domingo, 10 de fevereiro de 2008

Beato Salazar (20) - Valha-nos a memória


Sábado, 31 de Março de 2007

Valha-nos a memória

Salazar o Grande?

Como mero cidadão, telespectador, e interessado pela história, segui com algum interesse o concurso avançado pela RTP, ‘Os Grandes Portugueses’, que seguia o formato original da BBC na Grã-bretanha. Ponderei sobre os candidatos e escolhi votar no Aristides de Sousa Mendes, quem considero uma das poucas luzes que brilharam num período tão negro da nossa história.

Sem rodeios, considero que a eleição de António de Oliveira Salazar como o vencedor de ‘Os Grandes Portugueses’ foi um desfecho decepcionante para o programa.

É importante contextualizar qualquer figura histórica na sua época, e sabemos que na altura em que o Salazar assumiu e chamou para si o poder absoluto em 1932, Portugal era, desde 1926, uma ditadura militar sem ditador, um país sem projecto ou modelo de governação definido com as finanças a cair para uma situação calamitosa.

Sabemos que o Salazar consolidou impiedosamente e a todo custo a estabilidade política, que era então muito desejada, não só do ponto de vista económico, mas também pela generalidade da população que continuava a ressentir-se da instabilidade da era republicana. Salazar procedeu a uma verdadeira revolução e modernização das relações comerciais com as colónias, e retirou Portugal do rumo que seguia para a bancarrota com uma política monetária inteligente e o saneamento das contas do estado. Tudo isso é inegável, pois os números, as estatísticas e os dados, apesar de não contarem nem metade da história, não sabem mentir.

No entanto, esses mesmos dados, sempre honestos, também nos mostram que durante o Estado Novo a convergência do crescimento económico Português com a Europa foi mais baixo do que a convergência Espanhola. Já em democracia entre 1986 e 1998, a convergência de Portugal foi o dobro da Espanha. O aumento das taxas de escolarização no ensino secundário foi de 18% durante o Estado Novo e 62% após o 25 de Abril. Enquanto Salazar é lembrado supostamente por ter livrado o país da 2ª guerra mundial, a guerra colonial, que durou quase 13 anos, representou cerca de metade da despesa pública e mobilizou cerca de 200 mil soldados por ano, isto é, cerca de 2% da população, o que corresponde a uma taxa de militarização colossal, que nenhum outro estado ocidental registou em nenhuma guerra colonial. Nem mesmo a do Vietname.

A taxa de mortalidade infantil durante o Estado Novo era simplesmente aterradora, a mais alta da Europa: em cada mil crianças nascidas com vida, morriam em média 77,5. Hoje, apesar de toda a polémica com o fecho de maternidades, Portugal tem uma das taxas de mortalidade infantil mais baixas de todo o mundo, morrendo apenas 5 em cada mil crianças.

Em 1960, segundo os Censos oficiais da época, apenas 28% das habitações do país dispunham de água canalizada. Duche ou banho 19%, instalações sanitárias 42%, electricidade 41% e ligação a esgoto 38%. Quarenta anos depois, já em liberdade, essas taxas eram de 87%, 82%, 89%, 98% e 91% respectivamente.

Nos anos 60, Portugal também gastava por ano com a educação e saúde, entre 1% a 1,5% do PIB, muito longe de qualquer país Europeu. Na Europa, tínhamos a mais baixa esperança de vida à nascença, a mais elevada taxa de analfabetismo, o menor número de médicos e de enfermeiros por habitante, a maior população agrícola, a menor taxa de industrialização e o menor número de estudantes no ensino básico ou superior. Estes dados também não sabem mentir.

Pondo agora de parte as estatísticas, Salazar deixou um legado político francamente deplorável. Guardou sempre um ódio esquizofrénico à democracia e foi incapaz de aceitar o direito dos povos disporem de si próprios livremente. Tratou de reforçar a censura da época e importou elementos do fascismo italiano e de doutrinação ultra-nacionalista. Tivemos as perseguições políticas e a repressiva polícia de estado, a PIDE, originalmente PVDE que fora criada com base no modelo da Gestapo da Alemanha Nazi com a ajuda de conselheiros Italianos e Alemães.

Foi também a mentalidade desconfiada do Salazar que excluiu Portugal dos dois primeiros exercícios do plano Marshall. Mais tarde, arrependendo-se da oportunidade irremediavelmente perdida, assinou o 3º e último exercício, mas não sem antes ter renunciado escusadamente uns estimados 200 milhões de Dólares em fundos para desenvolvimento.

Pelo seu apego pessoal ao poder e falta de visão, mostrou-se sempre hostil ao processo de construção europeia, por receio de que viesse por em causa o seu regime autoritário.

Foi a política externa por ele conduzida que isolou Portugal no mundo e que consumiu o país na amargura das guerras coloniais, prolongando o colonialismo, num contexto de ordem mundial em que nada podia fazer menos sentido. Salazar, no seu tempo, foi incapaz de perceber ou aceitar que a descolonização fosse um processo irreversível. Se é hoje discutido que a descolonização do 25 de Abril poderia ter sido feita em melhores termos, quer para os colonos, quer para os colonizados, é também aceitável dizer que o império português foi condenado a ter o fim que a falta de lucidez do Salazar e do Salazarismo lhe preparou.

Foi ele também o pai do ‘tão nosso’ despotismo burocrático, da cultura de secretismo na administração pública, dos favoritismos, do amedrontamento perante figuras intituladas, da segregação das classes sociais e da sociedade onde as maneiras são suspeitas e os comportamentos vigiados.

Impondo arbitrariamente o seu pensamento ultra-conservador e misógino, Salazar procurou apagar as mulheres da sociedade com leis que as proibiam de exercer inúmeras profissões, que faziam vista grossa à violência doméstica, e que ditavam o seu papel submisso ao homem citando a constituição de 1933, «à mulher compete (…) prestar ao marido a deferência e a submissão que lhe são devidas».

Reitero que é importante contextualizar qualquer figura histórica no seu tempo. No documentário do concurso ‘Os Grandes Portugueses’ sobre Salazar, foi dito mesmo isso, e trataram de comparar o regime Salazarista com as atrocidades e carnificina gratuita dos regimes totalitários do Hitler, Estaline e Franco, todos contemporâneos do Salazar, e recordaram como todos esses regimes foram bem piores do que o nosso, o que de resto é frequente ouvir em qualquer debate sobre o Estado Novo.

Trata-se de uma comparação que me deixa sempre perplexo. Aparentemente os padrões morais que servem de fasquia para o Salazar têm de constar de uma lista de ditadores brutais, em vez dos líderes democratas que floresceram após a 2ª Guerra Mundial. Com franqueza, eu não consigo imaginar alguém no futuro a defender um Mário Soares, Cavaco Silva ou José Sócrates, perante os seus detractores, recorrendo à comparação com os seus contemporâneos, Saddam Hussein, Slobodan Milosevic ou Robert Mugabe.

Que melhor forma haverá de contextualizar a figura de Salazar no seu tempo, do que apreciar uma capa da revista Americana, ‘Time’ de 1946. A imagem de Salazar a olhar desconfiadamente por cima do seu ombro, ao lado de uma maçã, vermelha por fora mas podre por dentro, com o título por baixo que lia: «Salazar de Portugal, reitor dos ditadores». No interior da revista, um artigo (que ainda hoje pode ser lida na Internet) retratava Portugal, o seu povo, os seus costumes, e o seu ditador de uma forma humilhante, mas infelizmente de acordo com os factos. Foi ele enfim, que nos deixou com uma base industrial e tecnológica obsoleta e um povo mal nutrido, descalço, analfabeto, emigrado, exilado e triste.

Para mim a própria palavra ‘Salazar’ será sempre a personificação para tudo isto.

A quem critica o Salazar, é muitas vezes exigido que critique também da mesma forma o Álvaro Cunhal, para estabelecer um certo equilíbrio. Não tenho particular simpatia pelo Cunhal mas independentemente das virtudes ou dos defeitos que lhe queiram dar, existe aqui uma diferença trivial que não permite que o mesmo tipo de análise crítica seja aplicado aos dois. Um foi efectivamente ditador durante 36 anos, ou como dissera o Eusébio, «o mestre de escravos de todos nós». O outro não. Quem assume o poder absoluto, assume também a responsabilidade absoluta pelos males que faz.

Por fim, é frequente ouvir o quanto Salazar amava a sua pátria e que jamais houve quem nos governasse que tanto nos tenha amado. Tão peculiar foi esse amor, que ele não nos achou dignos nem de ouvirmos as notícias do mundo sem que estas fossem previamente suprimidas ou distorcidas, nem de exercermos liberdades fundamentais, como as de expressão, associação e eleição livre. Mais, quem sugerisse e militasse por esses direitos, poderia acabar por ser silenciado à força da bastonada, ou pior ainda, ser assassinado e abandonado na fronteira como foi o General Humberto Delgado.

Com tantas interpretações diferentes que já circularam sobre o concurso, penso que é um caso clássico em que se acumula um excesso de informação e um défice de atenção ao que interessa: os votos. No total, o concurso contou apenas com um universo 159 mil votos totais (1,6% da população portuguesa), com cerca de 65 mil votos válidos para Salazar (0,7% da população portuguesa). Projectar qualquer significado político ou demográfico a partir de 65 mil votos de um programa de televisão parece-me que é um exagero grosseiro. Sobretudo quando existe o resultado da Eurosondagem/RTP que coloca o Salazar em 7º lugar no caso de ter havido um sufrágio universal. Apesar de tudo, talvez este resultado seja afinal um pouco de justiça poética, referido, apto e bem, pelo Ricardo Araújo Pereira no primeiro debate na RTP, que abriu o concurso no ano passado. Quem votou no Salazar terá de enfrentar um paradoxo incontornável: Votaram livremente. O acto em si seria impensável se o Salazar fosse ainda hoje, Presidente do Conselho de Ministros. Votaram livremente e fizeram-no, conscientemente ou não, contra a vontade e os desígnios do Salazar.

Filipe Brás Almeida, Parada de Gonta.


Artigo a ser publicado no Jornal de Tondela no dia 5/4/2007.
in

Movimento Perpétuo

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