quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Há boas intenções no FMI?



por Marcelo Fernandes*

“Não podia haver uma posição hegemônica, e mesmo um império econômico sistêmico, mesmo que ele fosse transitório, dos Estados Unidos vis à vis os outros continentes ou países, sem que para isso existisse um regime institucional internacional lhe servindo de suporte”


François Chesnais, Apresentação à edição brasileira. In: A finança mundializada. São Paulo: Boitempo.



Como forma de enfrentar a turbulência financeira, o presidente Bush Jr. propôs um pacote de incentivos fiscais que devem beirar a impressionante marca de US$ 146 bilhões. Em ano eleitoral, não é de se estranhar a preocupação do governo Bush Jr. com os efeitos da desaceleração da economia. Em todo caso, também não surpreende o fato de ninguém acusar o governo norte-americano de políticas populistas, ao contrário do que aconteceria com qualquer país latino-americano.



E não é por falta de motivos; afinal de contas, o pacote do governo Bush deverá elevar o déficit fiscal para fantástica marca dos US$ 400 bilhões. O Fed também realizou o maior corte de juros em 24 anos, embora isso não tenha agradado tanto. Seja como for, até o momento, essas medidas não foram suficientes para reverter o clima de instabilidade que ronda a maior economia do mundo.


Mas ainda há outro problema que vem perturbando as mentes conservadoras. Se tudo der certo e a economia norte-americana voltar a crescer, o aquecimento da demanda interna fará com que os déficits em transações correntes do balanço de pagamentos entrem novamente em trajetória ascendente. Como resolver este intrigante problema? O senhor Dominique Strauss Kahn, diretor-gerente do FMI considera que a melhor saída seria elevar a demanda do resto do mundo. Isto facilitaria o ajuste do desequilíbrio externo norte-americano que, segundo alguns autores, estão na raiz da fragilidade financeira norte-americana.


Sobre tal fragilidade vale lembrar que a permanência dos gigantescos desequilíbrios só é possível em razão da função de moeda financeira, único na história, que o dólar desempenha no sistema internacional. Algo que não pode ser explicado apenas por fatores econômicos. Mas não vou me estender mais sobre este assunto por hoje. Na verdade, o que eu gostaria de destacar é que, o que o senhor Kahn está defendendo é que os esforços pelo ajuste recaiam principalmente sobre os países com conta em transações correntes superavitárias. A idéia não é nova. Imediatamente me vem a lembrança o celebrado regime de Bretton Woods (BW) que pautou as relações das economias capitalistas até o seu colapso em 1971. Pelo regime de BW quando um país apresentava déficits no seu comércio externo, deduzia-se que este estava consumindo acima de sua capacidade de produção. Com esse diagnóstico, a receita padrão do FMI para restauração do equilíbrio externo resumia-se na utilização de medidas monetárias e fiscais de contenção nos gastos públicos para reduzir a demanda interna (1).


John Keynes, participante ativo das negociações pela delegação britânica em Bretton Woods, possuía uma visão diferente dessa forma de ajuste. Para ele, àquelas economias que apresentassem superávits no seu comércio é que deveriam aumentar suas importações dos países deficitários. Ou seja, as crises deveriam ser resolvidas primeiramente pelos esforços dos superavitários. Essa solução tenderia a favorecer o pleno emprego no mundo e o comércio internacional em expansão, além de não tornar o processo de ajustamento dos desequilíbrios tão doloroso para os países deficitários. No entanto, politicamente essa proposta era inviável, porque, neste caso, o esforço principal do ajuste recairia justamente sobre os Estados Unidos, na época o maior exportador de mercadorias e já a principal economia do mundo.


Sendo assim, a proposta do diretor-gerente do FMI para que os países flexibilizem sua política fiscal e aumentem a demanda, facilitando o ajuste dos enormes desequilíbrios externos norte-americanos, é algo que vai ao encontro da proposta defendida por Keynes em BW, não aceita pelos Estados Unidos. Ou seja, quando é para o benefício do Império vale qualquer coisa. E a expansão fiscal passa a fazer parte das boas políticas...


Portanto, para o FMI a defesa de uma política keynesiana é apenas um desvio da regra geral, e não se configura em avanço. Ainda hoje, décadas após o fim do regime de BW, o Fundo continua propondo medidas de austeridade fiscal indistintamente para qualquer país em crise, mesmo quando este país não tem problemas de sustentabilidade fiscal ou uma dívida pública expressiva. Com raríssimas exceções, para o FMI, a diminuição dos gastos públicos é uma panacéia para todos os problemas econômicos em qualquer condição e em qualquer época.

Como se sabe, raramente os palpites do FMI foram ouvidos pelos países centrais. Do contrário, certamente não estariam na posição em que se encontram hoje. São os países periféricos que sempre estiveram sujeitos às interferências maliciosas dos técnicos do Fundo. E são estes os que, em grande parte, mantém superávits em transações correntes atualmente. Com isso, não é difícil concluir que o FMI muito provavelmente esteja com as baterias apontadas para China, país que carrega grande superávit no seu comércio externo com os Estados Unidos. Nada mal, diria Dominique Strauss Kahn, se os chineses arcassem com parcela generosa do ônus pelo ajuste.


Notas


(1) Evidentemente nem sempre era esse o caso, pois a ocorrência de déficits no comércio externo poderia ser conseqüência da deterioração dos termos de intercâmbio ocasionados por algum choque externo e não de uma demanda aquecida; neste caso, o diagnóstico do FMI estaria equivocado.





*Marcelo Fernandes, Economista e doutorando em Economia pela UFF/RJ

in VERMELHO 2008.02.13

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