Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
sábado, 31 de dezembro de 2022
Carlos Coutinho - Que alívio!
Carlos Matos Gomes - 2022 à la minute — On my own
* Carlos Matos Gomes
Dec 31 2022
Gosto mais da frase em inglês — on my own —
do que em português: só comigo.
A minha intenção ao escrever este texto sobre o ano de 2022 é
a mesma dos solitários que fazem desenhos na areia: entreterem-se enquanto
falam consigo próprios. Depois, quem passa olha, se lhe apetecer acrescenta,
apaga, ou distorce. E segue o seu caminho. A nova maré levará a obra. O
desenhador irá olhar o vazio para lá do horizonte.
Bom ano de 2023.
Personalidades portuguesas:
- Marta Temido, a sua equipa e o SNS. A frágil
ministra, juntamente com o seu sereno secretário de Estado, enfrentaram o mais
poderoso e desapiedado gangue do planeta: o dos industriais e comerciantes da
saúde. Os Serviços Nacionais de Saúde são uma ofensa inadmissível para os
mercadores dos medicamentos, dos hospitais e clinicas, dos laboratórios e
fábricas de equipamentos. Marta Temido e o seu secretário, mais da Diretora
Geral da Saúde enfrentaram-nos. Se tivessem a mais pequena sombra no seu currículo,
nas suas vidas privadas estariam entregues aos bichos, aos liberais! E nós, os
cidadãos, com eles.
- Os “uberistas”, sejam os condutores de
automóveis sejam os distribuidores de comida às costas que respondem às app e
aos Tm. São os novos escravos, sem esquecer os importados para os trabalhos
agrícolas. Eles antecipam o futuro das sociedades ditas desenvolvidas, e
neoliberais, a par dos “colaboradores” em teletrabalho e dos robôs.
Personalidades Internacionais:
- Mohamedou Ould Slahi, prisioneiro dos Estados
Unidos no campo de concentração de Guantanamo, que faz 20 anos. Passou 14 anos
atrás das grades. Foi torturado durante 70 dias e interrogado 18 horas por dia
durante três anos. Morava na Alemanha antes de ser preso, era suspeito de ser
membro da rede Al Qaeda e de ter um papel central nos ataques terroristas de 11
de setembro de 2001, apesar de não haver nenhuma prova contra ele. Jamais foi
indiciado ou condenado durante os 14 anos que passou em Guantánamo. O mauritano,
agora com 50 anos, acabou sendo libertado, mas jamais foi compensado após sua
parte de sua vida ter sido roubada.
- Mulheres do Irão, do Afeganistão, da Arábia. A
indignação com a morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos que morreu após ser
detida pela política de moralidade do Irão, supostamente por usar seu hijab de
forma inadequada, desencadeou protestos em todo o país que já duram semanas.
Mas também as mulheres que têm de vender os seus filhos no Afeganistão, para
sobreviver, as crianças forçadas ao casamento, as mulheres que têm de ser
inexistentes por os homens inventaram um Deus que odeia mulheres e vivem num
mundo os homens odeiam as mães e as irmãs.
Acontecimentos Internacionais do Ano:
- A invasão russa da Ucrânia que
materializou a rutura entre a Europa ocidental e a Rússia e, por arrastamento,
de boa parte do mundo que não aceita um mundo sujeito aos Estados Unidos.
Entrámos numa nova era e a Europa passou para a categoria dos serventes.
- A saga da família Windsor — A aristocrática família Windsor, com
estabelecimento principal em Londres, proporcionou uma fotonovela permanente e
expressão mundial com mortes, funerais, boatos, traições, assédios, amuos,
racismo que competiu com os vários Big Brother plebeus. Reis e rainhas,
príncipes e princesas, duquesas e marquesas deram o corpo ao manifesto para que
nunca ao povo faltasse um motivo de espanto. As televisões agradeceram este
maná, assim como os vendedores de quinquilharia e souvenirs. Artistas de
primeira. Uns reinadios. Mas vendem e vendem-se bem, vivos ou mortos!
- A pedofilia religiosa: O assunto da pedofilia é sério sob
todos os em pontos de vista. As igrejas e as religiões (e a pedofilia não será
certamente exclusivo da Igreja Católica) não têm tabus na exploração dos
crentes e dos que lhes possam servir de matéria a dominar, a violentar. As
religiões são um crime continuado há milénios. Os deuses são feitos à imagem
dos piores dos homens. A Igreja Católica do século XXI tem a seu favor
relativamente às outras o facto de se expor. No Islão a pedofilia é oficial e
abençoada pelas leis do profeta, com o casamento de crianças.
- O fanatismo islâmico: Mata à vista dos cabelos das mulheres, do seu pescoço, do
tornozelo, da inteligência. Mata para impedir a humanidade e dignidade da
mulher, mata pela cobardia dos homens perante as mulheres. Seitas de assassinos
no Irão e nas Arábias são os nossos melhores aliados porque vendem petróleo em
troca de mulheres.
Acontecimento Nacional do Ano:
- A placidez nacional perante o mundo. Resistimos com disciplina à
pandemia, votámos uma maioria para não termos surpresas, fazemos julgamentos na
praça pública para não incomodarmos juízes e procuradores, acreditamos que vai
ficar tudo bem, apesar das breaknews das televisões e das suas
campanhas de bombardeamento a propósito de desgraças cíclicas previsíveis,
incêndios e cheias, gripes e entupimentos nas urgências. O Zé Povinho, totem
nacional criado por Bordalo Pinheiro, tudo aguenta e quando bufa fá-lo sem
grande alarido nem convicção. O presidente da Republica representa o pensamento
nacional melhor do que os condutores de táxi e os barbeiros.
Acontecimentos inculturais do ano:
Nacional:
A saga do Big Brother, um verdadeiro teletrabalho de Filosofia de Alcova
representado por uns rufias e umas gajas despachadas.
Os concertos sem dó dos programas das TV nas tardes de Domingo, com
domingos e dominguinhas e acompanhamento de modelos atualizados das netas
das pin-up do Vilhena, ao vivo e a cores. Espetáculos
multimédia, alguns de autocarro (uma reativação das excursões da FNAT!). E têm
audiências!
As Claques , a grande alteração do ano foi a passagem das claques
do futebol para as claques das televisões. A mesma violência do “Só os nossos
são bons!” Quem não acredita em nós é do inimigo. Onde havia superdragões, no
name boys, lagartos e torcida leonina, há agora CNN de Queluz, SIC de Paço de
Arcos, RTP de Olivais. Onde havia coiratos e cervejas há água de marca branca,
mas mantem-se a gritaria e a injúria ao pensar.
Internacional: O campeonato do mundo de futebol no Qatar
Perguntas internacionais do ano:
- Cristina Lagarde percebe alguma coisa de finanças?
- Os aiatolas do Irão, os xerifes do islamismo, os chefes da
Alqaeda, os talibans têm mãe e irmãs? Nasceram paridos por quem? São casados
com quem? São tarados?
- Onde espera o Zelenski gozar a reforma? Miami? Mónaco?
- De quem foi a ideia de criar um tribunal para julgar o governo
russo, o que implica mandar um oficial de justiça a Moscovo trazer o Putin, os
seus ministros e generais para serem julgado por crimes de guerra no tribunal
internacional dos estados que bombardearam a Sérvia e invadiram o Iraque?
- Existe algum espaço que o Elon Musk não explore?
- O sucessor do Trump será menos grotesco que o original?
- Quem é o chanceler da Alemanha, dado que a antiga germania
está no estado sede vacante, sem papa, bispo, cura, sacristão?
- Os Verdes e Pacifistas alemães já estão maduros para
aderirem ao nuclear e para negociar armamento?
. A descoberta da produção rentável de energia através da
fusão nuclear é verdadeira, ou apenas uma mentira piedosa do governo americano
para mascarar a falta de alternativas ao petróleo e ao gás da Rússia?
- O Batalhão do Mónaco, dos milionários patriotas ucranianos
aliados de Zelenski e na frente de batalha do principado, deixou de comer
caviar russo?
- Os satélites espiões e as armadas da NATO ainda não
descobriram onde os petroleiros indianos passam o petróleo russo para os
petroleiros com bandeira do Panamá? E também não descobriram nenhuma atividade
estranha junto aos gasodutos Nordstream que explodiram nas águas territoriais
suecas?
- O Iémen ainda existe? E a Líbia?
- Há algum correspondente de guerra das televisões na
Palestina?
- Em que número vai o pacote de sanções à Rússia? Quando
sairá um novo?
- Dado que o empresário é o mesmo, a guerra no Kosovo está a
aguardar que a da Ucrânia arrefeça para acender as fornalhas, ou pode começar
desde já?
Perguntas nacionais do ano:
- Onde será o novo aeroporto?
- Haverá novo aeroporto?
- Que acordo ortográfico vigora nas legendas das televisões?
Pergunta eterna:
Até quando aguentará o Muro das Lamentações as cabeçadas que
lhe dão?
Vencedores do ano:
- O Qatar (dos emires de camisa de dormir e
dos camelos que lá foram ver a bola), que conseguiu organizar um campeonato do
mundo de futebol num deserto, num país onde não se joga futebol e onde não
cresce relva. Prova de que não existem impossíveis: desde que se pague.
- Os Estados Unidos, que conseguiram separar a
Europa Ocidental da Rússia e integrá-la como estado vassalo.
- As indústrias da saúde, dos armamentos e do petróleo — que tiveram um ano de belos
lucros e que, com a derrota da Europa na guerra na Ucrânia, e o consequente fim
do estado social, terão ainda melhores perspetivas com a total liberalização
dos serviços médicos e sanitários.
- Elon Musk: que ganhou milhões do governo dos Estados Unidos (ele é um
liberal — abaixo o Estado) a colocar satélites (até aos 12.500) para
transmissão de dados e condução de operações militares por conta dos Estados
Unidos; comprou o Twiter para transmitir a sua visão do mundo da selva, do cada
um por si e ele a receber de todos, despediu os colaboradores e ainda levou um
português a dar uma voltinha de foguetão num parque de diversões para adultos
que querem ser famosos.
- A igreja IURD e o seu bispo milionário, que
batizaram Bolsonaro e transfiguraram um ser cavernícola numa espécie de
humanoide, conseguindo a proeza de o fazer eleger sem ele falar e de o manter
disfarçado de Presidente do Brasil durante toda uma legislatura! Não admira,
pois, que nas ditas igrejas evangélicas os paralíticos andem, os cegos vejam e
os mudos cantem!
- O Presidente da Coreia do Norte, que escapou mais um ano ao destino
de Saddam Hussein e de Khadafi lançando uns foguetes para o Mar do Japão,
avisando que podem transportar as armas de destruição maciça que os EUA não
descobriram no Iraque e que, ao contrário da Líbia, não tem petróleo no
território, mas que para umas doses de urânio ainda se arranjam alguns trocos.
- Recep Erdogan, presidente da Turquia, que se
marimbou para as sanções americanas à Rússia, manteve o diálogo com todos os
atores da região, recebeu os curdos atados de pés e mãos dos países nórdicos a
troco de os deixar entrar na NATO, que ele utiliza para fazer negócios,
arbitrou o trânsito de navios de cereais no Mar Negro e parece ser o único
interlocutor sensato e com acesso a todas as partes neste conflito. Chapeau!
O Grande Vencedor do Ano:
- Xi Jiping! Quase sem se mexer, sorrindo, o presidente da China, Xi
Jiping, tornou-se o homem mais poderoso do planeta. Ele é o chefe do novo polo
mundial que se confronta com os Estados Unidos. O polo encabeçado pela China
inclui a Rússia e a Índia, os restantes Brics, caso do Brasil e de alguns dos
principais países africanos. Um polo com um mínimo de 3 potências nucleares,
que será determinante no Pacífico e no Índico, que criará uma nova moeda de
troca mundial, que integra a nação com maior superfície territorial no planeta,
a Rússia, e as duas mais populosas nações, a Índia e a China. Uma China que
determinará a ação política de potências como o Japão e a Coreia.
Fantasma do ano:
- Liz Truss — a speedy Gonzalez do governo
inglês (40 dias no 10 de Downing Stree!). O Reino Unido na decadência até da
imagem de respeitabilidade, dirigido por aventureiros como ela, como Farage e
Boris Johnson.
Ideia luminosa
- Criptomoeda — Bitcoin e correlativos. Na área da banca, finança e
outros mistérios, o vencedor será Luiz Capuci, americano de 44 anos, residente
na Florida, acusado dos crimes de “conspiração para cometer fraude eletrónica,
fraude de valores mobiliários e lavagem de dinheiro a nível internacional”.
Capuci enganou os investidores sobre o programa de criação e investimento de
criptomoeda da sua empresa, que oferecia investimentos através da compra de
“pacotes de mineração”. Há quem acredite e invista em pacotes de mineração!
Música do Ano:
- Tempestade perfeita e Sinfonia imperfeita pelo trio Ursula Van Der
Leyen, Borrel e Mitchel, acompanhados à metralhadora por Jens Stoltenberg com
orquestra da NATO. Destroçaram a Europa a toques de finados.
Vergonha Internacional do ano:
- A continuação da prisão de Julian Assange!
Zômbis internacionais do ano:
Trump e Bolsonaro — ainda não sabem que deixaram de existir.
Zômbis nacionais do ano:
- Maria João Avilez e Marques Mendes — também não existem,
mas gralham.
Palavras do ano:
- Drone! Pacote! Bazuca! AZOV! Dívida! Gás e eletricidade! (E
porque não: à rasca!)
Perplexidades do ano (vindas do anterior):
- As inadiáveis consequências das alterações climáticas
afinal podem esperar em pousio até ao final da guerra na Ucrânia?
- Os carros elétricos poluem mais do que os de motores
convencionais? O que fazer com as baterias usadas? Para quando aviões
elétricos, paquetes de cruzeiro elétricos? Para quando uma guerra ecológica com
foguetões intercontinentais elétricos?
- Israel tem bombas atómicas no Médio Oriente, mas o perigo
são as que o Irão não tem?
- Os palestinianos são seres humanos, ou alvos para os
israelitas treinarem?
- Moscovo e São Petersburgo são cidades asiáticas? Sidney é
europeia?
- O COVID foi inventado por um chinês, mas porque vão os
lucros das vacinas para as multinacionais americanas e europeias!
- Qual a diferença entre um oligarca russo e um
multimilionário americano?
- Como foram substituídos os trabalhadores pelos
colaboradores na civilização do Ocidente neoliberal e porque ficaram os
emigrantes de fora da conversão?
- Quantas voltas dará Marcelo Rebelo de Sousa ao mundo até ao
final do mandato?
- Onde estava C Costa, o governador do Banco de Portugal,
enquanto o BES foi o Dono Disto Tudo?
- Além do grito: Vergonha! Qual é o programa político dos
seguidores do esbracejante Ventura, depois de, segundo o DN de 27 de Agosto (na
distração das férias) de ter “eclipsado” a destruição da escola pública e do
SNS das suas bases programáticas?
- O que é a clarificação inversa que o chefe do Chega invoca
para propor a lei da selva?
- Além de receberem mensagens do exterior e fazerem de
porta-vozes, de irem a reuniões no estrangeiro, qual é a atividade dos
ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros?
- A ASAE já sabe quantos gramas têm os novos quilos dos
produtos que mantiveram os preços nas embalagens?
- Quando saberemos se somos visitados por extraterrestres?
Frustrado do ano (nacional):
- O bastonário da Ordem dos Médicos, que ainda não conseguiu extinguir o
Serviço Nacional de Saúde!
Frustrados do ano (internacional):
- Os acionistas da Nord Stream, a empresa de transporte de gás
cujos pipelines foram sabotados por sapadores amigos. A Nord Stream é uma rede
de gasodutos subaquáticos através do Mar Báltico que deviam fornecer gás
natural diretamente para o sistema europeu de transporte a partir das vastas
reservas de gás da Rússia. Esta infraestrutura de energia de última geração
financiada pelo setor privado teria uma vida útil de pelo menos 50 anos
forneceria gás aos seus parceiros europeus, contribuindo assim para a segurança
energética da Europa nas próximas décadas. O consórcio de gasodutos Nord Stream
AG tinha sede em Zug, na Suíça, era uma joint venture internacional para o
projeto, construção e operação dos novos gasodutos offshore. A russa Gazprom
detinha uma participação de 51% na joint venture; as empresas alemãs BASF e PEG
Infrastruktur AG detinham 15,5 por cento cada; a empresa de gás holandesa
Gasunie e a francesa Engie 9% cada. Os 5 acionistas principais detinham 30% do
capital de 7,4 mil milhões de euros e 70% tinha sido colocados no mercado de
capitais. Um investimento a longo prazo com dividendos assegurados. De repente
tudo explodiu. A 27 de Setembro de 2022 várias explosões subaquáticas
danificaram o gasoduto de forma dificilmente reparável. Nenhum autor desta
sofisticada sabotagem no mar territorial da Suécia se assumiu. Os dois
gasodutos de NordStream tinham capacidade para fornecer 27,5 mil milhões de
metros cúbicos de gás por ano, isto é 12% das importações de gás da União
Europeia. Foi tudo por água abaixo (ou acima), mas os desiludidos que esperavam
ganhar uns milhões de lucros em dividendos mantêm-se em silêncio cobarde.
Moda 2022
- Elas: Jaquetas de libelinha azul sobre T-shirt amarela à
Úrsula Van Der Leyen
- Eles: Camuflado diplomático à Borrel, ou T-shirt verde
azeitona à Zelenski
- Cartões de crédito platina (em alternativa conta no Dubai,
no Qatar, nas Ilhas Caimão, ou no Estado de Delaware)
Destino turístico do ano
- Kiev — que substituiu Kabul, que tinha substituído
Belgrado, que sucedera a Bagdad, ou ao contrário.
Desaparecidos do ano
- Guaidó, o presidente virtual da Venezuela (Washington não paga a inúteis)
- Carles Puigdemont o libertador da Catalunha, em parte incerta pela Europa
- Nigel Farage — o patrocinador do Brexit.
Desaparecido depois do êxito da campanha.
Ressuscitado do ano:
- Sílvio Berlusconi! Apareceu, recauchutado,na segunda fila de um governo
italiano liderado por uma espampanante fascista. Regressam as festas
bunga-bunga. Que tipo de Viagra tomará?
Imortal do ano:
- Pinto da Costa
Funerais e velórios:
- Da rainha Isabel de Inglaterra e de Eduardo
dos Santos de Angola — um grande espetáculo de sofreguidão
com abutres e hienas sobre dois cadáveres!
Produtos do ano (segundo o sales manager Rogeiro):
- Gás liquefeito americano (para evitar a dependência
energética da Europa!); HMRS (um género de lançadores de fogo à distância)
- Canhão Caeser — 40 quilómetros de viagem sem reclamações
- Míssil Patriot
- Javelins
- Fakenews
Objeto nacional do ano:
- Pilaretes, radares, ecopistas
Livros do Ano:
- Nacional: «O Governador» — como sacudir a
porcaria do capote e espalhá-la pelos inimigos, de C. Costa, gerente de banco.
- Internacional: «Não Te F* das», de Gary
John Bishop, que também escreveu «Sai da Tua Cabeça e Faz-te à Vida» — O livro
vale pelo título, Não Te F*das é o manual de instruções para os que se
resignaram à sua vidinha, ou para aqueles que querem (muito) mais do que têm.
É, segundo a editora, “um verdadeiro manifesto para uma mudança real e
significativa”. Traduzido já em 24 países, incluindo, segundo a promoção, o
Vietname, passando pela Mongólia. É, julgo, livro de cabeceira dos autores
nacionais de bestsellers.
Grande questão do ano e do próximo futuro
- Os WC! Os arquitetos e os fabricantes de
louça sanitária estão em apuros para definirem o lay out (desenho
de colocação e distribuição de equipamentos parecia pouco moderno) das novas
casas de banho para o mais recente género da humanidade ocidental, o LGBT. No
resto do planeta o assunto tem sido resolvido sem disputas com a natureza.
Há ativistas de causas que propõem uma consulta ao livro do
Génesis para descobrir como se aliviam o Adão e a Eva! Para se descobrir se as
calças devem ter braguilha e se as saias devem ter presilhas de sustentação.
Aflição do Ano:
- Onde se aliviam os LGBT? (Prevejo que será o grande tema mobilizador das
hostes educadas do Ocidente em 2023, em substituição do atirar tinta às obras
de arte clássicas!)
Atores Dramáticos do Ano:
- Cristiano Ronaldo e Vladomir Zelenski, Ursula Van Der Leyen
e Madame Zelenska.
Pastores Bíblicos do Ano:
Nacionais:
- Rogeiro&Milhazes — Meninos de Deus
Internacionais:
- Jens Stoltenberg — Secretário-geral da Nato e profeta
principal do Senhor Deus dos Exércitos.
Pastores ecuménicos nacionais:
- Marques Mendes e Paulo Portas
Pastor ecuménico internacional:
- Mark Sargent, o terraplanista americano que anda pelo mundo a garantir
que a Terra é plana. “A ciência diz que estamos numa pequena rocha coberta com
um pouco de água e fumo, voando pelo espaço em diversas direções e velocidades.
Mas não, tudo o que vemos é parecido com o cenário de filme . “Tudo o que se vê
em cima de nós, como as estrelas, os planetas, o Sol e a Lua, são apenas
imagens no teto”.
Pessoas como estas guiam automóveis, compram armas e podem
viajar de avião a nosso lado. Apanhei um que vinha do Utah, num voo de Nova
Iorque, ver o ponto de aterragem da senhora de Fátima em Portugal. Dizia-me que
se a Terra fosse uma esfera ela não teria pousado em cima de uma azinheira,
seguia em tangente para os confins do universo. E porque não se esborrachou na
Serra d’Aire? Atrevi-me a questionar. É o segredo de Fátima, respondeu-me.
Cómicos Internacionais do Ano:
- Os porta-vozes do Kremlin. Um fardado e o outro em efígie.
Episódio pícaro:
- Sofagate. Charles Michel e Ursula Van Der Leyen na dança das cadeiras
diante do presidente turco. Michel senta-se ao lado do presidente turco
Edorgan, e a senhora de pé, até se decidir pelo sofá. Um casal de frangos em
apuros. A União Europeia em contradanças.
Mulher liberal do ano:
Nacional:
- Alexandra Reis — gestora. Que arrecadou 500 mil euros de
indemnização por atravessar a rua e ir da TAP à sede da NAV!
Internacional
- Elizabeth Holmes, americana, de 37 anos, fundadora de uma
empresa de biotecnologia que prometia revolucionar os exames de
sangue com ferramentas mais rápidas e baratas do que as utilizadas por
laboratórios tradicionais. Foi acusada, não de charlatanismo, mas de um crime
verdadeiramente grave: enganar investidores que colocaram dinheiro na sua startup (ou
unicórnio), com sede na Califórnia.
Êxtase do Ano:
- A reportagem do Casal Zelenski e Zelenska, em Kiev, para a
Vogue, entre escombros e cetins. Amor em tempo de cólera, do mais refinado.
Lágrimas até encher as barragens.
Ingénua do ano:
- Ana Lúcia Matos — apresentadora ou ex-apresentadora de
televisão. Uma famosa cujo marido, namorado ou companheiro foi detido e acusado
de uma fraude internacional de cerca de 2,2 mil milhões de euros, e que, apesar
da vida luxuosa que ele lhe proporcionava, acreditou que tudo era fruto de
honesto trabalho!
O nome mais insólito de um território nacional:
- Oeiras Valley — com um xerife chamado Isaltino
A mais estranha operação policial:
- A captura de uma caixa de garrafas de vinhos ao ex-bancário
e ministro Manuel Pinho!
O milagre do Ano:
O aparecimento de um saco com milhares de euros na casa de
uma eurodeputada grega, que louvava o regime do Qatar! A miraculada chama-se
Eva. (Eva Kaili) O milagre produziu-se num espaço de paz ecuménica entre
o islamismo petrolífero e o cristianismo ortodoxo grego. A dita miraculada é
também missionária das criptomoedas.
O Bezerro de ouro:
- O bezerro de ouro do ano chama-se Infantino e
é presidente do consórcio mundial de futebol, a FIFA. Organizou um campeonato
do mundo a meio dos campeonatos nacionais e no Natal cristão, sobre campos de
gás natural e à custa de trabalho de seres humanos bestializados. Os números do
espetáculo lá se foram sucedendo até à apoteose final em que os artistas de
calções conviveram com dignitários bem ajaezados de fato ou camisa de noite com
touca. Poucas mulheres à vista e nada de álcool, nem o champanhinho do costume
a esguichar sobre a multidão se viu. Os camelos locais e os do estrangeiro
podem agora descansar que o Infantino deve estar a preparar mais um espetáculo
com bezerros de ouro e anões de calções.
https://cmatosgomes46.medium.com/2022-%C3%A0-la-minute-on-my-own-ffd9600be669
Francisco Louçã - Casos e casinhos, ou como ser governado por uma casta
Estado da Noção
* Francisco Louçã,
Deixou de ser preciso demonstrar como
se gera esta bolha de favorecimento, os factos falam por si,mesmo que seja
notório que o Governo tem um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga
de demissões
Édemasiado fácil, embora verdadeiro, ver nesta vertigem
de minirremodelações governamentais a prova do pudim da maioria absoluta e da
impunidade dos governantes na escolha de gente que lhes chega medalhada pelo
partido (Miguel Alves) ou pelo trânsito meteórico entre empresas (Alexandra
Reis). Deixou de ser preciso demonstrar como se gera esta bolha de
favorecimento, os factos falam por si, mesmo que seja notório que o Governo tem
um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga de demissões a uma polémica
impopular. A declaração do primeiro-ministro sobre os “casos e casinhos”, essas
maléficas inventonas das oposições, é deste modo engolida com fel em cada um
destes episódios, que chegam a ser desconcertantes de tanta prosápia e
cumplicidade. Deixando o nevoeiro sempre capitoso destes casos, proponho-vos a
tese de que isto não é o resultado de erros ocasionais, é antes a prova da
natureza do nosso regime social, o resultado de uma construção meticulosa de
redes de poder, ou de como uma casta se incrustou no uso do Estado. Essa casta
é o passado de Portugal e quer ser o nosso futuro.
UM PASSADO QUE NOS MORDE
Malgrado a polémica historiográfica,
vou tomar como aceitável a tese de que a emergência da burguesia moderna se fez
em Portugal, ao longo do século XIX, ancorada numa aliança entre o capital
comercial e a propriedade fundiária, sob a tutela do Estado. Daí terá resultado
um conservadorismo arreigado, expresso, nomeadamente, na frágil
industrialização e na fantasia imperial, vista como uma protegida reserva de
acumulação de capital. Ao chegar à segunda metade do século XX, este sistema
radicalizou-se na Guerra Colonial, mas, entretanto, ia mudando por dentro, seja
pela consolidação da fusão entre a banca e o imobiliário, com a urbanização e a
primeira turistificação, seja pelo impulso europeu, sobretudo na finança. Como
este processo foi brevemente interrompido pelo 25 de Abril e depois recomposto
com uma nova concentração de capital, é útil estudar como têm sido produzidos
os governantes.
Com dois colegas, João Teixeira Lopes
e Jorge Costa, publicámos, em 2014, um livro, “Os Burgueses”, que estudava
esses processos. Um dos capítulos dedica-se a uma investigação detalhada do
perfil de todos os ministros e secretários de Estado de todos os Governos
constitucionais até ao ano anterior, 776 pessoas (mas de 78 não conseguimos
dados). Queríamos perceber como a hegemonia da burguesia sobre a economia e a
reprodução social seleciona os governantes. E, para isso, observámos a sua
trajetória pessoal, tendo registado que, se bem que uma parte deles tivesse
chegado ao Governo vinda do Parlamento ou de funções públicas e sem ligação
empresarial anterior, o facto mais notável era a passagem posterior para as
chefias de empresas. Assim, se só 89 chegaram ao Governo vindos de
administrações, quase metade dos governantes emigrou para o topo de empresas da
finança (248) e imobiliário (95). Naturalmente, trata-se de cargos
estratégicos: 170 desses governantes foram para grandes grupos económicos, 107
para os que gerem parcerias público-privado. Nestes casos, a casta foi formada pela
cooptação económica que consolidou um novo estatuto social. O seu circuito
fundamental tem sido partido-Governo-empresas.
OS OUTROS CAMINHOS PARA ROMA
Chegar ao topo destas empresas, seja
como facilitador com o partido, seja para abrir uma nova carreira, não é de
somenos. Quando, há anos, propus no Parlamento uma lei que determinava que os
pagamentos aos administradores de empresas cotadas fossem publicados no
relatório anual, e era difícil recusar que esta informação era um direito dos
acionistas e do público, o presidente de um grande banco, cuja administração se
fazia pagar um prémio de 10% dos resultados líquidos, veio indignar-se e
garantir que, se a lei fosse aprovada, haveria uma revolta social. Para os
beneficiados, com ou sem revolta, a promoção vale a pena.
No entanto, a formação de ligações de
casta também segue outros caminhos. Há a corrupção e, se alguns casos têm sido
investigados, ainda teremos de esperar pelo dia em que um qualquer Rui Mateus
conte as ligações angolanas de financiamentos de alguns partidos e outras
tropelias. O processo sobre os pagamentos do BES a Manuel Pinho arrasta-se em
tribunal, bem como outros. Há ainda os vínculos do financiamento declarado: em
2021, o IL recebeu dinheiro do CEO da EDP, que os Champalimauds e Mellos
pagaram ao Chega e que o PS continua a receber donativos da gente fiel da Mota
Engil.
As redes de compromisso são as mesmas
que levaram tantos ex-governantes a ocupar posição nas empresas das PPP. Por
isso a defesa extravagante dos vistos gold, dos benefícios a não-residentes, de
que a EDP não pague imposto pela venda de barragens, tudo merece ser visto à
luz da casta que ocupa e ocupará estes lugares.
Alexandra Reis não inventou nada.
Reclamou para si a regra que protege os gestores, se forem despedidos recebem
tudo (há mesmo quem chame a isto meritocracia?). Passou da TAP para a NAV e
desta para o Governo, tendo sido escolhida pela experiência brevíssima nestas
empresas, aliás mal sucedida numa delas. Disso beneficiou, achando que
começaria uma carreira política sem que alguém questionasse o privilégio
daquele pagamento. Nisso cometeu o erro de exibir a arrogância da casta. Mas a
regra não mudou nem mudará, pois não? Pois esperemos pelo próximo casinho.
30.12.2022
https://expresso.pt/opiniao/2022-12-30-Casos-e-casinhos-ou-como-ser-governado-por-uma-casta-7abd5012
sexta-feira, 30 de dezembro de 2022
Daniel Oliveira - Estava fadado
* DANIEL OLIVEIRA
A demissão
de Alexandra Reis tornou-se inevitável desde que saiu o comunicado da TAP. Já
era evidente que a presidente da empresa a tinha querido fora do Conselho de
Administração, convidando-a a rescindir. O que resulta do comunicado foi que a
TAP optou por negociar a rescisão para não seguir o Estatuto do Gestor Público.
Depois do esclarecimento, Medina não podia fazer outra coisa. Como iria uma
secretária de Estado do Tesouro que custou meio milhão ao Estado explicar que,
apesar dos excedentes orçamentais, não há dinheiro para travar a degradação de
serviços públicos? A demissão de Hugo Mendes tornou-se inevitável quando se
percebeu que autorizou uma solução que lhe foi vendida como a melhor. A
ex-administradora teria sempre de ser pressionada para devolver o que não lhe
era devido depois de ir para a NAV. E a administração da TAP nunca mais poderá
continuar a dizer que os trabalhadores em greve põem em perigo uma empresa
salva com dinheiros públicos depois de ter estourado meio milhão para se ver
livre de uma administradora. Quanto a Pedro Nuno Santos, mesmo que não soubesse
do acordo final, nunca deixariam de dizer que tinha de saber. Atirar a culpa
para o “porteiro” seria feio. As legítimas dúvidas legais e a revolta popular
com esta indemnização não o abandonariam.
Em circunstâncias normais, Pedro Nuno Santos sairia
chamuscado mas não precisaria de se demitir. Não se pode ser responsável pelo
que se sabe mais tarde. Só que a TAP não é um dossiê como os outros, o ambiente
social não é o normal e governar sabendo que não se tem a solidariedade do
primeiro-ministro é insustentável. Ainda mais num Governo que está tão distante
das suas convicções políticas. Pedro Nuno Santos estava fadado a sair deste
Governo. Assim, sai assumindo a responsabilidade política do que acontece no
seu ministério. Nem todos podem ser Costa, que, com onze governantes demitidos
em nove meses, nunca assume as responsabilidades do que sabe, do que não sabe e
do que prefere não saber.
O natural impacto desta demissão deixa um debate por fazer.
Ao contrário do que diz a voz popular, não é preciso ter cartão partidário para
subir depressa na vida. E Alexandra Reis foi exemplo disso. Sem passado político,
chega à administração pela mão de Humberto Pedrosa e dá nas vistas como gestora
pela tenacidade com que participou na reestruturação da TAP, reduzindo com
eficácia salários e pessoal. Foi por causa dessa qualidade exterminadora, e não
por ter cartão do PS, que foi parar ao Governo. A política deve abrir-se à
sociedade civil. É um dos mantras impensados que mais se repete. Se a ideia é
que a política deve estar mais próxima do povo, subscrevo o ideal democrático.
Mas não é bem isso. É a ideia de que a política suja se purificará abrindo uma
janela para uma “sociedade civil” onde se respira competência e virtude. E quem
fala de “sociedade civil” não está a pensar em sindicatos, associações ou ONG.
Está a pensar, na melhor das hipóteses, na academia e, mais frequentemente, nas
empresas. Porque é lá que o mercado já selecionou “os melhores”.
Pedro Nuno Santos estava fadado a sair deste Governo. Sai
assumindo a responsabilidade política do que acontece no seu ministério. Nem
todos podem ser Costa, que, com onze governantes demitidos em nove meses, nunca
assume as responsabilidades do que sabe, do que não sabe e do que prefere não
saber
A tecnocracia trata a democracia como um processo de
recrutamento dos “melhores”, e não como uma forma de representação de
alternativas políticas. E quando passou a ir buscar “os melhores” às empresas,
transferiu, quer na lógica de direção do Estado, quer na cultura dos decisores,
a eficácia empresarial para as políticas públicas. O que quer dizer que quem
consegue reduzir drasticamente a massa salarial e despedir com rapidez dará, em
princípio, uma boa secretária de Estado do Tesouro.
Se as empresas públicas devem ser geridas como as privadas, a
ideia de serviço público faz pouco sentido. Se os gestores, públicos ou
privados, coabitam no mesmo mercado concorrencial, partilham, para além de
salários semelhantes, a convicção de que fazem parte de um clube restrito, onde
lhes está garantido um regime de proteção especial, como acontece hoje em quase
todas as grandes empresas. Alexandra Reis (e a TAP) limitou-se a seguir o
critério da casta a que ela julga pertencer e onde o Governo a foi buscar. Uma
casta à qual não se aplicam as leis laborais que os gestores querem para os
trabalhadores, mas o regime de exceção que garantem para si mesmos. A
flexibilidade é para os outros. Porque, vale sempre a pena recordar, eles são
“os melhores”.
O Presidente da República teve razão quando disse que meio
milhão de indemnização faz impressão ao português comum. Não porque o português
comum seja impressionável, mas porque é impressionante a diferença de critérios
para a indemnização de um trabalhador ao fim de uma vida numa empresa e de um
gestor que por lá passa dois anos a despedir pessoas. Na torre de marfim onde
vive, esta casta convenceu-nos de que, por serem “os melhores”, merece o
privilégio único da segurança. Habituámo-nos a isto nas empresas. Ainda nos
incomoda na política. Só quando lá chegam suspeitamos do seu mérito e
revoltamo-nos com as falhas éticas do seu passado. Tivesse Alexandra Reis
seguido a sua vida e ninguém saberia. Pedro Nuno Santos, esse, acabaria por
sair. Talvez por razões melhores.
https://expresso.pt/opiniao/2022-12-30-Estava-fadado-dbd809af
quarta-feira, 28 de dezembro de 2022
Annie Lacroix-Riz: “Há um contexto histórico que explica o encurralamento da Rússia”
03.06.22
Annie Lacroix-Riz escreveu vários livros sobre as duas guerras mundiais e as dominações políticas e económicas. Nesta entrevista, analisa a situação na Ucrânia à luz da história dos imperialismos do início do século XX e da sua perduração. Com efeito, o que nos é dito, vezes sem conta, nos meios de comunicação social, não nos permite compreender o conflito e, por conseguinte, impossibilita-nos de procurar uma solução para a paz. Nesta entrevista, Annie Lacroix-Riz oferece um olhar para além do que é aparente, o qual é extremamente útil para entender os acontecimentos e a história recente da região.
Professora Emérita de História Contemporânea da Universidade Paris VII-Denis Diderot, Annie Lacroix-Riz escreveu vários livros sobre as duas guerras mundiais e as dominações políticas e económicas. Nesta entrevista, analisa a situação na Ucrânia à luz da história dos imperialismos do início do século XX e da sua perduração. Com efeito, o que nos é dito, vezes sem conta, nos meios de comunicação social, não nos permite compreender o conflito e, por conseguinte, impossibilita-nos de procurar uma solução para a paz. Nesta entrevista, Annie Lacroix-Riz oferece um olhar para além do que é aparente, o qual é extremamente útil para entender os acontecimentos e a história recente da região.
Nos meios de comunicação social, fica-se com a impressão de
que a guerra na Ucrânia aconteceu a partir do nada. O que nos pode dizer sobre
o contexto histórico desta guerra?
Em primeiro lugar, os elementos históricos estão praticamente
ausentes daquilo que nos é frequentemente descrito como uma "análise"
da situação. No entanto, há dois aspetos importantes a ter em conta nos
acontecimentos atuais. Em primeiro lugar, existe uma situação geral, ou seja,
uma agressão da NATO contra a Rússia. Depois, há uma espécie de obsessão contra
a Rússia – e até contra a China. Esta obsessão não é nova e, portanto, permite
relativizar o atual frenesim anti-Putin. A essência da alegada "análise
ocidental" assenta na ideia de que Putin é um lunático paranóico e/ou um
novo Hitler. Mas o ódio contra a Rússia, assim como o facto de não se suportar
que esta possa ter um papel mundial, são tão velhos quanto o imperialismo americano.
Como é que explica esta obsessão?
É uma obsessão característica de um imperialismo dominante
que foi hegemónico durante, praticamente, todo o século XX. Este imperialismo
não quer perder a sua hegemonia, ainda que, na realidade, a esteja a perder. Com
efeito, hoje já não estamos na mesma situação em que estávamos na década de
1950, quando os Estados Unidos representavam 50% da produção mundial. A China
está a aproximar-se do primeiro lugar, no mundo, e isso não agrada aos Estados
Unidos. Nos últimos anos, atingimos um momento particularmente agudo neste
confronto, marcado por uma série de ataques surpreendentes.
Neste confronto, a Rússia também é um alvo. Temos a impressão
de que haveria uma espécie de rancor contra os bolcheviques, mas é preciso saber
que esta Russofobia do imperialismo americano remonta à era czarista, e
continuou depois, incluindo após a dissolução da União Soviética. Os
compromissos assumidos pelos Estados Unidos de não avançar militarmente na zona
ex-soviética foram, desde então, todos violados. De 1991 a fevereiro de 2022, a
NATO estabeleceu-se nas fronteiras da Rússia e a nuclearização da Ucrânia
tornou-se numa realidade imediata.
Qual é o lugar da Ucrânia nos conflitos entre potências
imperialistas?
A Ucrânia é inseparável da história da Rússia, desde o início
da Idade Média. A Rússia, com toda a sua riqueza natural, é uma gruta de Ali
Baba e a Ucrânia foi a sua mais bela jóia: é uma fonte extraordinária de
carvão, de ferro e de tantos outros recursos minerais, e um formidável depósito
de trigo e de outros cereais - o que, aliás, atraiu a cobiça de muitos, desde
há muito tempo. Para nos mantermos no período imperialista (desde a década de
1880), podemos dizer que foi a Alemanha que, num primeiro momento, se
interessou pela Ucrânia. Antes da guerra de 1914, o Reich alemão tinha
decidido, a fim de controlar o Império Russo, garantir o controlo dos seus
"mercados" mais desenvolvidos: a Ucrânia e os Estados bálticos.
Durante o conflito, a Alemanha fez destes Estados e da Ucrânia um verdadeiro
reduto militar, a base do seu ataque ao Império Russo. Durante a Primeira
Guerra Mundial, se a Alemanha falhou na Frente Ocidental, logo em 1917, o mesmo
não se pode dizer da Frente Oriental, a qual foi dominada pela Alemanha até à
sua derrota. E, apesar de, desde janeiro de 1918, a recém-soviética Rússia
estar a sofrer uma agressão adicional de todas as outras potências
imperialistas (14 países invadiram a União Soviética, sem que tenha havido uma
declaração de guerra), Berlim conseguiu impor-lhe, em março de 1918, o Tratado
de Brest-Litovsk, confiscando-lhe a Ucrânia. A derrota da Alemanha no final da
Primeira Guerra Mundial não fez com que a Ucrânia fosse devolvida à União
Soviética, dada a guerra travada no seu solo pelos "Aliados", apoiada
por todos os elementos anti-bolcheviques, russos e ucranianos.
A Ucrânia conheceu, então, uma curta independência...
De 1918 a 1920, houve, de facto, um curto período de
"independência" folclórica, tendo como pano de fundo a agressão dos
exércitos brancos (pogromistas) de Denikin, e do pogromista Petlyura,
oficialmente "independentista" e aliado da Polónia (que pretendia,
para si, toda a Ucrânia ocidental). A Ucrânia continuou, então, a ser alvo do
Reich, o qual sucedeu ao império austríaco, depois "austro-húngaro"
dos Habsburgos (possidentes da Galicia oriental, a oeste da Ucrânia, depois de
dividida a Polónia[i]). Esta tutela germânica constituiu,
assim, desde o tempo dos Habsburgos, uma base preciosa para o enfraquecimento
da Rússia e do Eslavismo Ortodoxo, tendo-se baseado, sobretudo, no Uniatismo[ii], liderado pelo Vaticano.
Que papel tinha o Vaticano?
O Uniatismo Católico constituiu o apoio ideológico da
conquista germânica, tendo seduzido parte das populações do oeste da Ucrânia,
graças à sua aparência formal, muito próxima da Ortodoxia. Este instrumento da
conquista austríaca foi tomado em mãos pela Alemanha, na era imperialista: o
Vaticano, compreendendo que já não podia contar com o moribundo império
católico, submeteu-se, definitivamente, ao poderoso Reich protestante, no
início do século XX, incluindo na Ucrânia. No período entre-guerras, a Ucrânia
desempenhou, assim, um papel decisivo na aliança entre a Alemanha e o Vaticano,
a quem Berlim confiou a espionagem militar, realizada através dos clérigos
uniates. Podemos observar, deste modo, como foi organizada a tentativa de
conquistar a Ucrânia, consagrada, aliás, na Concordata do Reich de julho de
1933, assinada entre Berlim e o Vaticano. Um dos seus dois artigos secretos
estipulava que a Alemanha e o Vaticano seriam aliados na tomada de posse da
Ucrânia, que era um dos principais objetivos da guerra da Alemanha, tanto
durante a Primeira Guerra Mundial, como durante a Segunda Guerra Mundial.
Enquanto a militarização, a ocupação e a exploração económica estariam sob a
alçada da Alemanha, a "recristianização" católica seria entregue ao
Vaticano.
Os Estados Unidos também estavam interessados…
A Ucrânia é, não apenas um elemento importante no quadro
mundial, como a porta de entrada para o Cáucaso, rico em petróleo. Os Estados
Unidos juntaram-se ao imperialismo alemão para penetrar na Rússia e, em especial,
na Ucrânia, após o fim da Primeira Guerra Mundial. Em 1930, todos os
imperialismos sonhavam em devorar a rica Ucrânia. No meu livro Aux
origines du carcan européen [Sobre as Origens do Colete-de-Forças
Europeu], mostrei como Roman Dmovski, um político polaco de
extrema-direita, tinha analisado na perfeição, em 1930, "a questão
ucraniana". Roman Dmovski escreveu que todos os grandes imperialismos
queriam devorar a Ucrânia, sendo que, no topo, dois se atarefavam febrilmente
para o conseguir: o alemão e o americano. Este autor disse, também, que, se a
Ucrânia fosse arrancada da Rússia, tornar-se-ia num país puramente
"consumidor", obrigado a comprar os seus produtos industriais fora.
Ela nunca poderia suportar tal perda, acrescentou.
Isso não funcionou, pois a Ucrânia continuou no seio da União
Soviética. Ainda assim, havia, ou não, um nacionalismo ucraniano?
O nacionalismo ucraniano foi, primeiro, alemão e, depois,
americano (ou melhor, ambos), porque não tinha capacidade real de
independência: o Reich financiou-o antes de 1914, e nunca mais cessou de o
fazer. Na verdade, estas pessoas que diziam querer uma Ucrânia
"independente" (como Bandera e os seus seguidores) pertenciam ao
inatismo que, no período entre-guerras, e durante toda a Segunda Guerra Mundial,
se confunde com o nazismo.
É difícil não fazer a ligação com estes movimentos que hoje
encontramos: o batalhão Azov, Pravy Sektor, etc., são os herdeiros diretos que
se reivindicam do movimento autonomista ucraniano do período entre-guerras, que
viu a criação, em 1929, do movimento banderista. Denominado "Organização
dos Ucranianos Nacionalistas" (OUN), foi inteiramente financiado pelo
Reich de Weimar e, depois, por Hitler (depois de o "autonomismo" ter
sido subsidiado pelo Reich wilhelminiano).
Como é que este movimento se desenvolveu?
O movimento de Stepan Bandera, o agora "herói
nacional" oficial do Estado ucraniano, e ao qual o batalhão Azov e outros
grupos pró-nazis constantemente prestam homenagem, desenvolveu-se a partir de
1929, na Ucrânia polaca e na Ucrânia eslovaca. Não estava, contudo, presente na
Ucrânia soviética e ortodoxa. Os "banderistas", como as outras
correntes do "nacionalismo ucraniano", eram anti-judeus, anti-russos
e, também, violentamente anti-polacos. Atacavam de forma igualmente radical
ucranianos não-autonomistas e ucranianos que tinham permanecido próximos da
Rússia.
Estas bandas de auxiliares da polícia alemã, já em 1939, na
Polónia ocupada, e, depois, a partir de 22 de junho de 1941, na URSS ocupada,
formaram um autodenominado “exército de insurreição”, a UPA. Estes 150.000 a
200.000 criminosos de guerra massacraram, indiscriminadamente, centenas de
milhares dos seus "inimigos": judeus, ucranianos leais ao regime
soviético, russos e polacos, os quais odiavam indistintamente. Tomando, apenas,
o exemplo dos polacos, é importante referir que entre 70.000 e 100.000 civis
foram mortos pelas milícias banderistas, durante a guerra. O argumento de
propaganda popular de que o Estado polaco acolheu calorosamente os
"vizinhos" ucranianos, sentimentalmente tão perto, é, à luz desta
longa história criminosa (iniciada antes da guerra), grotesco.
Em 1944, quando a União Soviética recuperou o controlo de toda a Ucrânia,
incluindo Lvov (em julho), 120.000 destes criminosos de guerra fugiram para a
Alemanha. Os Estados Unidos usaram-nos, ao chegar, na primavera de 1945.
Um livro sobre o assunto, disponível online em inglês, Hitlers Shadow,
foi publicado por dois historiadores americanos. É ainda mais interessante é o
facto de os seus dois autores serem historiadores acreditados pelo Departamento
de Estado, com quem trabalham oficialmente sobre a história do extermínio dos
judeus: Richard Breitman e Norman J.W. Goda. Estes autores mostram como os
Estados Unidos, assim que chegaram à Alemanha, na primavera de 1945,
recuperaram todos os criminosos de guerra, alemães ou não. Alguns dos
banderistas permaneceram na Alemanha, nas zonas ocidentais, principalmente na
zona americana, sobretudo em Munique. Outros banderistas foram recebidos de
braços abertos nos Estados Unidos, através da CIA, em detrimento das leis de
imigração, enquanto outros permaneceram na Ucrânia Ocidental.
Este último grupo, com dezenas de milhares de homens, travou
uma guerra inexpidável contra a União Soviética: entre o verão de 1944 e o
início da década de 1950, assassinou 35.000 funcionários civis e militares, com
o apoio financeiro alemão e americano, o qual foi particularmente elevado em
1947-1948. Um excelente historiador germano-polaco, Grzegorz Rossolinski-Liebe,
demonstrou que o banderismo continua a ser, hoje, um terreno de reprodução
pró-nazi inextinguível: os inúmeros herdeiros de Bandera têm igual ódio por
polacos, russos, judeus e ucranianos que não são fascistas. Escusado será dizer
que este investigador tem tido grandes problemas de censura, desde a Revolução
Laranja de 2004, e, sobretudo, na era Maidan, especialmente desde que estudou
como, desde 1943, os banderistas fabricaram a lenda de "resistência aos
nazis", tal como a vermelhos e judeus. Uma lenda muito útil para que
aqueles grupos possam ser incluídos na lista de grupos
"democráticos", apoiados por Washington.
Quais foram as consequências desta colusão?
Entre os criminosos de guerra calorosamente acolhidos pelos
Estados Unidos, os intelectuais tiveram um acolhimento particular. Desde 1948,
foram recrutados em grande número por universidades americanas, sobretudo as da
Ivy League, incluindo Harvard e Columbia. Nos "Centros de Investigação
sobre a Rússia", que proliferam desde 1946-1947, aqueles intelectuais
participaram, juntamente com os seus prestigiados colegas americanos, numa
frenética guerra ideológica contra a Rússia. É neste contexto que é difundida a
lenda do "Holodomor", cujas aventuras pontuaram, desde então, as
etapas decisivas da conquista da Ucrânia. Esta "investigação" e este
"ensino", implantados há mais de 70 anos, e espalhados massivamente,
com a ajuda dos principais meios de comunicação social, ao longo de décadas na
Europa americana, literalmente "apodreceram" os conhecimentos
"ocidentais" sobre a história da Ucrânia (e, mais amplamente, sobre a
da URSS).
Os apoios políticos do Euromaidan, avatar destas inúmeras
revoluções coloridas dos últimos vinte anos, formaram a espinha dorsal de 2014,
fazendo uma aliança com oligarcas que, desde 1991, monopolizam toda a riqueza
da Ucrânia. Note-se que este tipo de saque não é exclusivo da Rússia de Putin,
sendo observado em quase todos os países da ex-União Soviética. Na Ucrânia, os
oligarcas confiaram nestes elementos herdeiros do banderismo. O Estado ucraniano
de Poroshenko e os seus sucessores, desde 2014, confiaram abertamente nestes
movimentos nazis que os Estados Unidos alimentaram, incansavelmente, desde
1944-1945.
Os Estados Unidos tinham como programa explícito, codificado
em junho de 1948, no âmbito da CIA, a liquidação, pura e simples, não só da
zona de influência soviética, mas o próprio Estado soviético. Foi sob a
administração democrata que foi posta em prática a política de repulsão ou de
"retrocesso", com o objetivo de esmagar o comunismo onde quer que
fosse que este se encontrasse instalado (e impedindo-o de se instalar em zonas
de influência americana). Como uma série de trabalhos históricos têm
demonstrado, incluindo o trabalho de investigadores americanos com uma forte
ligação ao aparelho de Estado, e muito antissoviéticos, este programa foi
definitivamente implementado pela CIA, desde o seu nascimento, em julho de
1947.
Podemos compreender a sua extensão graças ao texto de
fevereiro de 1952 de Armand Bérard, um diplomata francês, em Bona, a quem cito
em Aux origines du Carcan européen. Bérard profetizava que a
Rússia, tão enfraquecida pela guerra alemã travada contra ela, entre 1941 e
1945 (27 a 30 milhões de mortos, com a URSS da Europa devastada) capitularia
sob os golpes dos Estados Unidos e da Alemanha de Adenauer, oficialmente
perdoado pelos seus crimes e rearmado até aos dentes. Moscovo acabaria por
ceder toda a Europa Central e Oriental, que era a sua "zona de
influência" e que tinha sido alvo de "mudanças fundamentais, de natureza
democrática, que, desde 1940, ocorreram na Europa de Leste". Estas
são as palavras deste diplomata "ocidental". E a data de 1940
refere-se à então sovietização dos Estados bálticos e de uma parte da Roménia e
da Polónia, cada um destes países mais fascista do que o outro.
Foi, no entanto, necessário, esperar alguns anos.
Depois de 1945, este tipo de projeto exigia tempo, uma vez
que o governo soviético era menos antipático aos olhos do seu povo, assim como
dos povos vizinhos, do que a história de propaganda "ocidental" nos
quer fazer crer. Mas foi conduzido com uma notável continuidade e enormes meios
financeiros. Toda a população foi visada, ainda que tenha sido dada uma
especial atenção ao Estado e às elites intelectuais do país, as quais
cconstituíam uma questão prioritária, procurando-se separá-las do Estado
soviético. O esforço acelerou-se consideravelmente após a vitória dos EUA de
1989, e com uma maior eficiência, num momento em que a Rússia conhecia uma
década de decadência total. Recorde-se que, sob Ieltsin, as potências
estrangeiras, com os Estados Unidos em primeiro lugar, impuseram a sua lei, a
economia russa foi vendida por um nada e entrou em colapso, a população caiu
0,5% por ano (de forma especialmente dramática na Sibéria e no Extremo
Oriente), sendo que, em 1994, a esperança de vida da população russa diminui
drasticamente (de quase dez anos, para os homens).
Durante estes anos, o trabalho de formiga germano-americano,
que Breitman e Goda descreveram para os anos 1945-1990, obviamente que se
intensificaram. Certamente, a National Endowment for Democracy (NED),
querida a Victoria Nuland, a eminência das administrações Bush e, depois, de
todos os seus sucessores democratas, Biden incluído, acaba de apagar do seu
site os seus ficheiros de financiamento, até agora públicos (pelo menos, em
parte), da secessão da Ucrânia e da sua inserção no aparelho de agressão contra
a Rússia. Mas o site do Departamento de Estado não censurou as declarações, de
13 de dezembro de 2013, da Subsecretária de Estado Nuland, a senhora das boas
obras de Maidan, tão presente em Kiev em fevereiro de 2014, perante o
Congresso: Nuland orgulhosamente declarou que, desde a queda da URSS (1991), os
Estados Unidos tinham investido mais de 5 mil milhões de dólares para ajudar a
Ucrânia. Tratava-se, naturalmente, de assegurar o controlo definitivo da
agricultura e da indústria ucraniana, o objetivo final desta longa cruzada. Mas
também trazer este país para a NATO, da qual são membros quase todos os países
da antiga zona de influência soviética e várias das antigas repúblicas
soviéticas. Isto foi admitido há muitos anos. Isto foi, aliás, claramente
reafirmado pela “Carta de Parceria Estratégica EUA-Ucrânia”, assinada em 10 de
novembro de 2021 pelo Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e pelo
Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba: o seu conteúdo
consta, aliás, da redação da "Resolução de 16 de dezembro de 2021 sobre a
situação na fronteira ucraniana e nos territórios da Ucrânia ocupados pela
Rússia", orgulhosamente exibida pelo Parlamento Europeu, em Estrasburgo.
A partir de então, tornava-se necessário colocar Moscovo a,
pelo menos, 5 minutos das bombas atómicas armazenadas, desde as origens do
Pacto Atlântico (por vezes, desde o início dos anos 50), nos países membros da
NATO. Bastava exacerbar a disputa da miséria infligida pela Ucrânia de Maidan
ao povo de Donbass, em flagrante violação dos acordos de Minsk. Sobre estas
misérias e sobre a violação dos acordos de que Paris e Berlim foram
"garantes", a propaganda ocidental manteve-se silenciosa de 2014 a
fevereiro de 2022.
A conjuntura histórica e os desenvolvimentos desde 1989, seriamente agravados
desde 2014, têm encurralado a Rússia. Todos os observadores razoáveis apontam
que a Rússia iniciou a guerra contra a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, uma
vez entrincheirada contra a sua vontade. Este passo faz lembrar o que a União
Soviética deu no final de 1939.
O que quer dizer com isso?
Este é um elemento essencial. No final de 1939, a União
Soviética tentou, com sinceridade, negociar com a Finlândia, apresentada pelos
arquivos históricos e militares como um aliado puro e simples da Alemanha Nazi.
Desde 1935, esta última havia instalado, na Finlândia, uma série de aeródromos
militares e de bases para atacar a URSS - que, na realidade, foram cedidas à
Alemanha, tendo sido, de facto, usadas, durante a guerra de agressão
alemã à URSS. Moscovo falou, em vão, durante semanas, com a Finlândia, anteriormente
parte do Império Russo, mas que em 1918-1919 se havia tornado num país-chave do
"cordão sanitário" anti-bolchevique. Os soviéticos pediram-lhe que
trocasse parte do seu território, para criar uma zona tampão de defesa sólida
em torno de Leningrado, por um território maior (soviético). As discussões
falharam, sob pressão da Alemanha e de todos os países "democráticos"
que, como um diplomata fascista italiano declarou na altura, sonhavam com uma
"Aliança Sagrada" geral contra os soviéticos.
A URSS invadiu a Finlândia em 30 de novembro de 1939. Teve,
então, de enfrentar uma propaganda do mesmo tipo daquela que, atualmente, é
difundida, assim como sanções (incluindo uma exclusão da Liga das Nações,
unanimemente acordada em 14 de dezembro). Tratava-se, no discurso em vigor, de
combater o monstro soviético e de proteger a pobre Finlândia, e o Vaticano do
pró-nazi Pio XII ficou tão incomodado como o atual papa com os "rios de
sangue" ucranianos. A "guerra de Inverno", num país-chave do
"cordão sanitário", no qual a população tinha sido
"preparada" incansavelmente contra o comunismo e a URSS, durante mais
de vinte anos, foi terrível.
Com dificuldade, o Exército Vermelho conseguiu derrotar a
Finlândia. Em 12 de março de 1940, o acordo alcançado deu a Helsínquia
exatamente o que Moscovo havia proposto em 1939 - o que, sem dúvida, permitiu
proteger Leningrado da invasão. É significativo que a atual campanha de
propaganda pregue o longo período de neutralidade que a Finlândia no pós-guerra
observou, isto, contudo, depois de a Finlândia pró-nazi, como se esperava, ter
feito a guerra ao lado da Alemanha.
Isto relembra, então, a situação atual da Ucrânia?
Sim, se nos cingirmos a factos históricos, e não nos
limitarmos a dizer que estamos perante um monstro louco. Leio, hoje, em
petições ou em jornais de referência, que Putin está a incendiar e a incitar um
derramamento de sangue numa Europa, até agora, calma e tranquila. Mas não
ouvimos estes intelectuais, recrutados maciçamente pela imprensa mainstream, e
revoltados contra o "novo Hitler", manifestarem-se contra as centenas
de milhares de mortes dos bombardeamentos americanos e europeus no Iraque, na
Líbia, no Afeganistão, na Síria. As mesmas pessoas que amaldiçoam Putin acharam
magníficos os 78 dias de bombardeamentos contra Belgrado e contra o "novo
Hitler", Milosevic. A comparação, refira-se, tem sido aplicada a todos os
"inimigos" que o Ocidente forjou, desde a nacionalização de Nasser do
Canal do Suez.
Também não me lembro de nenhuma importante indignação destes
novos anti-nazis por causa das 500.000 crianças que morreram no Iraque, por
falta de comida e de cuidados médicos, como consequência imediata do bloqueio
anglo-americano; crianças, aliás, cujo sacrifício "valeu a pena",
segundo as declarações recentes da ex-secretária de Estado democrata Madeleine
Albright. Porquê esta sistemática aplicação de dois pesos, duas medidas, também
usada no que concerne as populações martirizadas de Donbass (e que Putin é
acusado de ter instrumentalizado durante oito anos contra a tão simpática
Ucrânia)?
Esta guerra, por mais lamentável que seja, foi anunciada há
muito tempo, e as razoáveis vozes de militares, diplomatas,
académicos, a Oeste, que não têm acesso a nenhum órgão importante dito de
"informação", privado ou estatal, são categóricas sobre as
responsabilidades exclusivas, e de longa data, dos Estados Unidos, no
desencadear de um conflito que eles próprios tornaram inevitável.
Na sua opinião, como é que será o futuro?
Não me pronuncio sobre o futuro, pois os historiadores não
têm de desempenhar o papel de meteorologistas, especialmente tendo em conta a
informação execrável a que, atualmente, têm acesso. Mas posso afirmar que os
Estados Unidos são o poder imperialista cujas guerras de agressão acumularam,
desde o fim da Segunda Guerra Mundial, milhões de mortes. Recomendo, aliás, o
livro traduzido de William Blum, um antigo funcionário da CIA (estes são os
melhores analistas), que estabeleceu uma estrita cronologia dos crimes
cometidos pelos Estados Unidos contra uma série de Estados qualificados de
"bandidos".
A Rússia nem sempre foi considerada como tal pelo
"Ocidente", na época da "Grande Aliança" e do "Tio
Joe" (José Estaline). Até às últimas décadas de propaganda unilateral
"ocidental" sobre a libertação da Europa – segundo a qual, a
libertação teria ocorrido graças, unicamente, ao desembarque americano, em
junho de 1944 -, havia sido amplamente reconhecido que só o Exército Vermelho é
que tinha conseguido derrotar a Wehrmacht, e a que custo! De acordo com estimativas
recentes, os Estados Unidos têm a deplorar, durante a Segunda Guerra Mundial,
um total inferior a 300.000 mortes (todas, de militares), nas frentes do
Pacífico e da Europa. Nesta entrevista, há pouco, já havia referido o
monstruoso número de perdas soviéticas: 10 milhões de baixas militares e 17 a
20 milhões de vítimas civis.
Até agora, a Rússia, soviética ou não, não semeou ruínas em guerras externas.
Tem sido objeto de uma ininterrupta agressão das grandes potências
imperialistas, desde janeiro de 1918. Não digo isto porque sou uma seguidora de
Putin. Todos os documentos de arquivo apontam nesta direção, diplomatas
ocidentais e militares são os primeiros a sabê-lo e a admiti-lo, na sua
correspondência não destinada a publicação: ou seja, o tipo de documentação que
tenho vindo a estudar, há mais de cinquenta anos. Com o meu trabalho, e graças
a uma reflexão sobre a conjuntura atual, estou, apenas, a exercer a minha
profissão de historiadora..
1[NT] A Galicia foi uma província do Império Austríaco, formada
em 1772, a partir dos territórios polacos anexados durante a primeira divisão
da Polónia. Permaneceu austríaca até ao final da Primeira Guerra Mundial.
2[NT]
Uniatismo: conjunto de comunidades cristãs, de rito oriental, que reconhecem a
autoridade papal ou que se encontram ligadas à Igreja Católica.
Fonte:https://www.investigaction.net/fr/annie-lacroix-riz-il-y-a-un-contexte-historique-qui-explique-que-la-russie-etait-acculee/,
publicado e acedido em 28.03.22
Tradução: AMS