domingo, 10 de agosto de 2025

Rebecca Martin Goldschmidt e Seiji Yamada - Hiroshima, Nagasaki e o genocídio em Gaza


 



Por Rebecca Martin Goldschmidt e Seiji Yamada

O Holocausto, o genocídio dos judeus europeus pelos nazis, serve de justificação ideológica para o projecto sionista de apartheid, limpeza étnica e agora a Solução Final do genocídio.

À medida que o projecto sionista transita do apartheid e da limpeza étnica para a solução final para o genocídio que durou décadas, comemoramos também o 80º aniversário dos bombardeamentos nucleares de 6 e 9 de Agosto em Hiroxima e Nagasáqui. Consideremos as implicações de recordar o genocídio nuclear neste momento actual de tecnogenocídio em Gaza.

A 24 de outubro de 2023, Omar El Akkad, jornalista e romancista egípcio-americano, publicou no X: "Um dia, quando for seguro, quando não houver incómodo pessoal em chamar as coisas pelos seus nomes, quando for tarde demais para responsabilizar alguém, todos dirão que foram contra isso o tempo todo." O tweet, visualizado mais de 10 milhões de vezes, foi transformado num livro, One Day, Everyone Will Have Always Been Against This , publicado no início deste ano. Intercaladas com reflexões sobre o genocídio dos palestinianos em Gaza, estão pensamentos sobre a sua própria história e a da sua família. Como árabe e muçulmano, El Akkad reflete sobre como responderia se lhe dissessem: "Volta para onde vieste". Pensa para si: "Se gosta tanto de governos autoritários, porque não vai para onde eu vim?"

Até que ponto se pode ser contra os bombardeamentos atómicos? E como evoluíram as atitudes em relação aos bombardeamentos desde então? Em 1945, a opinião pública americana era favorável à vingança de Pearl Harbor e à destruição do Império Japonês. As representações dos japoneses como vermes ou macacos despertaram o apoio ao bombardeamento da população civil em todas as principais cidades japonesas (excepto Quioto). O bombardeamento de Tóquio, a 9 e 10 de março de 1945, fez cerca de 100.000 mortos. Combinados, os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki fizeram entre 150.000 e 246.000 mortos até ao final de 1945 (muitos outros morreram ao longo dos anos). Dado o secretismo em torno do Projecto Manhattan para desenvolver as bombas atómicas, muito poucas pessoas se opuseram à sua utilização antes de serem lançadas. Entre eles estava Leó Szilárd, um físico húngaro que fez circular uma petição durante o Verão de 1945, principalmente entre cientistas do Laboratório Metalúrgico de Chicago, na qual se opunha ao uso de tais armas sem dar ao Japão a oportunidade de se render.

Em 1942, no continente americano, sob uma ordem executiva assinada por Franklin D. Roosevelt, os nipo-americanos foram despojados das suas terras e propriedades e aprisionados em campos de concentração. Nada de semelhante foi perpetrado contra descendentes de alemães ou italianos. Não deveríamos chamar a isto limpeza étnica? É complicado interpretar a história através de categorias modernas? Embora Harry Truman tenha sugerido que, ao evitar a necessidade de invadir o território japonês, os bombardeamentos atómicos salvaram a vida de talvez meio milhão de soldados americanos, a maioria dos historiadores afirma que o Império Japonês sabia que estava acabado e pronto para se render.

O objectivo declarado dos bombardeamentos atómicos era pôr fim à guerra. Outras razões não declaradas incluíam a demonstração da nova arma ao futuro inimigo da Guerra Fria, a União Soviética, e a justificação do custo de desenvolvimento dessa arma para os contribuintes americanos. Embora o resultado final tenha sido a morte de muitos japoneses, o objetivo declarado não era genocida, pelo que não lhe chamamos oficialmente genocídio. (Deve notar-se, no entanto, que a etimologia de "holocausto" é "queimar tudo", e Hiroshima e Nagasaki foram certamente isso.)

Em 2025, toda a pessoa racional opõe-se à guerra nuclear, pois mesmo uma guerra nuclear "limitada" poderia desencadear um inverno nuclear, levando potencialmente à extinção da espécie humana. No entanto, o Boletim de Cientistas Atómicos está a mover o seu Relógio do Juízo Final cada vez mais para perto da meia-noite.

Faltam 89 segundos para a meia-noite. Os hibakusha (sobreviventes da bomba atómica), agora na sua maioria na casa dos 80 anos, gritam: "Basta de Hiroshima! Chega de Nagasaki! Não às armas nucleares! NÃO À GUERRA!". À medida que se aproxima o 80º aniversário, os activistas palestinianos em Hiroxima tentam destacar este momento não só nos milhares de japoneses, coreanos e outros que morreram e ficaram feridos no genocídio nuclear, mas também assinalá-lo como um dia de protesto contra o genocídio em curso em Gaza e a limpeza étnica em toda a Palestina.

Ao comemorarmos o 80º aniversário do bombardeamento, devemos também incluir a história do imperialismo japonês, que foi apagada da Cerimónia Memorial da Paz, sancionada pelo Estado, em Hiroshima. A derrota do Império Japonês deve ser vista como a libertação dos povos da Ásia e do Pacífico do brutal domínio colonial japonês. Os ecos do imperialismo japonês perduram sob diversas formas neocoloniais por toda a Ásia, através da exploração económica, territorial e laboral, do turismo e da indústria do sexo, para não falar da ocupação contínua das terras Ainu em Hokkaido e das terras Ryukyu em Okinawa. De facto, consideramos a cerimónia em si um ritual que reforça a mitologia nacional japonesa e o sistema nacionalista do imperador, que "exige" armas nucleares.

Até a forma como a "paz" é imposta em Hiroxima através da "oração silenciosa" é uma manipulação fascista das expressões de pesar e raiva das pessoas. A cidade de Hiroshima convenceu o público de que dobrar tsurus de papel e levar crianças a visitar o Parque da Paz é suficiente para alcançar a "paz".

 

Em 2024, com o genocídio palestiniano em pleno andamento, a cidade de Hiroshima, vergonhosamente, convidou um delegado israelita a participar na Cerimónia do Memorial da Paz de Hiroshima, sem convidar qualquer representante palestiniano. Por sua vez, as autoridades da cidade de Nagasaki retiraram o convite ao delegado israelita. Este ano, Hiroshima enviou "notificações" em vez de "convites" para tentar evitar controvérsias sobre quais os países que foram convidados e quais não foram. Esta atitude de "lavagem da paz" é partilhada pela maioria da sociedade japonesa, que também desconhece as atrocidades cometidas pelos seus antepassados em nome do imperador.

Em "O Mundo Depois de Gaza", Pankaj Mishra oferece uma visão geral de como o Holocausto, o genocídio dos judeus europeus pelos nazis, passou a servir de justificação ideológica para o projeto sionista de apartheid, limpeza étnica e, agora, a Solução Final do genocídio. Da mesma forma, Hiroshima e Nagasaki são as histórias de vitimização definitivas que os nacionalistas japoneses utilizam para justificar a militarização, o desenvolvimento tecnológico e de armamento, e a colaboração contínua com o regime israelita.

O programa Aichi-Israel Matching, que liga as startups israelitas de tecnologia de armamento com o coração industrial do Japão, é um exemplo perfeito. O fundo de pensões japonês (o maior do mundo!) investe fortemente em títulos israelitas, bem como em fabricantes de armas como a Elbit Systems (Israel), a Lockheed Martin (EUA) e a BAE Systems (Reino Unido). Empresas japonesas como a Kawasaki compram drones a Israel, enquanto a Mitsubishi Heavy Industries fabrica peças para a cadeia de abastecimento do F-35.

Entretanto, nas últimas eleições, o partido Sanseito, de Trump, conquistou 14 lugares no governo graças à sua retórica xenófoba transmitida no YouTube, que explorou os receios japoneses de contaminação estrangeira e da perda da cultura japonesa "pura". Este renovado foco no racismo explícito, aliado ao rápido desenvolvimento da indústria de armas de inteligência artificial em colaboração com um regime genocida, é o que nós, japoneses, consideraríamos " abunai " — perigoso!

O nosso ponto mais urgente do Ground Zero de Hiroshima é este: a Palestina é uma questão nuclear. Israel possui mais de 100 armas nucleares e é, na prática, um depósito de armas nucleares dos EUA na Ásia Ocidental. Vários dos seus responsáveis governamentais têm defendido o uso de armas nucleares em Gaza. A recente guerra semi-clara com o Irão danificou instalações de produção de combustível nuclear, causando potencialmente uma contaminação química e radioactiva que ninguém está disposto a reconhecer. Demonstrou o quão preparado Israel, com o apoio dos EUA, está para arrastar a região para uma guerra nuclear, mesmo tendo sido obrigado a pedir um cessar-fogo face à resposta do Irão.

As alegações de Hiroshima de ser uma "cidade internacional da paz", comprometida com a abolição das armas nucleares, soam egoístas e vazias, pois a cidade permanece em completo silêncio sobre a realidade nuclear da Palestina e continua a ocultar os próprios crimes de guerra do Japão. Como luta de libertação indígena, a Palestina também está ligada ao movimento #LandBack, que se cruza com a luta contra o colonialismo nuclear, desde as Ilhas Marshall a Semipalatinsk, no Cazaquistão, à Nação Navajo, a Shinkolobwe no Congo, aos povos aborígenes australianos e muitos outros.

A dor de Hiroshima, Nagasaki e de todos os massacres e atrocidades dos últimos 80 anos são reais e ainda hoje nos assombram. Tanto o movimento antinuclear como os movimentos de libertação palestinianos surgiram e desenvolveram-se também durante esses mesmos 80 anos. Os activistas palestinianos no Japão vêem para além da fachada do 80º aniversário de Hiroshima e percebem que o sistema imperial japonês, bem como os sistemas britânico, americano, alemão e outros, não mudou realmente; apenas mudou de forma.

Há quase dois anos, assistimos a um genocídio em Gaza, em que os perpetradores juraram eliminar os amalecitas, ou "animais humanos". Como se Israel estivesse a experimentar uma mistura de métodos de extermínio, vimos crianças dilaceradas por bombas, baleadas por atiradores furtivos e agora mortas de fome. Os contribuintes americanos financiam isso. Os participantes do plano de pensões japonês financiam isso. Os nossos governos e os seus parceiros corporativos fornecem as armas e fornecem cobertura diplomática.

Não devemos permitir que os nossos governos se apropriem das nossas histórias de dor e sofrimento para justificar mais dor e sofrimento. Não devemos esperar até que seja seguro, até que não haja mais inconvenientes pessoais em chamar as coisas pelos seus nomes, até que seja tarde demais para responsabilizar alguém. Devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para nos opormos ao apartheid, à limpeza étnica e ao genocídio. Devemos lutar pela libertação da Palestina e pela libertação de todos os povos da dominação, da militarização e das economias de guerra.

CounterPunch.org e FONTE  

https://www-lahaine-org.translate.goog/mundo.php/hiroshima-nagasaki-y-el-genocidio-en-gaza?_x_tr_sl=es&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-PT&_x_tr_pto=sc

Publicado Yesterday por obarbaro

https://osbarbarosnet.blogspot.com/2025/08/hiroshima-nagasaki-e-o-genocidio-em-gaza.html

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

António Barreto - As notícias na televisão

* António Barreto 

“É simplesmente desmoralizante. Ver e ouvir os serviços de notícias das três ou quatro estações de televisão é pena capital. A banalidade reina. O lugar-comum impera. A linguagem é automática. A preguiça é virtude. O tosco é arte. A brutalidade passa por emoção. A vulgaridade é sinal de verdade. A boçalidade é prova do que é genuíno. A submissão ao poder e aos partidos é democracia. A falta de cultura e de inteligência é isenção profissional.

Os serviços de notícias de uma hora ou hora e meia, às vezes duas, quase únicos no mundo, são assim porque não se pode gastar dinheiro, não se quer ou não sabe trabalhar na redacção, porque não há quem estude nem quem pense. Os alinhamentos são idênticos de canal para canal.

Quem marca a agenda dos noticiários são os partidos, os ministros e os treinadores de futebol. Quem estabelece os horários são as conferências de imprensa, as inaugurações, as visitas de ministros e os jogadores de futebol.

Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo. Figurão no aeroporto, comboio atrasado, treinador de futebol maldisposto, incêndio numa floresta, assassinato de criança e acidente com camião: sai um directo, com jornalista aprendiz a falar como se estivesse no meio da guerra civil, a fim de dar emoção e fazer humano.

Jornalistas em directo gaguejam palavreado sobre qualquer assunto: importante e humano é o directo, não editado, não pensado, não trabalhado, inculto, mal dito, mal soletrado, mal organizado, inútil, vago e vazio, mas sempre dito de um só fôlego para dar emoção! Repetem-se quilómetros de filme e horas de conversa tosca sobre incêndios de florestas e futebol. É o reino da preguiça e da estupidez.

É absoluto o desprezo por tudo quanto é estrangeiro, a não ser que haja muitos mortos e algum terrorismo pelo caminho. As questões políticas internacionais quase não existem ou são despejadas no fim. Outras, incluindo científicas e artísticas, são esquecidas. Quase não há comentadores isentos, ou especialistas competentes, mas há partidários fixos e políticos no activo, autarcas, deputados, o que for, incluindo políticos na reserva, políticos na espera e candidatos a qualquer coisa! Cultura? Será o ministro da dita. Ciência? Vai ser o secretário de Estado respectivo. Arte? Um director-geral chega.

Repetem-se as cenas pungentes, com lágrima de mãe, choro de criança, esgares de pai e tremores de voz de toda a gente. Não há respeito pela privacidade. Não há decoro nem pudor. Tudo em nome da informação em directo. Tudo supostamente por uma informação humanizada, quando o que se faz é puramente selvagem e predador. Assassinatos de familiares, raptos de crianças e mulheres, infanticídios, uxoricídios e outros homicídios ocupam horas de serviços.

A falta de critério profissional, inteligente e culto é proverbial. Qualquer tema importante, assunto de relevo ou notícia interessante pode ser interrompido por um treinador que fala, um jogador que chega, um futebolista que rosna ou um adepto que divaga.

Procuram-se presidentes e ministros nos corredores dos palácios, à entrada de tascas, à saída de reuniões e à porta de inaugurações. Dá-se a palavra passivamente a tudo quanto parece ter poder, ministro de preferência, responsável partidário a seguir. Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias.

A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos *papagaios no seu melhor!

Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão.

Publicado a: 
Atualizado a: 

https://www.dn.pt/arquivo/diario-de-noticias/as-noticias-na-televisao-5407534.html

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Walter Lippmann é um grande propagandista americano, maior que Bernays.



Walter Lippmann  foi o mentor não reconhecido de Bernays, e sua obra  The Phantom Public (1925) influenciou muito as ideias expressas em  Propaganda , publicada três anos depois.


Walter Lippmann escreveu sobre a vulnerabilidade do público à propaganda política em The Phantom Public (1925):

– O público “ personaliza tudo o que considera e só se interessa por acontecimentos melodramatizados em forma de conflito.

O público chegará no meio do terceiro ato e sairá antes do final do espetáculo, tendo permanecido tempo suficiente talvez para decidir quem é o herói e quem é o vilão da peça.

– Os governos podem explorar essas fraquezas públicas removendo a complexidade e substituindo-a por uma retórica emocional que coloca os bons contra os bandidos.

Infantilize o público com histórias personalizadas sobre como os conflitos começam por causa de um homem mau (Milosevic, Kadafi, Hussein, Putin, Xi, etc.) e como a paz é criada pela eliminação do homem mau.

O público não precisa saber a história, a economia ou a política por trás dos conflitos; ele só precisa saber quem é o vilão, a vítima e o salvador.

O público lutará contra qualquer razão na medida em que ela perturbe os fundamentos de sua visão de mundo simplificada.

O problema da Verdade, disse o pensador excepcional Henri Lefebvre, é entender por que as mentiras fazem tanto sucesso.

Minha resposta: a mentira tem sucesso porque preenche o vazio do sujeito que escuta, ela se encaixa em seu oco, em sua necessidade, melhor, em seu desejo, em sua falta de prazer e em sua recusa da angústia; a mentira tapa um buraco, até mesmo uma brecha.

Dostoiévski responde de forma convincente à pergunta de Henri Lefebvre em O Grande Inquisidor.

Publicada por Pena Preta à(s) quinta-feira, agosto 07, 2025 
https://foicebook.blogspot.com/2025/08/o-problema-da-verdade-e-entender-por.html#more

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Eça de Queirós - O Conde e os pobres

 * Eça de Queirós

«Já então revelava o seu gosto pelo luxo, pelas largas habitações tapetadas, pelo serviço harmonico de lacaios disciplinados. A pobreza e os seus aspectos era-lhe odiosa. Quanta vez, mais tarde, quando elle subia o Chiado pelo meu braço, eu me vi forçado a afastar com dureza os pobres, que á porta do Baltresqui, ou da Casa Havaneza, vinham, sob o pretexto de filhos com fome ou de membros aleijados, reclamar esmola; o Conde, se os via muito perto, «ficava todo o dia enjoado». Todavia a sua caridade é bem conhecida, e o Asylo de S.Christovam, a que em parte deveu o seu titulo, ahi está como um attestado glorioso da sua magnanimidade.

Além d'isso, elle reconhecia que a caridade era a melhor instituição do Estado. Quanto ao pauperismo, tinha-o como uma fatalidade social: fôssem quaes fôssem as reformas sociais, dizia, haveria sempre pobres e ricos: a fortuna pública devia estar naturalmente toda nas mãos d'uma classe, da classe illustrada, educada, bem nascida. Só d'este modo se podem manter os Estados, formar as grandes industrias, ter uma classe dirigente forte, por possuir o ouro e ser a base da ordem social.

Isto fazia necessariamente que parte da população «tiritasse de frio e rabeasse de fome». Era certamente lamentavel, e elle, com o seu grande e vasto coração que palpitava a todo o soffrimento, lamentava-o. Mas a essa classe devia ser dada a esmola com methodo e discernimento: e ao Estado pertencia organizar a esmola. Porque o Conde censurava muito a caridade privada, sentimental, toda de expontaneidade. A caridade devia ser disciplinada, e, por amor dos desprotegidos, regulamentada: por isso queria o Asylo, o Recolhimento dos Desvalidos, onde os pobres, tendo provado com bons documentos a sua miseria, tendo apresentado bons attestados de moralidade, recebessem do Estado, sob a superintendência de homens praticos e despidos de vãs piedades, um tecto contra a chuva e um caldo contra a fome. O pobre devia viver alli, separado, isolado da sociedade, e não ser admittido a vir perturbar, com a expressão da sua face magra e com a narração exagerada das suas necessidades, as ruas da cidade. «Isole-se o pobre!» dizia elle um dia na Camara dos Deputados, synthetizando o seu magnífico projecto para a creação dos Recolhimentos do Trabalho. O Estado forneceria grandes casarões, com cellas providas d'uma enxerga, onde seriam acolhidos os miseraveis. Para conseguir a admissão, deveriam provar serem de maior edade, haverem cumprido os seus deveres religiosos, não terem sido condemnados pelos tribunaes (isto para evitar que operarios d'ideias subversivas que, pela grève e pelo deboche, tramam a destruição do Estado, viessem, em dias de miseria, pedir a esse mesmo Estado que os recolhesse). Deveriam ainda provar a sobriedade dos seus costumes, nunca terem vivido amancebados nem possuírem o hábito de praguejar e blasphemar. Reconhecidas estas qualidades elevadas com documentos dos parochos, dos regedores, etc., seria dada a cada miserável uma cella e uma ração de caldo igual á que têm os presos.

Mas, dir-se-ha, o Estado, então sustenta-os de graça? Não, — poderia exclamar triunphantemente o Conde, mostrando as paginas admiraveis do seu regulamento, em que se estabelecia, com um profundo sentimento dos deveres do cidadão para com a cidade, que todo o pobre admittido seria forçado a uma considerável somma de trabalho, segundo as suas aptidões. O mais útil paragrapho, a meu ver, é aquele que determina que grupos de pobres sejam forçados a calçar as ruas, collocar as canalizações de gaz, trabalhar em monumentos publicos, etc. Taes serviços, todos em favor da Camara Municipal, obrigá-la-ia a concorrer para a despesa d'esta instituição, alliviando assim o Estado d'uma grande parte dos gastos.

Uma vez admittidos, os recolhidos perderiam o direito de sahir — a não ser que provassem que iriam d'alli ser empregados, de tal sorte que não lhes fôsse possivel recahir nos acasos da miseria.»


O Conde d’Abranhos – Notas Biográficas de Z. Zagalo_Eça de Queiroz_1925 (póstumo)

terça-feira, 5 de agosto de 2025

David Swanson - NÃO, A DESTRUIÇÃO DE CIDADES NÃO SALVOU VIDAS

 
terça-feira, 5 de agosto de 2025


 É estranhamente encorajador o facto de o New York Post ter tido de trazer à baila, na sexta-feira [1 agosto], o seu propagandista de direita mais excêntrico para argumentar que bombardear Hiroshima e Nagasaki salvou vidas. É quase como se a afirmação de que matar palestinianos não é genocídio tivesse de ser superada pelo Post. É ainda mais encorajador que o Post se tenha sentido obrigado a alargar a definição habitual de "vidas" para incluir as vidas dos japoneses, afirmando que bombardear pessoas salvou não só vidas dos EUA mas também vidas dos japoneses - um argumento que teria sido muito difícil de encontrar durante as primeiras décadas deste mito.

Mas não é verdade que as afirmações de que as armas nucleares salvaram vidas ou de que as armas nucleares acabaram com a guerra sejam feitas apenas por marginais loucos. Essas afirmações podem estar a desaparecer entre os historiadores sérios, mas são factos básicos aceites pelo público em geral. Por isso, continuam a aparecer como zombies em livros e artigos cujos autores parecem não fazer ideia de que estão a escrever algo controverso, e há muito desmascarado. (O Post chama-lhe ‘uma das questões históricas mais controversas da história americana’).

O argumento do Post (citando um autor chamado Richard Frank) é o seguinte: ‘Não só não foi recuperado nenhum documento relevante do período da guerra, como nenhum deles’, escreve ele sobre os principais líderes japoneses, ‘mesmo quando enfrentavam potenciais sentenças de morte em julgamentos por crimes de guerra, testemunharam que o Japão se teria rendido mais cedo mediante uma oferta de condições modificadas, associada a uma intervenção soviética ou a outra combinação de acontecimentos, excluindo a utilização de bombas atómicas’.

Ora bem, aqui está um documento relevante. Semanas antes de ser lançada a primeira bomba, a 13 de julho de 1945, o Japão enviara um telegrama à União Soviética expressando o seu desejo de se render e acabar com a guerra. Os EUA tinham decifrado os códigos do Japão e lido o telegrama. Truman referiu-se no seu diário ao ‘telegrama do imperador japonês a pedir a paz’. O Presidente Truman já tinha sido informado, através dos canais suíços e portugueses, das propostas de paz japonesas, três meses antes de Hiroshima. O Japão opôs-se apenas à rendição incondicional e à cedência do seu imperador, mas os EUA insistiram nesses termos até depois da queda das bombas, altura em que permitiram que o Japão mantivesse o seu imperador. Assim, o desejo de lançar as bombas pode ter prolongado a guerra. As bombas não encurtaram a guerra. (…)

Os defensores do bombardeamento de cidades podem agora afirmar que as bombas nucleares salvaram vidas, mas na altura as bombas nem sequer tinham essa intenção. A guerra terminou seis dias depois da segunda bomba nuclear, seis dias após a invasão russa do Japão. Mas a guerra ia acabar de qualquer maneira, sem nenhuma dessas coisas. O United States Strategic Bombing Survey concluiu que, ‘... certamente antes de 31 de dezembro de 1945, e com toda a probabilidade antes de 1 de novembro de 1945, o Japão ter-se-ia rendido mesmo que as bombas atómicas não tivessem sido lançadas, mesmo que a Rússia não tivesse entrado na guerra, e mesmo que nenhuma invasão tivesse sido planeada ou contemplada.’

O General Dwight Eisenhower tinha expressado esta mesma opinião ao Secretário da Guerra e, segundo o seu próprio relato, ao Presidente Truman, antes dos bombardeamentos. O Subsecretário da Marinha Ralph Bard, antes dos bombardeamentos, insistiu para que fosse dado um aviso ao Japão. Lewis Strauss, conselheiro do Secretário da Marinha, também antes dos bombardeamentos, recomendou que se bombardeasse uma floresta em vez de uma cidade. O general George Marshall aparentemente concordou com essa ideia. O cientista atómico Leo Szilard liderou cientistas na apresentação de uma petição ao presidente contra a utilização da bomba. O cientista atómico James Franck liderou cientistas que defendiam que as armas atómicas fossem tratadas como uma questão de política civil e não apenas como uma decisão militar. Outro cientista, Joseph Rotblat, exigiu o fim do Projeto Manhattan e demitiu-se quando este não foi terminado. Uma sondagem aos cientistas americanos que tinham desenvolvido as bombas, efetuada antes da sua utilização, revelou que 83% queriam que uma bomba nuclear fosse demonstrada publicamente antes de a lançarem sobre o Japão. Os militares americanos mantiveram essa sondagem em segredo. O general Douglas MacArthur deu uma conferência de imprensa a 6 de agosto de 1945, antes do bombardeamento de Hiroshima, para anunciar que o Japão já estava derrotado.

Em 1949, o Presidente do Estado-Maior Conjunto, Almirante William D. Leahy, afirmou que Truman lhe tinha garantido que só seriam bombardeados alvos militares e não civis. ‘A utilização desta arma bárbara em Hiroshima e Nagasaki não foi de grande ajuda na nossa guerra contra o Japão. Os japoneses já estavam derrotados e prontos para se renderem’. disse Leahy. Entre os oficiais militares de topo que afirmaram, logo após a guerra, que os japoneses se teriam rendido rapidamente sem os bombardeamentos nucleares, contam-se o general Douglas MacArthur, o general Henry "Hap" Arnold, o general Curtis LeMay, o general Carl "Tooey" Spaatz, o almirante Ernest King, o almirante Chester Nimitz, o almirante William "Bull" Halsey e o general de brigada Carter Clarke. Como resumem Oliver Stone e Peter Kuznick, sete dos oito oficiais de cinco estrelas dos EUA que receberam a sua última estrela na Segunda Guerra Mundial ou pouco depois - os generais MacArthur, Eisenhower e Arnold, e os almirantes Leahy, King, Nimitz e Halsey - em 1945 rejeitaram a ideia de que as bombas atómicas eram necessárias para acabar com a guerra. ‘Infelizmente, porém, há poucas provas de que tenham pressionado Truman antes do facto.’

Em 6 de agosto de 1945, o Presidente Truman mentiu na rádio dizendo que uma bomba nuclear tinha sido lançada numa base do exército e não numa cidade. E justificou-o, não para acelerar o fim da guerra, mas como vingança contra as ofensivas japonesas. ‘O Sr. Truman estava exultante", escreveu Dorothy Day. Temos de nos lembrar que, nos media norte-americanos da época, matar mais japoneses era decididamente preferível a matar menos, e não exigia qualquer justificação para supostamente salvar vidas ou acabar com guerras. Truman, o homem cuja ação está a ser defendida e cujo diário está a ser cuidadosamente ignorado, não fez tais afirmações, pois não estava a fazer propaganda retrospetiva.

Então, porque é que as bombas foram lançadas?

O conselheiro presidencial James Byrnes tinha dito a Truman que o lançamento das bombas permitiria aos EUA ‘ditar os termos do fim da guerra’. O Secretário da Marinha, James Forrestal, escreveu no seu diário que Byrnes estava ‘muito ansioso por acabar com o caso japonês antes que os russos entrassem’. Truman escreveu no seu diário que os soviéticos estavam a preparar-se para marchar contra o Japão e ‘acabar com os japoneses quando isso acontecesse’. A invasão soviética foi planeada antes das bombas, não decidida por elas. Os EUA não tinham planos para invadir durante meses, nem planos à escala para arriscar o número de vidas que o Post dirá que foram salvas.

Truman ordenou o lançamento das bombas, uma em Hiroshima, a 6 de agosto, e outro tipo de bomba, uma bomba de plutónio, que os militares também queriam testar e demonstrar, em Nagasaki, a 9 de agosto. O bombardeamento de Nagasaki foi antecipado do dia 11 para o dia 9, para diminuir a probabilidade de o Japão se render primeiro. Também a 9 de agosto, os soviéticos atacaram os japoneses. Durante as duas semanas seguintes, os soviéticos mataram 84.000 japoneses e perderam 12.000 dos seus próprios soldados, e os EUA continuaram a bombardear o Japão com armas não nucleares - queimando cidades japonesas, como tinham feito antes de 6 de agosto que, quando chegou a altura de escolher duas cidades para bombardear, já não havia muitas por onde escolher.

Eis o que o Post afirma ter sido conseguido ao matar algumas centenas de milhares de pessoas e ao iniciar a era do perigo nuclear apocalítico: ‘O fim da guerra tornou desnecessária uma invasão dos EUA que poderia ter significado centenas de milhares de baixas americanas; salvou milhões de vidas japonesas que teriam sido perdidas em combate nas ilhas natais e à fome; encurtou a breve invasão soviética (que só por si foi responsável por centenas de milhares de mortes japonesas); e acabou com a agonia que o Japão Imperial trouxe à região, especialmente a uma China que sofreu talvez 20 milhões de baixas.’

Note-se que o Post se sente obrigado a atribuir à invasão soviética a responsabilidade pela morte de centenas de milhar de japoneses, ao mesmo tempo que afirma, como Truman, que essa invasão não influenciou a decisão japonesa de se render. Repare-se também que a única alternativa ao fim da guerra após as bombas nucleares, segundo este ponto de vista, teria sido a continuação da guerra durante muito tempo, custando milhões de vidas de japoneses. Mas os factos acima referidos não confirmam isto. O propagandista de 2025 está a discordar do consenso dos líderes do seu amado exército em 1945.

Porque é que ele faz isso?

Conclui com a sua motivação: ‘É por isso que a visão do Presidente Donald Trump de uma Cúpula Dourada para proteger os EUA de ataques de mísseis é tão importante, e é por isso que precisamos de uma força nuclear robusta para dissuadir os nossos inimigos’.

Posted by OLima at terça-feira, agosto 05, 2025 
https://onda7.blogspot.com/2025/08/leituras-marginais_01712045953.html

John Hersey - “Hiroshima” (excertos)

 

Alfredo Barroso
2 d
 ·
No dia 6 de Agosto de 1945, às 8 horas e 15 minutos (locais) da manhã

BOMBA ATÓMICA DE URÂNIO LANÇADA SOBRE HIROSHIMA, DE UM AVIÃO DA FORÇA AÉREA DOS EUA, FAZ MAIS DE 100 MIL MORTOS!
- recorda Alfredo Barroso com a ajuda do jornalista John Hersey

Aconteceu há 80 anos, seis meses depois de eu ter nascido em Roma. Foi exactamente às oito horas e quinze minutos da manhã do dia 6 de Agosto de 1945, hora japonesa, que uma bomba atómica de urânio - alcunhada “Little Boy” e lançada do avião “Enola Gay” da USA Air Force - deflagrou a cerca de 600 metros de altura sobre a cidade japonesa de Hiroshima, matando imediatamente mais de cem mil (100.000) pessoas, infligindo sofrimentos brutais aos sobreviventes e causando uma devastação terrível na cidade e arredores.

Como escreveu o jornalista e escritor John Hersey, no seu famoso livro intitulado “Hiroshima”, citando um dos sobreviventes, o reverendo Kiioshi Tanimoto, pastor da Igreja Metodista de Hiroshima

* John Hersey

«Foi então que um tremendo clarão rasgou o céu. O reverendo Kiioshi Tanimoto lembra-se perfeitamente que o clarão percorreu o firmamento de nascente para poente da cidade em direcção às colinas. Parecia uma lâmina de luz»...

«(Quase ninguém em Hiroshima se lembra de ter ouvido qualquer barulho provocado pela bomba. Porém, um pescador a bordo da sua sampana, no mar interior perto de Tsuzu, o homem em cuja casa viviam a sogra e a cunhada do reverendo Tanimoto, viu o clarão e ouviu uma tremenda explosão; separavam-no de Hiroshima mais de 30 quilómetros, mas o barulho foi maior do que quando os B-29 atingiram Iuakuni, situada apenas a oito quilómetros)»…

«(…) De cima de uma pequena elevação, o reverendo Tanimoto ficou perplexo com o que viu. Não só uma parte de Koi [nos subúrbios], como pensara, mas tudo o que conseguia vislumbrar de Hiroshima através da atmosfera nublada, exalava um miasma espesso e profundamente desagradável. Nuvens de fumo começavam a elevar-se por entre a poeira um pouco por todo o lado. O reverendo Tanimoto tentou perceber como fora possível que tamanha destruição tivesse saído de um céu silencioso; mesmo poucos aviões, voando a grande altitude, teriam sido audíveis. As casas ali perto estavam a arder, e quando enormes gotas de água do tamanho de berlindes começaram a cair, chegou a pensar que eram provenientes das agulhetas dos bombeiros que combatiam as chamas. (De facto, tratava-se de gotas de humidade condensada provenientes da turbulenta coluna de poeira, de calor e fragmentos de fissão que já se elevara quilómetros no céu por cima de Hiroshima.)»…

«(…) O dr. Masakasu Fujii, médico, que só tinha vestida a roupa interior, via-se agora sujo e encharcado. A camisola interior estava toda rasgada, cheia do sangue que lhe saía de feridas profundas no queixo e nas costas. Nesse estado de confusão e desalinho caminhou até à ponte Kio, ao lado da qual se situara o seu hospital. A ponte continuava de pé. Via tudo baço sem os óculos, mas enxergava o suficiente para se espantar com o número de casas destruídas por todo o lado. Na ponte encontrou um amigo, um médico chamado Machii, e ainda estupefacto perguntou-lhe: “O que achas que foi isto?”. O dr. Machii respondeu-lhe: “Deve ter sido um ‘Molotoffano hanacago’”, um cesto de flores Molotov, o delicado nome japonês para “bread basket” ou cacho de bombas de dispersão automática.

«No início, o dr. Fujii conseguia ver apenas dois fogos, um que se estendia para o outro lado do rio a partir do sítio onde estivera o seu hospital, e outro bastante mais para sul. Contudo, ele e o amigo observavam algo que os intrigava e que, na qualidade de médicos, discutiam entre si: apesar de até ao momento haver poucos fogos, via-se gente ferida a atravessar a ponte num passo apressado, numa fila infindável de sofrimento, exibindo muitas pessoas queimaduras horríveis na cara e nos braços. “Como explicas isto?”, perguntou o dr Fujii. Até uma teoria era uma coisa reconfortante nesse dia e o dr. Machii agarrou-se à dele: “Talvez fosse um cesto de flores Molotov”»…

«(…) Nas vésperas do 1º aniversário do bombardeamento, o reverendo Kiioshi Tanimoto escreveu, numa carta a um americano, palavras a exprimir o sentimento com que os sobreviventes tinham enfrentado uma provação terrível: "Que cena dilacerante a da primeira noite! Cerca da meia-noite atraquei na margem do rio. Havia tanta gente ferida deitada no chão que abri caminho saltando por cima deles. Repetindo 'desculpem', fui avançando com uma vasilha de água na mão, distribuindo-a por cada um deles. Erguiam lentamente o corpo e aceitavam a caneca com uma vénia, bebendo silenciosamente; depois, despejando qualquer sobra, devolviam a caneca exprimindo calorosamente o seu agradecimento, e um até disse: 'Não pude socorrer a minha irmã, que ficou soterrada nos escombros da casa, porque tive de acorrer à minha mãe, que tinha uma ferida profunda num olho; a nossa casa pegou fogo e mal conseguimos escapar. Ouça, perdi a minha casa, a minha família, e acabei por ficar gravemente ferido. Mas agora vou a dedicar o tempo que me resta para acabar a guerra a bem do nosso país'. Era esta a promessa que formulavam, inclusive mulheres e crianças. Esgotado como estava, deitei-me junto deles, mas não consegui dormir. Na manhã seguinte reparei que estavam mortos muitos dos homens e mulheres a quem dera água na noite anterior. Mas, para grande espanto meu, nunca ouvi ninguém gritar com dores, apesar de se encontrarem em profundo sofrimento. Morreram em silêncio, sem rancor, cerrando os dentes para poderem aguentar. Tudo pelo país!"»…

«(…) Logo que puderam, os cientistas chegaram à cidade aos magotes. Alguns calcularam a força que fora necessária para deslocar pedras tumulares de mármore nos cemitérios, para virar 22 das 47 carruagens estacionadas nos cais da estação ferroviária de Hiroshima, para levantar e mover o pavimento de betão numa das pontes e para provocar outros feitos dignos de registo, concluindo que a pressão exercida pela explosão variou ente 5,3 e 8 toneladas por quilómetro quadrado. Outros descobriram que a mica, cujo ponto de fusão é de 900 graus Celsius, derretera nas pedras tumulares de granito a uma distância de 345 metros do centro; que os postes de telefone feitos de ‘Cryptomeria japonica’, cuja temperatura de carbonização é de 240 graus Celsius, ficaram carbonizados a quatro quilómetros do centro e que a superfície das telhas de barro cinzento do tipo usado em Hiroshima, cujo ponto de fusão é de 1300 graus Celsius, se dissolvera a 550 metros do centro. Depois de terem examinado outras cinzas e fragmentos fundidos relevantes, concluíram que o calor libertado pela bomba no centro junto ao solo devia ter atingido os 6000 graus Celsius. E a partir de ulteriores medições de radiação, que implicaram, além de outros passos, a raspagem de fragmentos de fissão em caleiras e em algerozes tão longe quanto o subúrbio de Takasu, a três quilómetros do centro, ficaram a conhecer factos muito mais importantes acerca da natureza da bomba. O Quartel-General do general MacArthur censurava sistematicamente qualquer referência à bomba nas publicações científicas japonesas, mas não foi preciso muito tempo para que o resultado dos cálculos dos cientistas fosse do conhecimento comum entre físicos, médicos, químicos, professores e jornalistas japoneses e, sem dúvida, entre os políticos e militares ainda em circulação. Muito antes da divulgação pública aos norte-americanos, já a maioria dos cientistas e de muitos não cientistas do Japão sabia – a partir dos cálculos dos físicos nucleares japoneses – que uma bomba de urânio explodira em Hiroshima e outra mais potente, de plutónio, em Nagasaki. Sabiam ainda que em teoria era possível desenvolver uma bomba dez ou vinte vezes mais potente»…

(Todas as citações e excertos tirados do livro «HIROSHIMA», do jornalista e escritor JOHN HERSEY (1914-1993), publicado em Portugal pela ANTÍGONA, em 1997, com tradução de Fernando Gonçalves, revisão e anexos de Júlio Henriques)