por Cloves Geraldo*
Muito ainda há para se contar historicamente sobre as relações Estado/intelectualidade durante o período do Socialismo Real, no Leste Europeu. Relações estas que começam antes da formação do Estado Soviético e duram até a queda do Muro de Berlim. Não se trata de relações simples, daquelas que falam sobre a adesão ao ideário socialista ou simplesmente ao marxismo-leninismo. Avançam até a participação político-ideológica, com todas as contradições que implicam estar no centro da luta de classes, contribuindo para o surgimento de novas formas e manifestações culturais. Principalmente devido às questões que opõem as políticas de Estado às formulações e criações culturais. O tempo de cada uma muitas vezes não coincide, daí os choques pouco estudados, que abrem espaço para explorações oportunistas, como as mostradas nos filmes alemães, “Adeus Lênin” e, agora, neste “A Vida dos Outros”, estréia na direção de Florian Henckel von Donnersmarck.
Enquanto o primeiro é uma parábola sobre a suposta manipulação da consciência das camadas trabalhadoras no Socialismo Real, problematizada na antiga RDA (República Democrática Alemã), no segundo Florian Henckel tenta captar a “falta de liberdade individual” no país e as conflitantes relações entre Estado e produtores culturais no período que vai de 1949, época de criação da RDA, até 1990, pós-Queda do Muro de Berlim. Ambos pretendem, com isto, fazer uma espécie de acerto de contas com o Estado Socialista Alemão Oriental. E o faz através da análise do tratamento que o Governo Erich Honecker (1912/1994) dava aos produtores culturais. Tema por demais complexo e polêmico, pois implica em matizar a consciência intelectual e seu compromisso com a preservação da estrutura do Estado Socialista Alemão Oriental e, por extensão, da causa do Socialismo e da luta do proletariado alemão e, por que não, internacional.
Trabalhadores tiveram acesso a vasta produção cultural
A questão avança para a contribuição que o intelectual socialista deve dar a esta causa, por meio de sua arte. Durante a construção da URSS, no período de Lênin (1917/1922), havia toda uma concepção em elaboração e as pistas, picadas e trilhas precisavam ser amarradas. A criação artística, devido a isto, estava em aberto. Cada um à sua maneira podia apontar caminhos, nos mais variados gêneros, do romance à poesia, das artes plásticas ao design, do cinema ao teatro. Em meio a este caos aparente poderia surgir a ”arte proletária”. Se era o caminho socialista ou não continuava em aberto. Até o início do Realismo Socialista, nos anos 30, os caminhos se bifurcaram, muita polêmica e debates contribuíram para uma arte que tentava inovar, sem, no entanto, dizer que representava a arte proletária, brotada da Revolução Socialista. Era, no entanto, uma arte ebulitiva, adversa da arte em voga no Ocidente (era assim que os artistas soviéticos viam a arte que era produzida nos EUA e na Europa).
Depois, quando surgiram as elaborações teóricas que desembocaram no Realismo Socialista a divisão se impôs, pois de um lado havia uma política de acesso à produção cultural e de outra a urgência de se ter uma arte para os novos tempos: o dos planos qüinqüenais e da afirmação do ideário socialista/proletário, marxista-leninista. Foram fixados então três campos: a produção, a distribuição e o acesso. A discussão sobre a produção segundo um modelo, o do Realismo Socialista, com narrativas e representações das contribuições proletárias à construção do socialismo, terminou por ofuscar os outros vértices, em particular o último: o de acesso, que, a preços módicos, permitiu aos trabalhadores soviéticos a ler romance e poesia (e não só estes); assistir filmes, peças teatrais e espetáculos de dança e ópera e freqüentar galerias de arte. O comprometimento ou não dos segmentos intelectuais com este novo ideário, o do Realismo Socialista, terminou por provocar profundas cisões nos meios intelectuais, inclusive no assim chamado Ocidente, com manipulações, injustiças e cerceamentos, que terminaram por esfriar as relações entre o Estado Socialista e os produtores culturais.
Contradições na construção do Socialismo não devem abrir espaço às manipulações
Em princípio os conflitos entre diretrizes políticas na época da construção do Socialismo Real na União Soviética e os produtores culturais, grosso modo, se deram, como já observado acima, em razão do tempo de cada ação. O primeiro dada às urgências de afirmação de classe, da estruturação do novo, o Estado Proletário adverso ao Estado burguês, com grandes dificuldades. O segundo em razão da necessidade de espelhar as contradições emergentes na forma da criação cultural, ou se preferir, a arte em construção, sem modelo algum, senão o corte a partir do visto em torno (a realidade social nua e crua, que a arte transfigura e codifica em sua linguagem para o público). O inevitável choque (este tema, dos mais necessários, carece de estudo em profundidade para debelar mitos e inverdades que perduram, principalmente junto à intelectualidade burguesa ou não e às correntes vacilantes de intelectuais reformistas, ainda hoje) terminou por acontecer, em que pese, também, as questões de visões, tendências e apostas burguesas no seio da intelectualidade russa da época.
Não se deve descartar a tendência ao individualismo, até mesmo o desprezo ao coletivo, do intelectual burguês prevalecente à época da construção do Socialismo na então nascente República Socialista Soviética. Esperava-se que outra forma de produtor cultural surgisse dos embates de classe e da tentativa de construção de outra forma de arte. Um tema tão vasto, impactante e conflituoso, mas necessário para esclarecer dúvidas e contribuir para elucidar sobre o tipo de arte que deve sair das relações sociais, políticas, econômicas e culturais na etapa inicial de construção do Estado Socialista, e mesmo hoje durante a estruturação do “Socialismo de Mercado” chinês e outros a construir, vai muito além do espaço bidimensional do cinema. Porém, não se presta a manipulações. Em “A Vida dos Outros”, Florian Henckel arranha as questões acima levantadas, pondo o dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch) no centro da ação, sem entrar em detalhes sobre sua relação com o Estado Alemão Oriental. O que se sabe é que ele, em princípio, não incomoda. É, supostamente, um eleito da direção do partido e do Estado.
Diretor demoniza representante do Estado em seu filme
Dreyman é simpático e boa pinta. Leve e cheio de sorrisos. E veste-se com sofisticação. Representa, assim, o estereótipo do artista, em paz consigo mesmo. Florian Henckel, desta forma, não o estigmatiza, o torna simpático para o espectador que logo simpatiza com ele. O primeiro contato com ele, espectador, tem com Dreyman, é através da encenação de uma peça sua para uma seleta platéia, formada por altos figurões do governo e, principalmente, o ministro da Cultura, Bruno Hempf (Thomas Thiene). Pela breve seqüência que se vê, ela, a peça, não retrata uma realidade adversa à do Estado Alemão Oriental. É, portanto, um intelectual do sistema. É este personagem, cujas ações logo entrarão em questão, que Florian Henckel irá opor ao Estado. De uma forma transversa, que ajuda o diretor a escamotear o tema das relações intelectualidade/ Estado Socialista. Põe em curso outro tema: o da cobiça, a tentativa de Hempf atrair para si a atriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), paixão de Dreyman, e o uso que outro personagem, Gerd Wiesler (Ulrich Mühe), fará de suas descobertas.
Florian Henckel tenta fundir dois temas em um: o do controle da vida do cidadão pelo Estado e o das relações amorosas, via chantagem, na RDA, de 1984, quando transcorre a ação. Aparentemente, o que Hempf tenta é checar as relações de Dreyman com dois artistas sob suspeita: o diretor de teatro Albert Jerska (Volkmar Kleinert) e o intelectual Paul Hauser (Hans-Uwe Bauer). No meio está Dreyman. A partir deste enfoque inicia-se o processo de espionagem, pressão, chantagem. Está-se diante de um filme-referência: “Tocaia”, de John Badhan, em que Emilio Estevez e Richard Dreyfuss portam-se num apartamento para espionar o movimento no imóvel em frente. Mas remete-se principalmente ao filme-padrão, para este tipo de narrativa: “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock. Portanto, algo muito visto pelo espectador, para se ficar em apenas dois filmes. O entrecho submerso, porém, é outro. É o de criticar as relações Estado/intelectualidade durante o Socialismo Real, na RDA. Assim, entra em ação outro personagem: Gerd Wiesler.
Agente ao presenciar vida do espionado muda de idéia
Wiesler, ao contrário de Dreyman, é um ser quase imóvel, de ampla calva, magro, roupas cinzentas, gestos comedidos. A ele é dada à tarefa de espionar Dreyman. Com todos os apetrechos comuns neste tipo de filme ele vai, aos poucos, deslindando o cotidiano do dramaturgo. Este leva uma vida comum, de ficar em seu apartamento, escrever, ler, receber amigos e se relacionar com Christa-Maria. Nada de suspeito, de adverso há em suas movimentações. Há ali, sim, um homem cuja vida é diferente da sua: solitária, obrigado a preparar suas refeições, ficar estático diante da televisão, num ambiente de poucos e simples móveis. O monótono trabalho que faz leva-o a se questionar. Numa seqüência em que assiste as carícias entre Dreyman e Christa-Maria, eles o instigam a buscar recompensa amorosa, só que com uma prostituta, numa crítica sutil ao sistema prevalecente na então RDA. Ele, inclusive, a quer por mais tempo, ela, no entanto, se desvencilha dele, dada ao compromisso com outros clientes.
Este é o único instante em que “A Vida dos Outros” ganha em profundidade. Deixa de ser um arremedo de filme, que na verdade é, sobre a relação Estado/intelectualidade para ser a respeito de um homem cuja atividade o retira do cotidiano, do relacionar-se com outrem, do projetar sua própria vida. Outra camada lhe será acrescentada ao Wiesler presenciar numa noite a chegada de Hempf com Christa-Maria, num luxuoso automóvel preto. Ele compreende, na verdade, o que está por trás da ordem de espionar Dreyman. De novo uma crítica: a de que a RDA se prestava a este tipo de mesquinharia, ou seja, questões de natureza amorosa se sobreporem às de natureza do Estado. Pode ser entendido como um desvio individual, do ministro da Cultura, Hempf, que põe o aparelho de espionagem estatal para provocar a derrocada de um intelectual importante e dele roubar a mulher. Entretanto, Florian Henckel não aprofunda esta questão. Não remete o espectador a uma discussão deste nível. No máximo, mostra Hempf servindo de escada para o assessor Anton Grubitz (Ulrich Tukur) que busca ascender na estrutura do Estado.
Acerto de contas mostra que Socialismo ainda assusta
São pontas apenas. Com o agravante de que Hempf, a exemplo de Wiesler, não é um personagem simpático. Pesadão, sempre de terno e gravata, ele é direto. A seqüência no automóvel, em que usa Christa-Maria em pleno tráfego, atesta seu caráter. E Florian Hemckel remete seu filme aos anos de Guerra Fria, quando os comunistas eram retratados pelos filmes europeus e hollywoodianos como brutamontes, seres sem cérebro, dispostos a cometer os mais bárbaros crimes. Uma caracterização grosseira, simplista, até. Seus motivos são mesquinhos – afastar Dreyman de suas relações e ganhar Christa-Maria para si. Hempf a manipula ao extremo a ponto de ela ir se entregando, deixando de lado sua paixão por Dreyman. Bela, interpretada com intensidade gratificante pela atriz Martina Gedeck, ela representa a fragilidade feminina diante da rudeza do vilão. Todo o ódio recai, assim, sobre Hempf. O que impulsiona a propaganda das relações entre Estado e intelectualidade na Alemanha Federal de hoje contra o Socialismo Real.
Esta forma de acerto de contas que enquadra o passado para tirar lições e, a partir daí, ganhar adeptos para uma causa, foi tratada pelos historiadores suecos Leif Furhammar e Folke Isaksson, em seu livro “Cinema & Política.”(...) A propaganda no cinema sempre encontra bons presságios para sua vitória, a maioria arrancados do passado. A forma especial de regressão cinematográfica é a reação primitiva de escapar de uma crise andando para trás no tempo até um período mais seguro (...)”. Florin Henckel procura escapar ao passado inserindo em “A Vida dos Outros” o que ocorreu com Dreyman e Hempf após a queda do Muro de Berlim. Embora tenha sido demonizado, Hempf, pós-queda da RDA, continua em altos postos – sempre de terno e gravata cinzentos e mostrado nas sombras – enquanto Dreyman escala os degraus da fama, com direito a banners gigantes nas livrarias e noite de autógrafo no lançamento de seu livro. No encontro de ambos, não muito ao acaso, o dramaturgo tenta esclarecer o modo como era visto e tratado pelo Estado no período pré-derrocada do Socialismo Real no Leste Europeu. A resposta que o antigo ministro da cultura lhe dá é chocante. Dreyman percebe toda a sua fragilidade e os riscos que correu, quando se imaginava protegido pelo Estado.
Espião mudou de lado e caiu em desgraça
Se estas seqüências podem ser incluídas nos paralelos da manipulação, uma vez que Florian Henckel mostra-o em pleno deslocamento pelas ruas de Berlim, sem espião algum em seu encalço – as que retratam as conseqüências do ato de Wiesler em mudar sua visão sobre o suspeito Dreyman colocam o filme num patamar adverso. Seu ato não o recompensou. Caiu em desgraça ainda durante a existência da RDA e esta punição permanece no período pós-Queda do Muro de Berlim. A forma como ele se locomove pela calçada, recolhendo cartas e empurrando o carrinho dos correios comprovam a capacidade de análise do diretor sobre as transições de sistemas políticos, em que a desgraça pode continuar; com a punição perdurando para além dos limites de uma forma de Estado para outra. Antes oficial, com poderes para ditar normas e impor severas punições, Wiesler acabou vítima sua decisão.
Embora “A vida dos Outros” tenha estes oásis conteudísticos é um filme que se presta a demonizar as relações Estado/produtores culturais durante o Socialismo Real. Presta-se a um trabalho antes feito pela CIA para evitar simpatias pela revolução em curso na antiga URSS, conforme retrata a inglesa Frances Stonor Saunders em seu livro “Quem Pagou a Conta”, resenhado por Ubiratan Brasil, no jornal O Estado de São Paulo. ”(...) Entre 1950 e 67, durante o auge da Guerra Fria, a agência (CIA) investiu vastos recursos em um projeto com a intenção de afastar a intelectualidade, especialmente européia, de seu fascínio remanescente pelo marxismo e comunismo, buscando atraí-la para uma visão mais receptiva do “estilo norte-americano”(2). A idéia hoje é, possivelmente, outra: a de não atrair simpatias para o “Socialismo Emergente”, simbolizado pela visibilidade chinesa.
Filme cai como dádiva para os neoliberais
Diante das incertezas neoliberais um filme com esta carga político-ideológica cai para os países do 1º Mundo, os EUA, em especial, como um grato prêmio. É como se dissesse: “olha aí, eram uns monstros!”. Uma forma de isto reconhecer foi logo premiá-lo. Ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2007. Um galardão que não o impulsionou nas bilheterias ou nas páginas dos jornais, salvo pelas críticas elogiosas na mídia costumeira. Pouco significa frente à capacidade de o cinema, principalmente neste caso, estar usando velhos recursos para demonizar “o inimigo” que nos idos de 1989 parecia tão frágil e agora neste início de Terceiro Milênio mostra-se tão vivo. Pelo menos o filme “A Vida dos Outros” serve para despertar quantos sejam para a sua possibilidade de se mutar em fênix e continuar sua trajetória histórica.
“A vida dos Outros” (Das Leben der Anderen). Alemanha. Drama. 2006, 137 minutos. Roteiro/Direção: Florian Henckel von Donnersmarck. Elenco:Martina Gedeck, Ulrich Koch, Sebastian Koch, Ulrich Tukur.
Referências Bibliográficas
(1) Furhammar, Leif; Isaksson, Folke, “Defesa Psicológica”, Cinema & Política, Editora Paz e Terra, 1976, pág. 206;
(2) Brasil, Ubiratan, “Corrupção Intelectual”, Cultura, Caderno 2, O Estado de São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008, Ano 24, Número 1.424, D1.
*Cloves Geraldo, Jornalista
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in VERMELHO - 15 DE FEVEREIRO DE 2008 - 19h05
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