Editorial
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“A história de que essa mulher era santa é uma questão a ser destruída” – a frase é do advogado Antonio Carlos de Carvalho Pinto, defensor do criminoso que assassinou sua ex-esposa, a irmã dela, e que também atirou contra uma sobrinha, de 23 anos de idade. No total deu nove tiros – dois contra a sobrinha, três contra a ex-cunhada e quatro contra a ex-mulher.
O crime ocorreu no dia 20 de dezembro, em Piracicaba, no interior de São Paulo. João Marcelo Augustini, um usineiro, dono de um patrimônio de 20 milhões de reais, atirou contra as três mulheres naquele dia. Desde que sua ex-esposa, Edilene Borghese Augustini, pedira o divórcio, há 1 ano e meio – depois de 23 anos de casamento – ele passou a perseguí-la, principalmente depois que, há uns seis meses, ela arranjou um namorado.
Seria mais um caso a engordar as estatísticas trágicas da violência contra a mulher, mas o que chama a atenção é a frase do advogado, e o comportamento de alguns policiais que investigam o caso, colhidos pela reportagem feita pela jornalista Angélica Santa Cruz, para O Estado de S. Paulo (5 de março de 2006).
Um dos investigadores tentou justificar o crime: “Mas o cara trabalha pra construir um patrimônio e depois tem que dividir com a mulher, que já está com outro... Eu entendo...” Pior ainda, a própria titular da Delegacia de Defesa da Mulher, delegada Eliane Carmona, manifestou opinião semelhante: “Mas como ela foi deixar um homem desses?”, disse, referindo-se ao patrimônio do assassino. Isto é, nessa lógica, as três vítimas – as duas irmãs, que morreram, e a moça que sobreviveu – são as culpadas pela violência que sofreram!
É a sobrevivência de um argumento que parecia banido – a malfadada tese da defesa da honra, agora travestida em algo como “forte emoção”, principalmente por tratar-se de um empresário aparentemente bem sucedido, cujo patrimônio é visto como motivo suficiente para manter uma relação afetiva, mesmo depois que ele – como confessou para a mulher e para as filhas, antes da separação – era um homem dado a ter outras mulheres.
As denúncias de violência multiplicaram-se neste começo de ano. Em Pernambuco, por exemplo, já ocorreram 47 assassinatos de mulheres em 2006. Entre 2002 e 2004, foram 528 casos de mulheres mortas, a maioria vítimas de violência doméstica. Os dados mostram que, no Brasil, uma em cada quatro mulheres já foi vítima de ataques – assédio sexual, estupro, espancamento, etc; 7 em cada 10 mulheres mortas foram assassinadas pelos próprios maridos (que também são responsáveis por 56% dos casos de espancamento, diz uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, feita em 2001).
Outra pesquisa, divulgada neste começo de ano, feita pela Sociedade Mundial de Vitimologia coloca o Brasil como campeão de agressões contra as mulheres. Finalmente, dados coletados pelo Ibope, para o Instituto Patrícia Galvão, em 2004, asseguram que 82% dos homens (mais que oito em cada grupo de 10) pensam que “não existe nenhuma situação que justifique a agressão do homem a sua mulher”, mas 38% (isto é, quase quatro em 10) pensam que “mulher que trai o homem até que merece apanhar”.
O caso de Piracicaba e estes dados revelam uma realidade preocupante, e regressiva. Eles mostram que ainda existe uma grande parcela da população que considera a mulher como inferior ao homem e que precisa ser dominada, esperando-se dela um comportamento submisso e acomodado aos comportamentos masculinos. É uma assimetria que fundamenta a idéia da desigualdade, da superioridade masculina, e que está na base das agressões, espancamentos e assassinatos de mulheres.
Os números descrevem uma situação grave pois um em cada cinco homens acredita que há situações em que a agressão se justifica, e o dobro – quatro em cada dez – pensa que essa situação é aquela em que ocorre o que se chama de traição da mulher – traição, assim considerada, a um parceiro que é também uma espécie de proprietário! Entre estes podem ser alinhados aqueles que, como o advogado do assassino de Piracicaba, pensam que, por não “ser santa”, uma mulher pode ser assassinada!
A tentativa de transformar as vítimas em culpadas por sua própria desdita merece reflexão nesta semana em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher. E viva condenação por parte de todos aqueles que, lutando por uma sociedade avançada, lutam pela libertação de toda a humanidade, e pela igualdade entre todos os seres humanos.
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in VERMELHO 12 DE MARÇO DE 2006 - 19h16
O crime ocorreu no dia 20 de dezembro, em Piracicaba, no interior de São Paulo. João Marcelo Augustini, um usineiro, dono de um patrimônio de 20 milhões de reais, atirou contra as três mulheres naquele dia. Desde que sua ex-esposa, Edilene Borghese Augustini, pedira o divórcio, há 1 ano e meio – depois de 23 anos de casamento – ele passou a perseguí-la, principalmente depois que, há uns seis meses, ela arranjou um namorado.
Seria mais um caso a engordar as estatísticas trágicas da violência contra a mulher, mas o que chama a atenção é a frase do advogado, e o comportamento de alguns policiais que investigam o caso, colhidos pela reportagem feita pela jornalista Angélica Santa Cruz, para O Estado de S. Paulo (5 de março de 2006).
Um dos investigadores tentou justificar o crime: “Mas o cara trabalha pra construir um patrimônio e depois tem que dividir com a mulher, que já está com outro... Eu entendo...” Pior ainda, a própria titular da Delegacia de Defesa da Mulher, delegada Eliane Carmona, manifestou opinião semelhante: “Mas como ela foi deixar um homem desses?”, disse, referindo-se ao patrimônio do assassino. Isto é, nessa lógica, as três vítimas – as duas irmãs, que morreram, e a moça que sobreviveu – são as culpadas pela violência que sofreram!
É a sobrevivência de um argumento que parecia banido – a malfadada tese da defesa da honra, agora travestida em algo como “forte emoção”, principalmente por tratar-se de um empresário aparentemente bem sucedido, cujo patrimônio é visto como motivo suficiente para manter uma relação afetiva, mesmo depois que ele – como confessou para a mulher e para as filhas, antes da separação – era um homem dado a ter outras mulheres.
As denúncias de violência multiplicaram-se neste começo de ano. Em Pernambuco, por exemplo, já ocorreram 47 assassinatos de mulheres em 2006. Entre 2002 e 2004, foram 528 casos de mulheres mortas, a maioria vítimas de violência doméstica. Os dados mostram que, no Brasil, uma em cada quatro mulheres já foi vítima de ataques – assédio sexual, estupro, espancamento, etc; 7 em cada 10 mulheres mortas foram assassinadas pelos próprios maridos (que também são responsáveis por 56% dos casos de espancamento, diz uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, feita em 2001).
Outra pesquisa, divulgada neste começo de ano, feita pela Sociedade Mundial de Vitimologia coloca o Brasil como campeão de agressões contra as mulheres. Finalmente, dados coletados pelo Ibope, para o Instituto Patrícia Galvão, em 2004, asseguram que 82% dos homens (mais que oito em cada grupo de 10) pensam que “não existe nenhuma situação que justifique a agressão do homem a sua mulher”, mas 38% (isto é, quase quatro em 10) pensam que “mulher que trai o homem até que merece apanhar”.
O caso de Piracicaba e estes dados revelam uma realidade preocupante, e regressiva. Eles mostram que ainda existe uma grande parcela da população que considera a mulher como inferior ao homem e que precisa ser dominada, esperando-se dela um comportamento submisso e acomodado aos comportamentos masculinos. É uma assimetria que fundamenta a idéia da desigualdade, da superioridade masculina, e que está na base das agressões, espancamentos e assassinatos de mulheres.
Os números descrevem uma situação grave pois um em cada cinco homens acredita que há situações em que a agressão se justifica, e o dobro – quatro em cada dez – pensa que essa situação é aquela em que ocorre o que se chama de traição da mulher – traição, assim considerada, a um parceiro que é também uma espécie de proprietário! Entre estes podem ser alinhados aqueles que, como o advogado do assassino de Piracicaba, pensam que, por não “ser santa”, uma mulher pode ser assassinada!
A tentativa de transformar as vítimas em culpadas por sua própria desdita merece reflexão nesta semana em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher. E viva condenação por parte de todos aqueles que, lutando por uma sociedade avançada, lutam pela libertação de toda a humanidade, e pela igualdade entre todos os seres humanos.
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in VERMELHO 12 DE MARÇO DE 2006 - 19h16
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