domingo, 6 de dezembro de 2009

Mário Cesariny - Vida e alguma Obra





Desde criança, sonhava que voava!
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Fechava os olhos e sonhava sonhos pela infinito, que viria a ser seu, embora ele modestamente desdenhasse vénias e cortesias:
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"Estou num pedestal muito alto, batem palmas e depois deixam-me ir sozinho para casa. Isto é a glória literária à portuguesa", disse
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O pintor e poeta surrealista, um dos maiores vultos da cultura portuguesa do séc XX, dava mais importância à sua obra literária do que à sua pintura.
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Depois de conhecer, em Paris, o poeta André Breton, integrou o Grupo Surrealista de Lisboa, em que também se encontravam Alexandre O’Neill e José-Augusto França.
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Protestava contra o regime político e contra o neo-realismo.
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Espírito livre, acabou por se incompatibilizar com este grupo e formar outro, que se lhe opunha, “Os Surrealistas”, com Cruzeiro Seixas e Risques Pereira.
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Talento multi-facetado, Cesariny, cuja atitude estética se caracterizava pela permanente experimentação, começou por dedicar-se à pintura de forma ocasional, mas a acabaria por fazer dela actividade quase exclusiva. Deixou de tocar piano e de escrever poesia. "Secou", dizia. Não sentia necessidade de escrever. "Para quê? A quem?"
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A sua obra literária - onde se destacou como antologista, compilador e historiador polémico do surrealismo em Portugal - começou pela poesia de intervenção, na década de 40. Acabou por escrever sobre tudo. E muito sobre o amor "Pode-se morrer por amor. Mas também se pode morrer por falta de amor".
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O homem que viveu como quem aproveita uma oportunidade única, desgastado por longa doença oncológica, confessava: "Gostava de ter daquelas mortes boas, em que uma pessoa se deita para dormir e nunca mais acorda".
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Assim aconteceu hoje, aos 83 anos, na sua casa em Lisboa.
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Deixou aos portugueses e ao mundo uma obra inestimável, publicada em:
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Corpo Visível (1950)
Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952)
Louvor e Simplificação de Álvaro de Campo (1953)
Manual de Prestidigitação (1956)
Pena Capital (1957)
Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Postos à Circulação pelo Autor (1958)
Nobilíssima Visão (1959)
Poesia (1944-1955) (s./d.)
Planisfério e Outros Poemas (1961)
Um Auto para Jerusalém (1964)
Titânia e A Cidade Queimada (1965)
19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão Seguidos de Poemas de Londres (1971)
As Mãos na Água e na Cabeça (1972)
Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972)
Primavera Autónoma das Estradas (1980)
Vieira da Silva, Arpad Szenes ou O Castelo Surrealista (1984)
O Virgem Negra (1989)
Titânia (1994)
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Deixou-nos ainda os livros:
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A Intervenção Surrealista (1958), Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1961, obra que organizou e para qual contribuiu), Surreal-Abjection(ismo) (1963), Do Surrealismo e da Pintura (1967), Primavera Autónoma das Estradas (1980) e Vieira da Silva – Arpad Szènes, ou O Castelo Surrealista (1984).
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"Eu, Sempre..."
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Eu sempre a Platão assisto.
Pessoalmente, porém, e creia que não
Tenho qualquer insuficiência nisto,
Sou um romano da decadência total,
Aquela do século IV depois de Cristo,
Com os bárbaros à porta e Júpiter no quintal.
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Mário Cesariny
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In
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Corpo Visível (1950)
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O Raul Leal era
O único verdadeiro doido do "Orpheu".
Ninguém lhe invejasse aquela luxúria de fera?
Invejava-a eu.
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Três fortunas gastou, outras três deu
Ao que da vida não se espera
E à que na morte recebeu.
O Raul Leal era
O único não-heterónimo meu.
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Eu nos Jerónimos ele na vala comum
Que lhe vestiu o nome e o disfarce
(Dizem que está em Benfica) ambos somos um
Dos extremos do mal a continuar-se.
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Não deixou versos? Deixei-os eu,
Infelizmente, a quem mos deu.
O Almada? O Santa-Ritta? O Amadeo?
Tretas da arte e da era. O Raul era
Orpheu.
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Os sebastiacas trombos não deixaram partir
Portugal para o Brasil.
Vagos ficamos da amurada aos tombos
Para a largada rombos
Do corpo de Portugal.
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Mas a Hora deixada ao sono vil
Dos que provendo tudo podem nada
Mais que o fogo senil
Do Império Final,
Cintila na amurada:
Não há Portugal e Brasil.
Brasil é Portugal. 

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Mário Cesariny
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Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que
importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que
importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que
importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
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e cair verticalmente no vício
Não
é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal
o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal
o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal
o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora!
– rir de tudo
No riso admirável
de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
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Mário Cesariny
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Visto a esta luz
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Visto a esta luz és um porto de mar
como reverberos de ondas onde havia mãos
rebocadores na brancura dos braços
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Constroem-te uma ponte
que deverá cingir-te os rins para sempre
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O que há horrível no teu corpo diurno
é a sua avareza de palavras
és tu inutilmente iluminado e quente
como um resto saído de outras eras
que te fizeram carne e se foram embora
porque verdade sem erro certo verdadeiro
nada era noite bastante para tocarmos melhor
as nossas mãos de nautas navegando o espaço
os corpos um e dois do navio de espelhos
filhos e filhas do imponderável
de cabeça para baixo a ver a terra girar
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Quero-te sempre como nã querer-te?
mas esta luz de sinopla nas calças!
este interposto objecto
e o seu leve peso de eternidade
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Mário Cesariny
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Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
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Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
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Mário Cesariny
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Faz-me o favor...
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Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.
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É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.
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Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

de "O Virgem Negra"


Mário Cesariny



Nota: autorizei a publicação desta biografia, escrita em 26 de Novembro de 2006, ao Amigo, Poeta e Editor de "Poesia & Literatura" Eugénio de Sá:
 2ª Edição da AVPB (Academia Virtual Poética do Brasil).
Maria Petronilho
Publicado no Recanto das Letras em 29/03/2007
Código do texto: T429982
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http://66.228.120.252/biografias/429982
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Ver Também:
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Letras & Letras

Recepção parodística de Cesário Verde, Sá-Carneiro e F. Pessoa no intertexto surrealista
de J. Cândido Martins (Universidade Católica Portuguesa – Braga)
... a arte literária à sua devida dimensão: "Afinal o que importa não é a literatura/ nem a crítica de arte nem a câmara escura"(1991: 15). ...
alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/candid04.htm 
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