LEITURAS MARGINAIS
* Enrique Dans, Medium.
Na semana passada, Will Smith publicou um vídeo de um dos seus concertos, parecendo estar rodeado de fãs em êxtase, o que suscitou a dúvida imediata de que tudo aquilo tinha sido criado com recurso à IA.
Verificou-se rapidamente que a multidão era real, mas o mal já estava feito: a suspeita instala-se automaticamente assim que algo parece demasiado perfeito, demasiado polido, uma suspeita que nunca desaparecerá.
O debate não é tanto sobre se Will Smith estava a fingir, mas sim sobre o facto de termos entrado num mundo em que qualquer imagem ou vídeo pode ser imediatamente questionado. O velho ditado de que a câmara não mente já não é válido. A capacidade de criar imagens altamente realistas através de algoritmos significa que já não podemos ter a certeza de que o que vemos nas redes sociais é verdadeiro. E essa incerteza, aplicada a tudo o que vemos, tem consequências culturais, sociais e políticas de primeira ordem.
A gravação do concerto de Smith era real, mas isso pouco importa. O que emerge é a intuição de que agora duvidamos de tudo o que vemos. A questão já não é o que aconteceu, mas o que acreditamos ser possível. A dúvida é suficiente para corroer a credibilidade. (…)
Até há pouco tempo, quando olhávamos para uma fotografia espetacular de um animal, de uma paisagem ou de um acontecimento histórico, fazíamo-lo com a certeza de que por detrás dela estava alguém que tinha estado lá, que tinha visto o que agora contemplávamos através da sua objetiva. Essa mediação ligava-nos à realidade do mundo e transmitia não só informação, mas também respeito pelo trabalho, paciência e olhar do fotógrafo. Agora, porém, tudo pode ser suspeito de manipulação ou síntese digital, e essa ligação perde força.
Esta mudança tem implicações culturais, sociais e políticas. Se qualquer imagem puder ser questionada, o seu valor como prova ou como registo diminui drasticamente. (…)
A consequência é que estamos a entrar numa nova fase cultural em que a autenticidade está a tornar-se um bem escasso. Ver algo e ter a certeza de que é real tornar-se-á cada vez mais difícil e, por conseguinte, mais valioso. Ao mesmo tempo, multiplicar-se-ão as iniciativas para certificar a origem das imagens, para garantir a sua rastreabilidade, para provar que houve uma câmara, um lugar e um momento específico por detrás delas. Mas mesmo essas certificações podem ser questionadas, porque a desconfiança é contagiosa e permanente. O mundo digital ensinou-nos que qualquer mecanismo de validação acaba por encontrar a sua vulnerabilidade.
Isto levanta questões profundas. Que valor tem uma fotografia se já não a conseguimos distinguir de uma imagem gerada por uma IA? Que mérito atribuímos ao fotógrafo quando um sistema pode replicar o seu trabalho com um simples comando de teclado? A criação artística sempre se moveu num espaço entre a técnica e a visão pessoal, entre o domínio da ferramenta e a capacidade de captar o excecional. Se o excecional pode ser fabricado a pedido, o que resta então do olhar humano? Talvez, precisamente, a autenticidade, a certeza de que alguém esteve lá e testemunhou o facto. Mas essa certeza tornar-se-á cada vez mais difícil de manter. (…)
A partir de agora, sempre que olharmos para uma multidão, um rosto, um animal ou uma paisagem, uma parte da nossa mente questionar-se-á se é real ou não. E essa pergunta constante vai mudar a nossa relação com as imagens. Viveremos rodeados de maravilhas visuais, mas com a dúvida permanente de que, ao admirá-las, não estamos realmente a admirar nada mais do que a habilidade de uma máquina que criou algo que nunca existiu.
Posted by OLima at sábado, setembro 06, 2025
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