Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
terça-feira, 29 de outubro de 2024
Eduardo Lucas - Guerra cognitiva e controle de informação
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Paulo Baldaia - ou neto de um polícia e sou um privilegiado, outros há que não são
* Paulo Baldaia
Ser de um destes bairros,
levantar de madrugada para trabalhar e só regressar noite feita, ao mesmo tempo
que educam os filhos, dá a estas pessoas o estatuto de heróis, não o de eternos
suspeitos
Num mundo tão desigual como
aquele que habitamos, a mais dura das discriminações é aquela a que sujeitamos
os mais pobres dos pobres, porque a esses apontamos a culpa da sua própria
condição. Queremos acreditar, e fazê-los acreditar a eles próprios, que
só é pobre quem quer. Repetimos por descargo de consciência: são
pobres porque não estudaram, são pobres porque não querem trabalhar, são pobres
porque querem viver à custa dos outros (RSI). Não ocorre à generalidade dos
privilegiados que estes pobres que geram pobres, geração atrás de
geração, são o fruto da sociedade que construímos. Esquecemos que a grande
maioria dos pobres são trabalhadores e isso mostra-nos que a mão que tem o
indicador apontando a culpa aos outros é a mesma que tem três dedos que se
dobram apontando responsabilidades a nós próprios.
Sim, é verdade que ser cigano (a
etnia mais odiada e mais discriminada) ou afrodescendente, a que se juntam
agora também os indostânicos, é condição suficiente para sofrer na pele
diariamente algum tipo de discriminação. Mas se forem pessoas abastadas (uma
pequeníssima minoria) e puderem comprar um lugar ao sol (nos bairros ricos da
cidade) e pôr os filhos no colégio, a discriminação a que são sujeitos será,
mesmo que apenas ligeiramente, atenuada. Pelo contrário, quanto mais
pobres são, mais são vistos como ciganos, afrodescentes ou indostânicos e não
como cidadãos de plenos deveres e direitos.
Cresci num bairro de vivendas
geminadas, mandado construir durante o Estado Novo, em parceria com
organizações corporativas, em cidades como Lisboa e Porto, para as famílias dos
funcionários desse mesmo Estado, mas não só. As Casas Económicas, como passaram
a ser designadas, são habitações independentes de que os moradores se tornaram
proprietários ao fim de determinado número de anos, mediante o pagamento de
prestação mensal. No momento seguinte, construíram-se, junto dessas vivendas,
bairros sociais de blocos (assim chamados por se tratar de prédios de
construção muito simples e que permanecem pertença das autarquias). Na
altura, dizia-se que a construção destes bairros camarários junto às
vivendas tinha o objectivo político de dar aos mais pobres o convívio com a tal
classe média que se formava e assim aprenderem a sair da pobreza. Outrora,
como agora, havia a ideia peregrina de que só era pobre toda a vida quem
queria.
O meu avô materno, que nem
cheguei a conhecer, era polícia municipal e talvez isso tenha ajudado para os
meus pais terem direito a uma vivenda, onde puderam criar uma família que só
parou nos nove filhos. Eram da classe média, na relativa pobreza que isso
significava ser classe média naquela altura, concorreram e foi-lhes entregue
uma casa que passou a ser deles ao fim de 25 anos. O meu pai tinha
estudos médios e isso fez com que eu não tenha nascido predestinado a viver na
pobreza, mas quis o destino que crescesse a olhar para ela. A casa, que foi
crescendo à medida que crescia a família, ficava paredes-meias com o bairro
social onde o que crescia era a pobreza e a discriminação. Sou testemunha do
esforço titânico que aquelas pessoas (alguns andaram na escola primária comigo)
faziam para serem vistos como cidadãos de corpo inteiro. O país mudou, diminui
o número de pobres, cresceu a classe média, mas até isso travou às quatro
rodas. A certa altura, ficamos conformados com a ideia de que o país tem de
viver com dois milhões de pobres.
Para evitar vermo-nos ao espelho
quando olhamos para esta pobreza económica que reflecte a pobreza dos nossos
valores, empurramo-la para cada vez mais longe da elite dominante.
A condição social em que me encontro faz de mim um privilegiado, mas a
consciência que tenho do privilegiado que sou obriga-me a olhar ainda com mais
humanidade para os que apenas podem ambicionar sobreviver um dia de cada
vez. Ser de um destes bairros, levantar de madrugada para trabalhar e
só regressar noite feita, ao mesmo tempo que educam os filhos, dá estas pessoas
o estatuto de heróis, não o de eternos suspeitos.
Ainda assim, este ano, algures
num destes bairros poderá ter nascido alguém que, daqui a 20 anos, terá uma
vida ligada ao crime. Nessa altura, vamos todos apontar o dedo ao criminoso e
exigir repressão policial, continuando a não ver os três dedos que se dobram e
nos apontam a responsabilidade por pouco ou nada termos feito para evitar que o
bebé de hoje se tornasse um criminoso no futuro. No mesmo bairro, poderá ter
nascido também este ano alguém que vai ser polícia, porque é uma das formas de
sair da pobreza onde nasceu, e ao entrar no bairro, traído pela má memória do
perigo que lá mora, vai disparar à mais pequena ameaça. Nessa altura, vamos
todos querer justiça, não cuidando de perceber que para lhe apontar um dedo há
três que se dobram apontando a todos nós, porque não lhe demos condições de ser
um justo braço da lei. Está nas nossas mãos fazer com que a realidade mude.
Expresso 2024 10 28
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
Alexandra Lucas Coelho - Sinwar não é o vosso monstro
* Alexandra Lucas Coelho
"1. Eu estava a dormir num prédio de Gaza quando o soldado israelita Gilad Shalit foi feito refém, na madrugada de 25 de Junho de 2006. Combatentes palestinianos, do Hamas e não só, penetraram em Israel por um túnel de meio quilómetro junto a Rafah, atacaram um posto militar, mataram dois soldados, feriram quatro e voltaram com Shalit. Quando acordámos, toda a gente sabia o que aí vinha: Gaza ia ser bombardeada (crónica desses dias no arquivo do PÚBLICO). O que ninguém podia prever, claro, é que o refém Shalit sairia o mais caro de sempre ao Estado judaico. E seria o começo de uma história que de certa forma só acabou esta semana, quando soldados comuns, uma geração depois de Shalit, mataram por acaso o actual Inimigo nº1 de Israel: Yahya Sinwar. O cérebro do 7 de Outubro, aquele a que Netanyahu chama a encarnação do mal. E que o próprio Netanyahu tirou da prisão perpétua. Porque Sinwar foi um dos 1000 prisioneiros palestinianos trocados pelo soldado Shalit em 2011, acordo que hoje parece mirabolante, se pensarmos em tudo o que Netanyahu não fez para libertar os reféns do 7 de Outubro.
2. Nesse Junho de 2006, entre o rapto do soldado e o castigo a caminho, fui às barricadas que a população de Gaza erguia para atrasar a investida terrestre. Lá estava um beduíno que me descreveu com detalhe como na madrugada do rapto dormia na sua tenda quando foi acordado por carros com militantes armados na direcção de Israel. Depois ouvira explosões e tiros, e depois vira os militantes a voltarem, arrastando um ferido. Apontaram uma arma ao beduíno para o enxotar. O ferido seria Shalit.
Esse raide contra o posto israelita era uma resposta: semanas antes, Israel executara o líder da Jihad Islâmica, e explosões israelitas numa praia do norte de Gaza tinham feito oito vítimas civis, sete das quais da mesma família. Os executores do raide eram militantes da ala militar do Hamas, dos Comités de Resistência Popular e de um desconhecido Exército do Islão. Em comunicado conjunto pediam a libertação das mulheres e jovens até 18 anos presos nas cadeias de Israel.
Mas anos depois, quando o acordo foi feito, e Shalit trocado pelos 1000, entre os libertados havia barbas rijas, até grisalhas. Como a de Sinwar, que passara 22 anos na cadeia. Pensem em 22 anos da vossa vida. Na vida de Sinwar, 22 anos a aprender hebraico, estudar história, conhecer por dentro o inimigo. Inimigo desde antes de nascer e para além da morte.
Porque Sinwar se tornou o Inimigo nº1 de Israel a 7 de Outubro, mas Israel já era o Inimigo nº1 de Sinwar havia 75 anos. Ele herda a resistência ao nascer, e vai deixá-la em herança muito mais feroz. Implacável, a começar pelos traidores internos. As condenações que o levaram à cadeia incluem execuções de palestinianos colaboradores ou suspeitos. E os israelitas que o interrogaram na prisão lembram um homem sem qualquer medo, que ameaçava os seus carrascos ali mesmo, sendo prisioneiro.
O que também ajuda a entender porque não é possível resumir — ou destruir — o Hamas como um grupo terrorista. E como o Hamas cresceu perante 1) uma Autoridade Palestiniana minada por corruptos 2) um Estado cada vez mais ocupante, a quem convinha um inimigo como o Hamas 3) um Ocidente (ou Norte Global) que abandonou os palestinianos desde 1948, depois de a Europa, a mais antiga das anti-semitas, ter ajudado a criar Israel.
Esse mesmo Ocidente que agora se escuda com o Hamas para não ver, e tentar que não se veja, a sua própria ignomínia. Como se a crueldade do que aconteceu a 7 de Outubro fosse o início e não o fim de um status quo que nunca devia ter existido. O ferro do Hamas queimou Israel até ao osso. E os líderes ocidentais tapam o seu próprio crime contínuo com o Hamas. Tal como toda a gente que não quer ver Gaza (ou o Líbano). Mas o Hamas não é o vosso escudo humano. Sinwar não é o vosso monstro. Não vai fazer esse papel. Não vai tapar o abismo aqui. O nosso.
A verdade são várias, paralelas, não se excluem. O Hamas fortaleceu-se por ser incorruptível, dar a vida à causa e sendo implacável. É um movimento religioso, de resistência nacional, que encara todos os meios como legítimos para a sua visão da libertação da Palestina, incluindo terrorismo contra civis. E, sim, desfez-se de opositores internos, de "imorais", homossexuais. Torturou não-alinhados, denunciados ou suspeitos. Incluindo, como contei várias vezes, o palestiniano de Gaza que foi meu tradutor e guia em dezenas de reportagens para este jornal, ao longo dos anos. Cuja casa de família eu partilhava quando o soldado Shalit foi raptado naquela madrugada que de certa forma foi o ovo do 7 de Outubro.
3. Uma das primeiras memórias que tenho de entrevistar alguém do Hamas em Gaza, durante a Segunda Intifada, é a de um porta-voz que chegou com um daqueles pequenos telefones tipo Nokia que todos usávamos na altura. Antes mesmo de se sentar tirou a bateria para não ser localizado. Estávamos numa esplanada, vários membros do Hamas eram relativamente acessíveis, mas não me lembro de não haver precauções deste género. Quando eu aterrei no assunto já eles tinham toda uma linhagem de assassinados. Depois, ao longo dos anos, conheci muitos membros do Hamas, homens e mulheres, e alguns dos líderes, incluindo Mahmoud Zahar, que me lembro de entrevistar em casa, ou Ismail Hanyieh. Sobretudo durante a campanha para as eleições de Janeiro de 2006, as únicas a que o Hamas concorreu, e que ganhou de forma limpa.
Sinwar não existia nesse quotidiano porque estava preso. Só foi libertado em 2011, quando eu era correspondente no Brasil, e só se tornou líder anos mais tarde. Nunca o vi, que me lembre.
Ficará para a história como o homem que infligiu a Israel o maior golpe de sempre, e não vai ser fácil substituí-lo. Não seria eu a lamentar a extinção do Hamas (ou de qualquer partido ou regime teocrático). Mas não vai acontecer. Pelo menos não tão cedo.
4. Depois de confirmar a morte de Sinwar, Israel divulgou o vídeo de um drone que supostamente filma os últimos minutos do líder do Hamas. Um homem de cara coberta está sentado no meio de um andar bombardeado, mão direita talvez amputada. Ao reparar no drone, pega num pau com a mão que sobra e atira-o contra a câmara. Não sei se é Sinwar. Mas há algo naquela imagem que é Sinwar e é o Hamas, tanto quanto o Hamas é uma ideia sem fim de resistência, enquanto estiver lá o que mantém um povo inteiro refém. Não certamente a minha ideia. Não a ideia de tantos e tantos palestinianos. Mas uma ideia verdadeira para muitos. E que muitos outros adoptaram porque mais ninguém estava lá, para lutar com eles, por eles. Infelizmente. Tal como infelizmente a defesa internacional da Palestina é reclamada por um regime tão odioso como o Irão. Não por responsabilidade dos palestinianos, mas pela derrocada moral das democracias selectivas: as nossas.
Houve a Intifada das pedras e a Intifada das bombas suicidas, e passaram décadas. Os palestinianos perderam o passado há 76 anos, perdem o presente há 76 anos, e, mais rápido do que tínhamos visto em qualquer guerra, já perderam uma parte do futuro próximo desde 7 de Outubro. Todas aquelas crianças que continuamos a ver nos nossos telefones a serem desfeitas. E ainda assim há quem se incomode não com a continuação do holocausto, mas com o facto de se continuar a falar dele. Na verdade é simples, ou devia ser: o assunto não muda porque o assunto não mudou. E não mudará, enquanto Israel ganhar a vida à custa da morte da Palestina (ou do Líbano). E assim perder definitivamente a guerra. O futuro."
in "Público" de 19/10/2024
domingo, 20 de outubro de 2024
Carlos Coutinho - [Lobisomens]
Era inverno, o
chão da rua tinha uma camada de neve quase de palmo que, depois, no caminho de
regresso a casa, eu ia marcando com sulcos arrastados das minhas chancas de
solas de pau. Quando cheguei ao Largo do Terreiro, comecei a notar que havia
duas filas, paralelas e muito encostadas uma à outra, de outros sulcos, estes
em forma de coração e com uma largura de quatro ou cinco centímetros. Podiam
ser de cão grande, mas, como eu vinha com os ouvidos cheios de histórias
assustadoras de lobos e lobisomens, foram marcas lupinas o que me pareceu ver
pela rua acima, na direção da minha casa e do cemitério, lá muito para o alto.
Parei debaixo
de um luar pálido e de mau augúrio, achei desmesurada a lua cheia e decidi
seguir para o Largo do Cimo da Rua por um caminho alternativo que passa pelo
Tapado, onde começa o urtigoso Quelho que desce para o Largo do Itreido.
Estaquei ao lado da fonte de pedra para avaliar a situação posta pela
fantástica corrida de um peludo lobisomem que passou à minha frente sem para
mim olhar. Veio da Carreira Velha e embicou de cabeça oblíqua pela rota do
cemitério.
Hoje sei que
foi uma alucinação, consequência das histórias ouvidas na barbearia,
provavelmente exploradas para me assustarem. Mas eu levei a coisa a sério e,
quando me dispunha a voltar para a barbearia, apareceu esbaforido o meu tio
Alberto que tinha ficado encarregado de me ir buscar e já não me encontrou.
Justificou a sua demora não me lembro como e, quase a chegar a minha casa,
disse:
– Estás mais suado que o meu
peito numa tarde de verão. Tens febre?
– Não. Tenho fome. Vossemecê
atrasou-se muito.
Fez-se um breve silêncio e eu
perguntei:
– Alguma vez viu um lobisomem,
tio?
– Eu? Nunca! E tu?
– Também não, mas na barbearia só
se falava nisso.
Se eu não fosse
sobrinho de um irmão da minha mãe, talvez confessasse que havia acreditado em
certos pormenores inquietantes daquelas arrastadas conversas mal-intencionadas,
mas a verdade é que desatámos ambos a rir, já no quinteiro que havia à frente
da minha antiga casa.
Passados estes
anos todos e puxado pela televisão para as crenças de antanho, fui à Internet
procurar o que haveria sobre o assunto e, então, fiquei a saber que, na lúgubre
barbearia que ficava por cima da loja de uma vaca leiteira e ao lado da
sapataria do Sr. Lucindo, nada tinha sido inventado e que lobisomem ou
licantropo (do grego λυκάνθρωπος: λύκος, lýkos, ‘lobo’ e άνθρωπος, ánthrōpos,
‘humano’) é uma pessoa capaz de se transformar num faminto lobo ou em algo
semelhante a um lobo, quase sempre em inquietantes noites de lua cheia.
Tal lenda
aparece nas obras de vários autores que contam a história do pugilista arcádio
Damarco da Parrásia, herói olímpico, que assumiu a forma de lobo nove anos após
um sacrifício a Zeus Liceu, lenda atestada pelo geógrafo Pausânias.
Também
Heródoto, nas suas “Histórias”, escreveu que, de acordo com o que os citas
acreditavam, os gregos estabelecidos na Cítia lhe contaram serem os Neuri, uma
tribo do Nordeste, que eram todos transformados em lobos, uma vez por ano,
durante vários dias, voltando seguidamente à forma humana. O historiador teve o
cuidado de acrescentar que não estava convencido da veracidade dessa história,
mas os moradores locais juravam que ela era verdadeira. Esta lenda também foi
narrada por Pomponius Mela.
No século II
a.n.e. o geógrafo grego Pausânias contou a história do rei Licaão da Arcádia,
que foi transformado em lobo porque sacrificou uma criança no altar de Zeus
Liceu. Na versão escrita em latim por Ovídio nas suas “Metamorfoses”, quando
Zeus visitou Lacaão, disfarçado de homem comum, o visitado quis testar se ele
era realmente um deus. Para tanto, matou um refém molossiano e entregou as
entranhas da vítima a Zeus. Enojado, este transformou Licaão em lobo. No
entanto, noutros relatos da lenda, como o da Bblioteca de Apolodoro, Zeus
atacou-o, bem como aos filhos, com raios e coriscos, como como punição divina.
Esta história
também é contada por Plínio, o Velho, que chama a Licaão a Demaenetus, citando
Agripas. Segundo Pausânias, este não foi um acontecimento único, já muitos
homens foram transformados em lobos durante os sacrifícios a Zeus Liceu. Se
eles se abstivessem de comer carne de gente enquanto eram lobos, seriam
restaurados com a forma humana nove anos depois, mas, se não se abstivessem,
permaneceriam lobos para sempre.
Os primeiros
autores cristãos também mencionaram lobisomens. Na obra “Cidade de Deus”, o
bispo Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) faz um relato semelhante ao
encontrado em Plínio, o Velho. Agostinho explica que "é geralmente aceite
que, por certos feitiços de bruxa, os homens podem ser transformados em lobos.”
Esta
metamorfose fisionómica também foi mencionada no “Capitulatum Episcopi”,
atribuído, desde a sua reunião no século IV, ao Concílio da Ancira e tornou-se
texto doutrinário da Igreja em relação à magia, bruxas e transformações como as
dos lobisomens. Nele está escrito que “quem acredita que qualquer coisa pode
ser transformada noutra espécie ou semelhança, exceto pelo próprio Deus é sem
dúvida um infiel.”
Há também
evidências de uma crença generalizada em lobisomens na Europa medieval. Os
lobisomens foram mencionados em códigos de então, como o do Rei Canuto II da
Dinamarca, cujas “Ordenações Eclesiásticas” nos informam de que esses códigos
visam garantir que “o lobisomem loucamente audacioso não devaste muito, nem
morda muitos dos membros do rebanho espiritual.”
Liuprando de
Cremona, por sua vez, fala de um boato segundo o qual Bajan, filho de Simeão I
da Bulgária, poderia usar magia para se transformar em lobo.
As obras de
Agostinho de Hipona tiveram grande influência no desenvolvimento do
cristianismo ocidental e foram amplamente lidas pelos clérigos do período
medieval que ocasionalmente peroravam sobre lobisomens em suas obras. Exemplos
famosos incluem “Werewolves of Ossory”, de Geraldo de Gales, na sua
“Topographica Hibernica”, assim como em “Otia Imperiala”, de Gervase de
Tilbury, ambos escritos para o público real.
Gervase revela
que a crença em tais transformações (ele também menciona mulheres que se
transformam em gatos e em cobras) foi difundida por toda a Europa. Usa a frase
“que ita dinoscuntur”, ao discutir essas metamorfoses, que significa “é
conhecido”". Escreveu na Alemanha e também diz que a transformação de
homens em lobos não pode ser facilmente descartada, pois “na Inglaterra, muitas
vezes vimos homens transformarem-se em lobos (“Vidimus enim frequenter in
Anglia per lunationes homines in lupos mutari”).
As tradições
pagãs germânicas associadas a homens-lobos persistiram por mais tempo na Era
Viking escandinava. Harald I da Noruega tinha um corpo de Úfhednar, os “homens
revestidos de lobo”, que são mencionados em “Vatnsdœla, Haraldskvæði! e na
“Saga dos Volsungos”, parecendo-se com algumas lendas de lobisomens.
Os Úlfhednar
eram lutadores semelhantes aos berserkers, embora se vestissem com peles de
lobo, em vez de peles de urso, e tivessem a reputação de absorver os espíritos
desses animais para aumentarem a eficácia na batalha. Úlfhednar e os berserkers
estão intimamente associados ao deus nórdico Odin que deu excelente substância
a Wagner para as suas óperas.
As crenças
escandinavas deste período podem ter-se espalhado pela Rússia de Kiev, dando
origem aos contos eslavos de lobisomens. Um príncipe bielorrusso do século XI,
Vseslav de Polotsk, foi descrito como um lobisomem, capaz de se deslocar em
velocidades sobre-humanas, conforme se pode ler no “Conto da Campanha de Igor”:
“Vseslav, o
príncipe, julgou os homens; como príncipe, ele governou cidades; mas à noite
ele rondava disfarçado de lobo. De Kiev, rondando, ele alcançou, antes da
tripulação dos galos,Tmutorokan. O caminho do Grande Sol, como um lobo
rondando, ele cruzou. Para ele, em Polotsk, os sinos tocavam cedo para as
matinas em Santa Sofia; mas ele ouviu o toque em Kiev.”
“Ser um
lobisomem” era uma acusação comum em julgamentos de bruxas ao longo da
história, e apareceu até nos julgamentos de bruxas de Valais, um dos primeiros
casos desse tipo, no século XV.
Na “Historia de
Gentibus Septentrionalibus”, Olaus Magnus descreve uma assembleia anual de
lobisomens perto da fronteira Lituânia-Curlândia. Os participantes, incluindo a
nobreza lituana e lobisomens das áreas vizinhas, reniam-se para testarem a sua
força, tentando saltar sobre as ruínas de uma muralha de castelo. Aqueles que
conseguiam eram considerados fortes, enquanto os participantes mais fracos eram
punidos com chicotadas.
Também houve
numerosos relatos de ataques de lobisomens – e consequentes julgamentos
judiciais – na França do século XVI. Nalguns casos havia provas claras contra
os acusados de homicídio e canibalismo, mas nenhuma associação com lobos.
Noutros, as pessoas ficaram aterrorizadas com essas criaturas, como no caso de
Gilles Garnier em Dole, em 1573, que foi condenado por ser lobisomem.
Um pico de
atenção para com à licantropia ocorreu no final do século XVI, como parte da
caça às bruxas na Europa. Vários tratados sobre lobisomens foram escritos na
França entre 1595 e 1615. Lobisomens foram avistados em 1598 em Anjou e um
lobisomem adolescente foi condenado a prisão perpétua em Bordéus em 1603. Henry
Boguet escreveu um longo capítulo sobre lobisomens em 1602. No Vaud, lobisomens
foram condenados em 1602 e 1624. Um tratado escrito por um pastor de Vaud em
1653 afirma-se, no entanto, que a licantropia é puramente uma ilusão.
Depois disso, o
único registo adicional do Vaud data de 1670: é o de um menino que alegou ter,
tanto ele como a mãe, a capacidade de se transformarem em lobos, o que não foi
levado a sério. No início do século XVII, a bruxaria foi perseguida por Jaime I
da Inglaterra, que considerava os “warwoolfes” vítimas de um delírio induzido
por “uma superabundância natural de melancolia”.
Depois de 1650,
a crença na licantropia desapareceu em grande parte da Europa de língua
francesa, como consta da “Enciclopédia", de Diderot, onde os relatos de
licantropia não são mais que um “transtorno do cérebro".
A parte da
Europa que mostrou interesse mais vigoroso pelos lobisomens depois de 1650 foi
o Sacro Império Romano-Germânico. Pelo menos nove obras sobre licantropia foram
impressas na Alemanha entre 1649 e 1679. Nos Alpes austríacos e bávaros, a
crença em lobisomens persistiu até o século XVIII. Também na nossa vizinha
Galiza, em 1853, Manuel Blanco Romasanta foi julgado e condenado como autor de
uma série de assassinatos, mas afirmou estar inocente devido à sua condição de
“lobishome”.
Isto é
corroborado pelo facto de em áreas desprovidas de lobos ocorrerem normalmente
diferentes tipos de predadores mitificados: homens-hiena na África,
homens-tigre na Índia, bem como homens-puma (‘runa uturuncu’ e homens-jaguar
(‘yaguaraté-abá’ ou ‘tigre-capiango’) na América do Sul.
O vampiro
também tinha relação com o lobisomem nos países do Leste europeu,
particularmente na Bulgária, Sérvia e Eslovênia. Na Sérvia, o lobisomem e o
vampiro são conhecidos como vulkodlak. Daí nasceu o famoso Drácula romeno.
Na sua obra,
Gerard registrou os relatos das diversas etnias que fazem parte da Transilvânia
(alemães, ciganos, húngaros, romenos, entre outros) sobre diversos aspetos da
vida na região, bem como as superstições sobre o mau-olhado, espíritos, bruxas,
vampiros (dos tipos strigoi, moroi e nosferatu) e lobisomens (representados
pelos prikolitch e pelo vârcolacve):
“O primo-irmão
do vampiro, o werwolf dos alemães, é encontrado aqui sob o nome de Prikolitsch.
Às vezes é um cão e não um lobo, cuja forma um homem assumiu, ou foi obrigado a
assumir, como penitência pelos seus pecados.
Numa aldeia
ainda se conta — e acredita-se – a história de um homem que, num domingo,
voltando para casa com a esposa, sentiu de repente que havia chegado o momento
da sua transformação. Entregou-lhe as rédeas da carruagem em que seguiam e
correu para o meio dos arbustos, onde, murmurando uma fórmula mística, deu três
cambalhotas sobre uma vala.
"Logo
depois, a mulher, que esperava em vão pelo marido, foi atacada por um cachorro
furioso, que saiu latindo do mato e conseguiu mordê-la com força e rasgar-lhe o
vestido. Quando, uma ou duas horas depois, a mulher chegou a casa depois de dar
o marido como perdido, ficou surpresa ao vê-lo a vir sorrindo ao seu encontro;
mas quando entre os dentes dele ela avistou os pedaços de seu vestido mordidos
pelo cachorro, o horror dessa descoberta a fez desmaiar."
Há referências
muito antigas ao lobisomem em Portugal. Aparece no “Rifão” de Álvaro de Brito
(Cancioneiro Geral):
"Sois danado lobisomem,
Primo d’Isac nafú;
Sois por quem disse Jesus
Preza-me ter feito homem."
(Garcia de
Resende, in “Excertos”)
É também
mencionado no “Vocabulário Português e Latino”, de Rafael Bluteau, e num soneto
de Bocage:
"Profanador do Aónio
santuário,
Lobisomem do Pindo, orneia ou
brama,
Até findar no Inferno o teu
fadário!"
(Bocage, in “Obras Escolhidas”.
No século XIX,
Alexandre Herculano escreveu sobre o lobisomem da região da Beira-Baixa:
“Os
lubis-homens são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio
de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas,
espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude
disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não
faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que têm uma cenreira mui
galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, senão dando
grandes assopros e assobios para se lhas apaguem, de modo que seria a coisa
mais fácil deste mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, acendendo luzes por
todos os lados por onde ele pudesse sair do sítio em que fosse pressentido. É
verdade que nenhum dos que contam semelhantes histórias fez a experiência. (in
“Opúsculos”).
Nos seus
estudos sobre mitologia popular, o escritor e etnógrafo Alexandre Parafita
reconhece que, embora a designação sugira tratar-se de um ser híbrido de homem
e lobo, muitas das crenças sobre esta criatura identificam-na na figura tanto
de lobo, como cavalo, burro ou bode, consistindo o seu fadário em ir despir-se
à meia-noite numa encruzilhada, espojando-se no chão, onde um animal já antes
fizera o mesmo, após o que se transforma nesse animal para ir “correr fado”.
Camilo escreve
nos “Mistérios de Lisboa”:
“A porta em que
bateu o padre Diniz comunicava para a sala em que estavam duas criadas da
duquesa, cabeceando com sono, depois que se fartaram de anotar as
excentricidades de sua ama, que, a acreditá-las, há cinco anos que cumpria
fado, espécie de Loba-mulher, ou Lobis-homem fêmea, se os há, como nós
sinceramente acreditamos.”
Pronto, por
hoje basta. Já estou a ficar com fome, como quando saí da barbearia do Sr.
Manuel Sacristão, naquela noite enluarada de lobisomens.
sábado, 19 de outubro de 2024
Bruno Amaral de Carvalho - Beirute, capital da resistência
quinta-feira, 17 de outubro de 2024
Carlos Matos Gomes - O julgamento de Ricardo Salgado — Big Show BES
quarta-feira, 16 de outubro de 2024
Miguel Esteves Cardoso - Ler às pilhas é o melhor
* Miguel Esteves Cardoso
Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de 8 livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo.
16 de Outubro de 2024
Não consigo entrar num estúdio de rádio sem pensar em livros. Aquela mesa oval,
enorme, vazia, limpíssima, com um buraco no meio, dá-me vontade de ler.
Imagino-me no buraco, em cima de uma
cadeira com rodas, a circular por dentro da mesa, cheia de pilhas e mais pilhas
de livros novinhos em folha, todos a competir pela minha atenção
É assim que está a minha sala de estar neste momento, com pilhas de livros por
toda a parte, mas sempre à mão dos sofás onde me sento.
Ainda não foram arrumados – o que, em língua livreira, significa esquecidos,
sepultados, comprimidos uns contra os outros para nunca mais poderem dançar.
Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de oito
livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que
apetece sempre mais ler o livro que está por baixo deles todos.
Mas é espantosa a quantidade de pilhas que se pode ter à volta de um sofá –
sobretudo com a cumplicidade de umas mesinhas e de uns jornais velhos dobrados,
para não serem contaminadas pelo chão.
Na leitura – se é que quer mesmo
competir com a Internet – o que conta é o acesso. Isso de uma pessoa
levantar-se estraga tudo. Quem consulta paga multa. E então quando não se
encontra o raio do livro e é preciso percorrer as prateleiras com o mandado de
busca nas mãos vazias.
O ser humano lida bem com o número
oito. É só uma meia dúzia mais dois: o ideal para uma pilha temática. O segredo
é saber fazer as pilhas, segundo os autores, ou as urgências, ou os
apetecimentos mais frequentes.
Depois, há a disposição das pilhas: a
pilha mais perto de si tem de ser um pódio – e todos os dias tem de ser
reavaliada, para ver quem merece lá ficar.
Em cada pilha, o livro de cima é o único que tem o direito de mostrar a capa.
Tem de ser muito bem escolhido, porque é esse – a preguiça é tramada – em que
mais vezes irá pegar.
Claro que as pilhas são temporárias.
São umas férias de Verão, antes de ir para o Inverno das estantes.
Colunista
Carlos Coutinho - [As clarissas em Portugal]
sexta-feira, 4 de outubro de 2024
Manuel Loff - Um ano de completa impunidade
* Manuel Loff
Até ontem, os países NATO, um após o outro, exortavam Israel a não invadir o Líbano e enviavam a este país aviões... para recolher o seu pessoal diplomático e os cidadãos que queiram e, num país onde um milhão de pessoas (uma em cada cinco) tiveram de fugir de casa, consigam sair. Mas não enviaram aviões de combate para reforçar as Forças Armadas libanesas contra o invasor israelita, como fizeram com a Ucrânia. O que vale para a Ucrânia não vale para o Líbano. Num ano inteiro não valeu para Gaza, a Cisjordânia, territórios invadidos não há dois, mas há 67 anos. Num ano morreram incomparavelmente mais civis em Gaza do que em mais de dois anos e meio na Ucrânia — e Biden e Von der Leyen pedem aos países árabes a mesma desescalada e diplomacia cujo oposto praticam intensamente há anos na Ucrânia.
É insólito este medo de uma guerra generalizada na boca de quem governa deste lado do mundo. Ontem mesmo, Biden deu as ordens necessárias para comprometer (mais ainda) os EUA nas guerras de agressão israelitas. Depois de terem justificado a chuva de mísseis sobre Beirute como uma merecida punição do Hezbollah, os EUA substituíram-se aos israelitas na interceção dos mísseis iranianos para proteger Netanyahu e os genocidas que o acompanham. E disponibilizam para a guerra os 43 mil soldados que, por vezes contra a vontade dos respetivos governos, têm na região. E assim se procura “evitar a guerra”...
A discussão da dualidade de critérios não é apenas moral. Ela tem implicações diretas nas vidas de milhões de pessoas. A dualidade mata. Em Gaza, na Cisjordânia, Israel comporta-se como um dos ocupantes mais sinistros da história, perpetrando represálias sobre a população civil em termos que reproduzem as represálias nazis sobre as populações dos países ocupados na II Guerra Mundial, ou as dos norte-americanos no Vietname, dos franceses na Argélia. Neste momento, com o fluxo imparável de material bélico ocidental, Israel dispara (e mata) em todas as direções: Irão, Síria, Iémen, e agora, sobretudo o Líbano. Por enquanto ordena deslocações de populações; depois passará diretamente às deportações, seguindo o exemplo de Gaza. Bombardeia cidades e campos de refugiados – dos milhões de palestinianos que na Nakba de 1948 expulsaram das suas casas, dos sírios que procuraram fugir da guerra que o Estado Islâmico e as guerrilhas que a Turquia (membro da NATO) e os EUA armaram em 2011.
Os EUA e Israel são há muito aquilo que no glossário imperial se tem chamado “Estados párias”: sequestros em prisões ilegais, tortura sistemática, assassinatos contrariando qualquer forma de direito, nacional ou internacional. Israel é o Estado do planeta que mais resoluções da ONU incumpre, o seu chefe de governo tem um mandado de captura internacional, ataca estruturas e instalações das agências da ONU e assassina os seus funcionários (e médicos, e jornalistas, e crianças...). E, contudo, aí estão os governos UE a proibir por “antissemitas” manifestações de solidariedade com as vítimas palestinianas e exigindo boicote e sanções a Israel.
Somos um mundo de impunidade e de desigualdade, lembrou há dias Guterres, onde muitos governos “podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou ignorar totalmente o bem-estar do seu próprio povo” e passar por cima de “decisões dos tribunais internacionais”. Não vale a pena é imaginar que a impunidade imperial dos nossos dias é nova. O que é nova é a coerência desta “necropolítica”, deste exercício do poder de “ditar quem pode e não pode viver” como “expressão máxima de soberania” (Achille Mbembe), com esta narrativa tipicamente fascista e colonial que nos fazem das guerras expansionistas de Israel. Não somente tratando os povos árabes da região como “animais humanos”, mas contando tudo nos mesmos termos socialmilitaristas com que no Brasil se narra a entrada da polícia militar numa favela ou como na imprensa nazi se falava da “bestialidade” dos ciganos, dos judeus e dos eslavos que “ameaçavam a existência da Alemanha”.
As guerras israelitas, a sua necropolítica genocida, as décadas de ocupação impune, aplaudida, justificada, dizem tudo do que é hoje o Ocidente. A nossa posição perante elas diz tudo de cada um de nós.
2 de Outubro de 2020