu pai, assustado, pedia ao seu futuro compadre para esconder a bandeira monárquica na casa daquele (que era anarquista e maçon!) e outros em que este fazia um pedido no sentido contrário, ficando a rubra e verde escondida em casa do outro! E o resultado da amizade do monárquico e do anti-monárquico, tão politicamente opostos que eram, foi o casamento dos seus filhos.
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O que eu lhe invejo, Isabel, e ao mesmo tempo alegro-me por existir, é essa relíquia do Mindelo, essa pedra do seu Bravo trisavô. Essa pedra não é de esquerda nem de direita, é de todos nós, que gostamos de viver em democracia.
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PS: Sou apenas um leitor da história, de modo que deixo aqui pelo menos três títulos que me ajudaram e que respondem de forma muitíssimo mais competente do que eu às suas questões: "Esperem e Verão! – textos republicanos clandestinos de 1848", introdução e selecção de textos de Fernando Pereira Marques, Alfa; "História da Guerra Civil da Patuleia 1846-47", Editorial Estampa e "O Século XIX Português", Instituto de Ciências Sociais, ambos de Maria de Fátima Bonifácio.
PS 2: Seria possível obsequiar-nos com uma fotografia da pedra? Muito obrigado.
Afixado por: João Macdonald em fevereiro 2, 2005 03:29 AM
Caro João Macdonald
Obrigado pela sua resposta. Tem razão quando diz que o absolutistas não passaram de imediato a republicados logo após a derrota de D. Miguel.
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A História do Liberalismo é tudo menos linear, e não é fácil, num local como este analisar-lhe todas as facetas. É bem verdade que entre os liberais se estabelece muito rapidamente – mesmo ainda em vida de D. João IV – uma clivagem, que se vai aprofundando e culmina no setembrismo, entre os partidários da Carta e os da Constituição de 22. A Constituição de 38, que resultou da revolução de Setembro, foi uma tentativa de conciliação das duas, que não agradou a ninguém e teve curta duração. Aliás, não houve só estas duas facções – cartistas e setembristas – ambas se encontraram minadas, desde o início por divisões internas. Se formos a ver, Costa Cabral, que veio a restaurar a Carta e cujo governo ditatorial deu origem à Maria da Fonte, era um ex-setembrista, bem como o Visconde de Sá da Bandeira, cuja lealdade a D. Maria II foi ao ponto de aceitar chefiar vários governos, tanto de um lado, como do outro. Além dos arrivistas e oportunistas, que os há em qualquer revolução, houve muitos liberais convictos que foram resvalando de uma facção para a outra. Sobre esta realidade, é muito interessante ler as Memórias do Marquês da Fronteira, liberal desde a primeiro hora, mas que morreu profundamente desiludido com o liberalismo …
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Quanto ao regime monárquico, esse, ao contrário do que aconteceu em França desde a “sua” revolução, e em outras revoluções liberais, esse nunca foi posto em causa, nem por cartistas nem por setembristas. Não nego as influências que nos chegavam do resto da Europa, mas nem mesmo o Iberismo que irá ter uma considerável expressão em Portugal na 2ª metade do século, mas só podemos falar em “republicanismo” a partir da década de 70, tendo o 1º deputado republicano nas Cortes, sido eleito em 78. De facto, e muitos historiadores estão de acordo nesse ponto, o que veio a dar alento aos ideais republicanos, foi o Ultimato de Inglaterra, em 1890. Estávamos em plena crise da Regeneração que já levava aí uns 40 anos de vida. Não foi propriamente a ideia do caracter hereditário da monarquia que esteve em causa, mas o facto de muita gente pensar que os Reis da Europa eram todos primos uns do outros, colocando os interesses de família à frente nos interesses da Nação. A reacção ao Ultimato foi profundamente nacionalista e colonialista. E, nessa reacção estiveram unidos radicais e moderados. Tal como o foi (nacionalista e colonialista) a 1ª República. Basta estar atento à letra d’ “A Portuguesa”, que ainda hoje é o Hino Nacional, e que foi composto bem antes do 5 de Outubro de 1910.
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Não me vou alongar mais em matéria tão complexa (e interessante). Mas a ligação directa entre Liberalismo e Republicanismo, parece-me ter quebras demais para se poder estabelecer um fio condutor. (sobre a instauração da República, “O Poder e o Povo” de Vasco Pulido Valente é, quanto a mim, de leitura obrigatória).
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Quanto à “pedra do Mindelo”, fotografa-la é uma ideia, que nunca me tinha ocorrido. Acontece que não tenho, nem sei trabalhar com máquinas digitais e, muito menos sei passar fotografias para o computador … A ver vamos, talvez o possa pedir ao meu filho.
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Já que falámos em histórias de família, não resisto a contar-lhe esta, de que muito me orgulho. A minha 4ª Avó, ficou viúva muito cedo, tendo o marido morrido na Guerra Peninsular. Sempre se meteu em política o que era, e se mantém, uma característica das mulheres da minha família. Liberal convicta, quando soube da revolta da Terceira, numa certa noite, chamou os seus 3 únicos filhos (o meu trisavô era o mais novo e não tinha ainda 18 anos) e instigou-os a partir para lá, afim de apoiarem D. Pedro. Foi assim que foram, cheios de entusiasmo (reza a “história” da família que, na manhã seguinte foi encontrada desmaiada na capela da casa). Depois do desembarque do Mindelo, a história soube-se e ela foi levada, presa, para o Convento de Carnide, onde as freiras – todas miguelistas – se divertiam a passar diante da porta da sua cela, a rezar por alma dos F… (desculpe omitir o nome da família). Calcule a aflição da pobre Senhora. Porém um Padre, que não era tão mau quanto isso, quando soube o que estava a acontecer, resolveu, na missa a que era autorizada a assistir, bramar contra “aqueles diabos dos F… que nunca mais morrem!”. Um desses filhos, que veio a desembarcar em Lisboa a 24 de Julho, correu de imediato a Carnide, libertar a Mãe. Ela viveu até tarde. E manteve-se Liberal (moderada, talvez … ) até à morte.
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E, se o filho recebeu a Torre Espada do Próprio Rei, em campo de batalha, ela veio a receber um título de nobreza, só para ela, só em sua vida. Que nunca mais ninguém usou.
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Para mim, nobreza é isto. Nobre é aquele que se notabiliza pela sua acção. A nobreza não é hereditária, porque não está no sangue. Está na alma de cada um.
Afixado por: Isabel Coutinho em fevereiro 3, 2005 01:22 AM