SALAZAR
Magro, sombrio, encurvado
sob o açoite do Pecado,
com que o persegue Satã,
o pobre gebo parece
o monstro de Lockness
ou um monge de Zurbarán.
Nasceu de paixão secreta
entre casada e roupeta,
junto a Santa Comba Dão.
Graça ao duplamente padre,
dele fez a Santa Madre
guarda-livros da nação.
Profunda, negra, maldita,
mágoa oculta nele habita,
que impede que o monstro ria.
Ah, ninguém sabe a razão
por que no seu coração
jamais floriu a alegria.
Solitário pecador,
nunca deu fruto, e o amor,
força que a todos impele
– como abelha laboriosa,
que evita a flor venenosa –
sempre voou longe dele.
Ainda seminarista,
logrou ele uma conquista.
Grave descoberta fez,
porém, ela, que, coitada,
fugiu dele, horrorizada,
condenando-o à frigidez.
Diz uma beata que santo
se tornou de rezar tanto.
E, com pesar, assevera
que ele, no púbis moreno,
em vez de um órgão obsceno,
tem uma vela de cera.
Talvez por isso maldita
mágoa oculta nele habita,
que impede que o monstro ria.
Esta é talvez a razão
por que no seu coração
jamais noivou a alegria.
Quando o Ferro acha preciso
trazer-lhe ao rosto um sorriso
de propaganda ou de arte,
manda vir o Cerejeira,
que lhe faz, com mão brejeira,
cócegas em certa parte.
Para alegrá-lo, Deus quis
fazer dele seu aprendiz.
Deu-lhe a vara de condão,
que já servira a Moisés.
E logo surgiram três
campos de concentração.
Antes dele, nada existia
na terra da gente ímpia,
de Afonso Costa e Pombal.
Num instante, ali, à toa,
fez logo surgir Lisboa
mais Peniche e o Tarrafal.
Novos golpes de varinha,
inspirados por Sardinha,
com bênção do Cerejeira
– e apareceram estradas,
portos, igrejas, privadas,
Sintra, o Tejo, a Panasqueira…
Nascera, enfim, Portugal.
Não o de Costa e Pombal
– que esse era de Satanás,
obra da Maçonaria –
mas o da Virgem Maria,
de D. Miguel e Maurras.
Mas inda e sempre, maldita,
mágoa oculta nele habita,
que impede que o monstro ria.
Ah, ninguém sabe a razão
por que no seu coração
jamais cantou a alegria.
Para salvar as finanças,
centuplica as vis cobranças.
Hitler, o "Füher", o inspira.
E governa com tal mão,
que hoje a Santa Comba Dão
chamam Santa Comba Tira.
Só faltava uma demão
para salvar a nação,
dantes livre, embora suja.
O Salvador cria os grémios.
E hoje o povo grita: "Algeme-os!
São um Pinhal de Azambuja!"
Os fantoches da Legião
e os mastins da Informação
ladram: "Salazar! Salazar! Salazar!"
E o eco, ao longe, repete,
qual desgrenhada Machbeth:
"… azar! … azar! … azar!"
O povo, que se consome,
vendo morrer-lhe de fome
os filhos, diz, num gemido
baixinho, como um queixume,
que o seu drama nos resume:
"Bandido! Bandido! Bandido!"
E os mortos do Tarrafal,
de Badajoz, do Funchal…
como espectros de Ugolino,
vêm ter, à noite, com ele,
e, como, a Caim, Abel,
acusam-no: "Assassino! Assassino! Assassino!"
Talvez por isso, maldita,
mágoa oculta nele habita
que impede que o monstro ria.
Esta é talvez a razão
por que no seu coração
jamais floresce a alegria!»
[Roberto das Neves, Assim Cantava um Cidadão do Mundo (poemas que levaram o autor treze vezes aos cárceres do Santo Ofício de Salazar): Rio de Janeiro, Germinal, 1952]
Selecção de PCD
in
http://frenesi-livros.blogspot.com/2007/06/figuras-em-gesso-para-o-museu-salazar.html
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