domingo, 20 de outubro de 2024

Carlos Coutinho - [Lobisomens]

* Carlos Coutinho

  NUNCA fui muito de acreditar em lendas estapafúrdias nem de ter medo de sombras ou de pios de coruja. Vendo um filme na televisão, lembrei-me agora de uma certa noite de sábado, na barbearia do Sr. Manuel Sacristão. Teria eu uns seis anitos, quando lá fui cortar o cabelo, à luz mortiça do candeeiro a petróleo que iluminava os rostos impacientes de meia dúzia de clientes à espera de vez.

Era inverno, o chão da rua tinha uma camada de neve quase de palmo que, depois, no caminho de regresso a casa, eu ia marcando com sulcos arrastados das minhas chancas de solas de pau. Quando cheguei ao Largo do Terreiro, comecei a notar que havia duas filas, paralelas e muito encostadas uma à outra, de outros sulcos, estes em forma de coração e com uma largura de quatro ou cinco centímetros. Podiam ser de cão grande, mas, como eu vinha com os ouvidos cheios de histórias assustadoras de lobos e lobisomens, foram marcas lupinas o que me pareceu ver pela rua acima, na direção da minha casa e do cemitério, lá muito para o alto.

Parei debaixo de um luar pálido e de mau augúrio, achei desmesurada a lua cheia e decidi seguir para o Largo do Cimo da Rua por um caminho alternativo que passa pelo Tapado, onde começa o urtigoso Quelho que desce para o Largo do Itreido. Estaquei ao lado da fonte de pedra para avaliar a situação posta pela fantástica corrida de um peludo lobisomem que passou à minha frente sem para mim olhar. Veio da Carreira Velha e embicou de cabeça oblíqua pela rota do cemitério.

Hoje sei que foi uma alucinação, consequência das histórias ouvidas na barbearia, provavelmente exploradas para me assustarem. Mas eu levei a coisa a sério e, quando me dispunha a voltar para a barbearia, apareceu esbaforido o meu tio Alberto que tinha ficado encarregado de me ir buscar e já não me encontrou. Justificou a sua demora não me lembro como e, quase a chegar a minha casa, disse:

– Estás mais suado que o meu peito numa tarde de verão. Tens febre?

– Não. Tenho fome. Vossemecê atrasou-se muito.

Fez-se um breve silêncio e eu perguntei:

– Alguma vez viu um lobisomem, tio?

– Eu? Nunca! E tu?

– Também não, mas na barbearia só se falava nisso.

Se eu não fosse sobrinho de um irmão da minha mãe, talvez confessasse que havia acreditado em certos pormenores inquietantes daquelas arrastadas conversas mal-intencionadas, mas a verdade é que desatámos ambos a rir, já no quinteiro que havia à frente da minha antiga casa.

Passados estes anos todos e puxado pela televisão para as crenças de antanho, fui à Internet procurar o que haveria sobre o assunto e, então, fiquei a saber que, na lúgubre barbearia que ficava por cima da loja de uma vaca leiteira e ao lado da sapataria do Sr. Lucindo, nada tinha sido inventado e que lobisomem ou licantropo (do grego λυκάνθρωπος: λύκος, lýkos, ‘lobo’ e άνθρωπος, ánthrōpos, ‘humano’) é uma pessoa capaz de se transformar num faminto lobo ou em algo semelhante a um lobo, quase sempre em inquietantes noites de lua cheia.

Tal lenda aparece nas obras de vários autores que contam a história do pugilista arcádio Damarco da Parrásia, herói olímpico, que assumiu a forma de lobo nove anos após um sacrifício a Zeus Liceu, lenda atestada pelo geógrafo Pausânias.

Também Heródoto, nas suas “Histórias”, escreveu que, de acordo com o que os citas acreditavam, os gregos estabelecidos na Cítia lhe contaram serem os Neuri, uma tribo do Nordeste, que eram todos transformados em lobos, uma vez por ano, durante vários dias, voltando seguidamente à forma humana. O historiador teve o cuidado de acrescentar que não estava convencido da veracidade dessa história, mas os moradores locais juravam que ela era verdadeira. Esta lenda também foi narrada por Pomponius Mela.

No século II a.n.e. o geógrafo grego Pausânias contou a história do rei Licaão da Arcádia, que foi transformado em lobo porque sacrificou uma criança no altar de Zeus Liceu. Na versão escrita em latim por Ovídio nas suas “Metamorfoses”, quando Zeus visitou Lacaão, disfarçado de homem comum, o visitado quis testar se ele era realmente um deus. Para tanto, matou um refém molossiano e entregou as entranhas da vítima a Zeus. Enojado, este transformou Licaão em lobo. No entanto, noutros relatos da lenda, como o da Bblioteca de Apolodoro, Zeus atacou-o, bem como aos filhos, com raios e coriscos, como como punição divina.

Esta história também é contada por Plínio, o Velho, que chama a Licaão a Demaenetus, citando Agripas. Segundo Pausânias, este não foi um acontecimento único, já muitos homens foram transformados em lobos durante os sacrifícios a Zeus Liceu. Se eles se abstivessem de comer carne de gente enquanto eram lobos, seriam restaurados com a forma humana nove anos depois, mas, se não se abstivessem, permaneceriam lobos para sempre.

Os primeiros autores cristãos também mencionaram lobisomens. Na obra “Cidade de Deus”, o bispo Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) faz um relato semelhante ao encontrado em Plínio, o Velho. Agostinho explica que "é geralmente aceite que, por certos feitiços de bruxa, os homens podem ser transformados em lobos.”

Esta metamorfose fisionómica também foi mencionada no “Capitulatum Episcopi”, atribuído, desde a sua reunião no século IV, ao Concílio da Ancira e tornou-se texto doutrinário da Igreja em relação à magia, bruxas e transformações como as dos lobisomens. Nele está escrito que “quem acredita que qualquer coisa pode ser transformada noutra espécie ou semelhança, exceto pelo próprio Deus é sem dúvida um infiel.”

Há também evidências de uma crença generalizada em lobisomens na Europa medieval. Os lobisomens foram mencionados em códigos de então, como o do Rei Canuto II da Dinamarca, cujas “Ordenações Eclesiásticas” nos informam de que esses códigos visam garantir que “o lobisomem loucamente audacioso não devaste muito, nem morda muitos dos membros do rebanho espiritual.”

Liuprando de Cremona, por sua vez, fala de um boato segundo o qual Bajan, filho de Simeão I da Bulgária, poderia usar magia para se transformar em lobo.

As obras de Agostinho de Hipona tiveram grande influência no desenvolvimento do cristianismo ocidental e foram amplamente lidas pelos clérigos do período medieval que ocasionalmente peroravam sobre lobisomens em suas obras. Exemplos famosos incluem “Werewolves of Ossory”, de Geraldo de Gales, na sua “Topographica Hibernica”, assim como em “Otia Imperiala”, de Gervase de Tilbury, ambos escritos para o público real.

Gervase revela que a crença em tais transformações (ele também menciona mulheres que se transformam em gatos e em cobras) foi difundida por toda a Europa. Usa a frase “que ita dinoscuntur”, ao discutir essas metamorfoses, que significa “é conhecido”". Escreveu na Alemanha e também diz que a transformação de homens em lobos não pode ser facilmente descartada, pois “na Inglaterra, muitas vezes vimos homens transformarem-se em lobos (“Vidimus enim frequenter in Anglia per lunationes homines in lupos mutari”).

As tradições pagãs germânicas associadas a homens-lobos persistiram por mais tempo na Era Viking escandinava. Harald I da Noruega tinha um corpo de Úfhednar, os “homens revestidos de lobo”, que são mencionados em “Vatnsdœla, Haraldskvæði! e na “Saga dos Volsungos”, parecendo-se com algumas lendas de lobisomens.

Os Úlfhednar eram lutadores semelhantes aos berserkers, embora se vestissem com peles de lobo, em vez de peles de urso, e tivessem a reputação de absorver os espíritos desses animais para aumentarem a eficácia na batalha. Úlfhednar e os berserkers estão intimamente associados ao deus nórdico Odin que deu excelente substância a Wagner para as suas óperas.

As crenças escandinavas deste período podem ter-se espalhado pela Rússia de Kiev, dando origem aos contos eslavos de lobisomens. Um príncipe bielorrusso do século XI, Vseslav de Polotsk, foi descrito como um lobisomem, capaz de se deslocar em velocidades sobre-humanas, conforme se pode ler no “Conto da Campanha de Igor”:

“Vseslav, o príncipe, julgou os homens; como príncipe, ele governou cidades; mas à noite ele rondava disfarçado de lobo. De Kiev, rondando, ele alcançou, antes da tripulação dos galos,Tmutorokan. O caminho do Grande Sol, como um lobo rondando, ele cruzou. Para ele, em Polotsk, os sinos tocavam cedo para as matinas em Santa Sofia; mas ele ouviu o toque em Kiev.”

“Ser um lobisomem” era uma acusação comum em julgamentos de bruxas ao longo da história, e apareceu até nos julgamentos de bruxas de Valais, um dos primeiros casos desse tipo, no século XV.

Na “Historia de Gentibus Septentrionalibus”, Olaus Magnus descreve uma assembleia anual de lobisomens perto da fronteira Lituânia-Curlândia. Os participantes, incluindo a nobreza lituana e lobisomens das áreas vizinhas, reniam-se para testarem a sua força, tentando saltar sobre as ruínas de uma muralha de castelo. Aqueles que conseguiam eram considerados fortes, enquanto os participantes mais fracos eram punidos com chicotadas.

Também houve numerosos relatos de ataques de lobisomens – e consequentes julgamentos judiciais – na França do século XVI. Nalguns casos havia provas claras contra os acusados de homicídio e canibalismo, mas nenhuma associação com lobos. Noutros, as pessoas ficaram aterrorizadas com essas criaturas, como no caso de Gilles Garnier em Dole, em 1573, que foi condenado por ser lobisomem.

Um pico de atenção para com à licantropia ocorreu no final do século XVI, como parte da caça às bruxas na Europa. Vários tratados sobre lobisomens foram escritos na França entre 1595 e 1615. Lobisomens foram avistados em 1598 em Anjou e um lobisomem adolescente foi condenado a prisão perpétua em Bordéus em 1603. Henry Boguet escreveu um longo capítulo sobre lobisomens em 1602. No Vaud, lobisomens foram condenados em 1602 e 1624. Um tratado escrito por um pastor de Vaud em 1653 afirma-se, no entanto, que a licantropia é puramente uma ilusão.

Depois disso, o único registo adicional do Vaud data de 1670: é o de um menino que alegou ter, tanto ele como a mãe, a capacidade de se transformarem em lobos, o que não foi levado a sério. No início do século XVII, a bruxaria foi perseguida por Jaime I da Inglaterra, que considerava os “warwoolfes” vítimas de um delírio induzido por “uma superabundância natural de melancolia”.

Depois de 1650, a crença na licantropia desapareceu em grande parte da Europa de língua francesa, como consta da “Enciclopédia", de Diderot, onde os relatos de licantropia não são mais que um “transtorno do cérebro".

A parte da Europa que mostrou interesse mais vigoroso pelos lobisomens depois de 1650 foi o Sacro Império Romano-Germânico. Pelo menos nove obras sobre licantropia foram impressas na Alemanha entre 1649 e 1679. Nos Alpes austríacos e bávaros, a crença em lobisomens persistiu até o século XVIII. Também na nossa vizinha Galiza, em 1853, Manuel Blanco Romasanta foi julgado e condenado como autor de uma série de assassinatos, mas afirmou estar inocente devido à sua condição de “lobishome”.

Isto é corroborado pelo facto de em áreas desprovidas de lobos ocorrerem normalmente diferentes tipos de predadores mitificados: homens-hiena na África, homens-tigre na Índia, bem como homens-puma (‘runa uturuncu’ e homens-jaguar (‘yaguaraté-abá’ ou ‘tigre-capiango’) na América do Sul.

O vampiro também tinha relação com o lobisomem nos países do Leste europeu, particularmente na Bulgária, Sérvia e Eslovênia. Na Sérvia, o lobisomem e o vampiro são conhecidos como vulkodlak. Daí nasceu o famoso Drácula romeno.

Na sua obra, Gerard registrou os relatos das diversas etnias que fazem parte da Transilvânia (alemães, ciganos, húngaros, romenos, entre outros) sobre diversos aspetos da vida na região, bem como as superstições sobre o mau-olhado, espíritos, bruxas, vampiros (dos tipos strigoi, moroi e nosferatu) e lobisomens (representados pelos prikolitch e pelo vârcolacve):

“O primo-irmão do vampiro, o werwolf dos alemães, é encontrado aqui sob o nome de Prikolitsch. Às vezes é um cão e não um lobo, cuja forma um homem assumiu, ou foi obrigado a assumir, como penitência pelos seus pecados.

Numa aldeia ainda se conta — e acredita-se – a história de um homem que, num domingo, voltando para casa com a esposa, sentiu de repente que havia chegado o momento da sua transformação. Entregou-lhe as rédeas da carruagem em que seguiam e correu para o meio dos arbustos, onde, murmurando uma fórmula mística, deu três cambalhotas sobre uma vala.

"Logo depois, a mulher, que esperava em vão pelo marido, foi atacada por um cachorro furioso, que saiu latindo do mato e conseguiu mordê-la com força e rasgar-lhe o vestido. Quando, uma ou duas horas depois, a mulher chegou a casa depois de dar o marido como perdido, ficou surpresa ao vê-lo a vir sorrindo ao seu encontro; mas quando entre os dentes dele ela avistou os pedaços de seu vestido mordidos pelo cachorro, o horror dessa descoberta a fez desmaiar."

Há referências muito antigas ao lobisomem em Portugal. Aparece no “Rifão” de Álvaro de Brito (Cancioneiro Geral):

"Sois danado lobisomem,

Primo d’Isac nafú;

Sois por quem disse Jesus

Preza-me ter feito homem."

(Garcia de Resende, in “Excertos”)

É também mencionado no “Vocabulário Português e Latino”, de Rafael Bluteau, e num soneto de Bocage:

"Profanador do Aónio santuário,

Lobisomem do Pindo, orneia ou brama,

Até findar no Inferno o teu fadário!"

(Bocage, in “Obras Escolhidas”.

No século XIX, Alexandre Herculano escreveu sobre o lobisomem da região da Beira-Baixa:

“Os lubis-homens são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas, espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que têm uma cenreira mui galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, senão dando grandes assopros e assobios para se lhas apaguem, de modo que seria a coisa mais fácil deste mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, acendendo luzes por todos os lados por onde ele pudesse sair do sítio em que fosse pressentido. É verdade que nenhum dos que contam semelhantes histórias fez a experiência. (in “Opúsculos”).

Nos seus estudos sobre mitologia popular, o escritor e etnógrafo Alexandre Parafita reconhece que, embora a designação sugira tratar-se de um ser híbrido de homem e lobo, muitas das crenças sobre esta criatura identificam-na na figura tanto de lobo, como cavalo, burro ou bode, consistindo o seu fadário em ir despir-se à meia-noite numa encruzilhada, espojando-se no chão, onde um animal já antes fizera o mesmo, após o que se transforma nesse animal para ir “correr fado”.

Camilo escreve nos “Mistérios de Lisboa”:

“A porta em que bateu o padre Diniz comunicava para a sala em que estavam duas criadas da duquesa, cabeceando com sono, depois que se fartaram de anotar as excentricidades de sua ama, que, a acreditá-las, há cinco anos que cumpria fado, espécie de Loba-mulher, ou Lobis-homem fêmea, se os há, como nós sinceramente acreditamos.”

Pronto, por hoje basta. Já estou a ficar com fome, como quando saí da barbearia do Sr. Manuel Sacristão, naquela noite enluarada de lobisomens.


2024 10 20

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