Era inverno, o
chão da rua tinha uma camada de neve quase de palmo que, depois, no caminho de
regresso a casa, eu ia marcando com sulcos arrastados das minhas chancas de
solas de pau. Quando cheguei ao Largo do Terreiro, comecei a notar que havia
duas filas, paralelas e muito encostadas uma à outra, de outros sulcos, estes
em forma de coração e com uma largura de quatro ou cinco centímetros. Podiam
ser de cão grande, mas, como eu vinha com os ouvidos cheios de histórias
assustadoras de lobos e lobisomens, foram marcas lupinas o que me pareceu ver
pela rua acima, na direção da minha casa e do cemitério, lá muito para o alto.
Parei debaixo
de um luar pálido e de mau augúrio, achei desmesurada a lua cheia e decidi
seguir para o Largo do Cimo da Rua por um caminho alternativo que passa pelo
Tapado, onde começa o urtigoso Quelho que desce para o Largo do Itreido.
Estaquei ao lado da fonte de pedra para avaliar a situação posta pela
fantástica corrida de um peludo lobisomem que passou à minha frente sem para
mim olhar. Veio da Carreira Velha e embicou de cabeça oblíqua pela rota do
cemitério.
Hoje sei que
foi uma alucinação, consequência das histórias ouvidas na barbearia,
provavelmente exploradas para me assustarem. Mas eu levei a coisa a sério e,
quando me dispunha a voltar para a barbearia, apareceu esbaforido o meu tio
Alberto que tinha ficado encarregado de me ir buscar e já não me encontrou.
Justificou a sua demora não me lembro como e, quase a chegar a minha casa,
disse:
– Estás mais suado que o meu
peito numa tarde de verão. Tens febre?
– Não. Tenho fome. Vossemecê
atrasou-se muito.
Fez-se um breve silêncio e eu
perguntei:
– Alguma vez viu um lobisomem,
tio?
– Eu? Nunca! E tu?
– Também não, mas na barbearia só
se falava nisso.
Se eu não fosse
sobrinho de um irmão da minha mãe, talvez confessasse que havia acreditado em
certos pormenores inquietantes daquelas arrastadas conversas mal-intencionadas,
mas a verdade é que desatámos ambos a rir, já no quinteiro que havia à frente
da minha antiga casa.
Passados estes
anos todos e puxado pela televisão para as crenças de antanho, fui à Internet
procurar o que haveria sobre o assunto e, então, fiquei a saber que, na lúgubre
barbearia que ficava por cima da loja de uma vaca leiteira e ao lado da
sapataria do Sr. Lucindo, nada tinha sido inventado e que lobisomem ou
licantropo (do grego λυκάνθρωπος: λύκος, lýkos, ‘lobo’ e άνθρωπος, ánthrōpos,
‘humano’) é uma pessoa capaz de se transformar num faminto lobo ou em algo
semelhante a um lobo, quase sempre em inquietantes noites de lua cheia.
Tal lenda
aparece nas obras de vários autores que contam a história do pugilista arcádio
Damarco da Parrásia, herói olímpico, que assumiu a forma de lobo nove anos após
um sacrifício a Zeus Liceu, lenda atestada pelo geógrafo Pausânias.
Também
Heródoto, nas suas “Histórias”, escreveu que, de acordo com o que os citas
acreditavam, os gregos estabelecidos na Cítia lhe contaram serem os Neuri, uma
tribo do Nordeste, que eram todos transformados em lobos, uma vez por ano,
durante vários dias, voltando seguidamente à forma humana. O historiador teve o
cuidado de acrescentar que não estava convencido da veracidade dessa história,
mas os moradores locais juravam que ela era verdadeira. Esta lenda também foi
narrada por Pomponius Mela.
No século II
a.n.e. o geógrafo grego Pausânias contou a história do rei Licaão da Arcádia,
que foi transformado em lobo porque sacrificou uma criança no altar de Zeus
Liceu. Na versão escrita em latim por Ovídio nas suas “Metamorfoses”, quando
Zeus visitou Lacaão, disfarçado de homem comum, o visitado quis testar se ele
era realmente um deus. Para tanto, matou um refém molossiano e entregou as
entranhas da vítima a Zeus. Enojado, este transformou Licaão em lobo. No
entanto, noutros relatos da lenda, como o da Bblioteca de Apolodoro, Zeus
atacou-o, bem como aos filhos, com raios e coriscos, como como punição divina.
Esta história
também é contada por Plínio, o Velho, que chama a Licaão a Demaenetus, citando
Agripas. Segundo Pausânias, este não foi um acontecimento único, já muitos
homens foram transformados em lobos durante os sacrifícios a Zeus Liceu. Se
eles se abstivessem de comer carne de gente enquanto eram lobos, seriam
restaurados com a forma humana nove anos depois, mas, se não se abstivessem,
permaneceriam lobos para sempre.
Os primeiros
autores cristãos também mencionaram lobisomens. Na obra “Cidade de Deus”, o
bispo Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) faz um relato semelhante ao
encontrado em Plínio, o Velho. Agostinho explica que "é geralmente aceite
que, por certos feitiços de bruxa, os homens podem ser transformados em lobos.”
Esta
metamorfose fisionómica também foi mencionada no “Capitulatum Episcopi”,
atribuído, desde a sua reunião no século IV, ao Concílio da Ancira e tornou-se
texto doutrinário da Igreja em relação à magia, bruxas e transformações como as
dos lobisomens. Nele está escrito que “quem acredita que qualquer coisa pode
ser transformada noutra espécie ou semelhança, exceto pelo próprio Deus é sem
dúvida um infiel.”
Há também
evidências de uma crença generalizada em lobisomens na Europa medieval. Os
lobisomens foram mencionados em códigos de então, como o do Rei Canuto II da
Dinamarca, cujas “Ordenações Eclesiásticas” nos informam de que esses códigos
visam garantir que “o lobisomem loucamente audacioso não devaste muito, nem
morda muitos dos membros do rebanho espiritual.”
Liuprando de
Cremona, por sua vez, fala de um boato segundo o qual Bajan, filho de Simeão I
da Bulgária, poderia usar magia para se transformar em lobo.
As obras de
Agostinho de Hipona tiveram grande influência no desenvolvimento do
cristianismo ocidental e foram amplamente lidas pelos clérigos do período
medieval que ocasionalmente peroravam sobre lobisomens em suas obras. Exemplos
famosos incluem “Werewolves of Ossory”, de Geraldo de Gales, na sua
“Topographica Hibernica”, assim como em “Otia Imperiala”, de Gervase de
Tilbury, ambos escritos para o público real.
Gervase revela
que a crença em tais transformações (ele também menciona mulheres que se
transformam em gatos e em cobras) foi difundida por toda a Europa. Usa a frase
“que ita dinoscuntur”, ao discutir essas metamorfoses, que significa “é
conhecido”". Escreveu na Alemanha e também diz que a transformação de
homens em lobos não pode ser facilmente descartada, pois “na Inglaterra, muitas
vezes vimos homens transformarem-se em lobos (“Vidimus enim frequenter in
Anglia per lunationes homines in lupos mutari”).
As tradições
pagãs germânicas associadas a homens-lobos persistiram por mais tempo na Era
Viking escandinava. Harald I da Noruega tinha um corpo de Úfhednar, os “homens
revestidos de lobo”, que são mencionados em “Vatnsdœla, Haraldskvæði! e na
“Saga dos Volsungos”, parecendo-se com algumas lendas de lobisomens.
Os Úlfhednar
eram lutadores semelhantes aos berserkers, embora se vestissem com peles de
lobo, em vez de peles de urso, e tivessem a reputação de absorver os espíritos
desses animais para aumentarem a eficácia na batalha. Úlfhednar e os berserkers
estão intimamente associados ao deus nórdico Odin que deu excelente substância
a Wagner para as suas óperas.
As crenças
escandinavas deste período podem ter-se espalhado pela Rússia de Kiev, dando
origem aos contos eslavos de lobisomens. Um príncipe bielorrusso do século XI,
Vseslav de Polotsk, foi descrito como um lobisomem, capaz de se deslocar em
velocidades sobre-humanas, conforme se pode ler no “Conto da Campanha de Igor”:
“Vseslav, o
príncipe, julgou os homens; como príncipe, ele governou cidades; mas à noite
ele rondava disfarçado de lobo. De Kiev, rondando, ele alcançou, antes da
tripulação dos galos,Tmutorokan. O caminho do Grande Sol, como um lobo
rondando, ele cruzou. Para ele, em Polotsk, os sinos tocavam cedo para as
matinas em Santa Sofia; mas ele ouviu o toque em Kiev.”
“Ser um
lobisomem” era uma acusação comum em julgamentos de bruxas ao longo da
história, e apareceu até nos julgamentos de bruxas de Valais, um dos primeiros
casos desse tipo, no século XV.
Na “Historia de
Gentibus Septentrionalibus”, Olaus Magnus descreve uma assembleia anual de
lobisomens perto da fronteira Lituânia-Curlândia. Os participantes, incluindo a
nobreza lituana e lobisomens das áreas vizinhas, reniam-se para testarem a sua
força, tentando saltar sobre as ruínas de uma muralha de castelo. Aqueles que
conseguiam eram considerados fortes, enquanto os participantes mais fracos eram
punidos com chicotadas.
Também houve
numerosos relatos de ataques de lobisomens – e consequentes julgamentos
judiciais – na França do século XVI. Nalguns casos havia provas claras contra
os acusados de homicídio e canibalismo, mas nenhuma associação com lobos.
Noutros, as pessoas ficaram aterrorizadas com essas criaturas, como no caso de
Gilles Garnier em Dole, em 1573, que foi condenado por ser lobisomem.
Um pico de
atenção para com à licantropia ocorreu no final do século XVI, como parte da
caça às bruxas na Europa. Vários tratados sobre lobisomens foram escritos na
França entre 1595 e 1615. Lobisomens foram avistados em 1598 em Anjou e um
lobisomem adolescente foi condenado a prisão perpétua em Bordéus em 1603. Henry
Boguet escreveu um longo capítulo sobre lobisomens em 1602. No Vaud, lobisomens
foram condenados em 1602 e 1624. Um tratado escrito por um pastor de Vaud em
1653 afirma-se, no entanto, que a licantropia é puramente uma ilusão.
Depois disso, o
único registo adicional do Vaud data de 1670: é o de um menino que alegou ter,
tanto ele como a mãe, a capacidade de se transformarem em lobos, o que não foi
levado a sério. No início do século XVII, a bruxaria foi perseguida por Jaime I
da Inglaterra, que considerava os “warwoolfes” vítimas de um delírio induzido
por “uma superabundância natural de melancolia”.
Depois de 1650,
a crença na licantropia desapareceu em grande parte da Europa de língua
francesa, como consta da “Enciclopédia", de Diderot, onde os relatos de
licantropia não são mais que um “transtorno do cérebro".
A parte da
Europa que mostrou interesse mais vigoroso pelos lobisomens depois de 1650 foi
o Sacro Império Romano-Germânico. Pelo menos nove obras sobre licantropia foram
impressas na Alemanha entre 1649 e 1679. Nos Alpes austríacos e bávaros, a
crença em lobisomens persistiu até o século XVIII. Também na nossa vizinha
Galiza, em 1853, Manuel Blanco Romasanta foi julgado e condenado como autor de
uma série de assassinatos, mas afirmou estar inocente devido à sua condição de
“lobishome”.
Isto é
corroborado pelo facto de em áreas desprovidas de lobos ocorrerem normalmente
diferentes tipos de predadores mitificados: homens-hiena na África,
homens-tigre na Índia, bem como homens-puma (‘runa uturuncu’ e homens-jaguar
(‘yaguaraté-abá’ ou ‘tigre-capiango’) na América do Sul.
O vampiro
também tinha relação com o lobisomem nos países do Leste europeu,
particularmente na Bulgária, Sérvia e Eslovênia. Na Sérvia, o lobisomem e o
vampiro são conhecidos como vulkodlak. Daí nasceu o famoso Drácula romeno.
Na sua obra,
Gerard registrou os relatos das diversas etnias que fazem parte da Transilvânia
(alemães, ciganos, húngaros, romenos, entre outros) sobre diversos aspetos da
vida na região, bem como as superstições sobre o mau-olhado, espíritos, bruxas,
vampiros (dos tipos strigoi, moroi e nosferatu) e lobisomens (representados
pelos prikolitch e pelo vârcolacve):
“O primo-irmão
do vampiro, o werwolf dos alemães, é encontrado aqui sob o nome de Prikolitsch.
Às vezes é um cão e não um lobo, cuja forma um homem assumiu, ou foi obrigado a
assumir, como penitência pelos seus pecados.
Numa aldeia
ainda se conta — e acredita-se – a história de um homem que, num domingo,
voltando para casa com a esposa, sentiu de repente que havia chegado o momento
da sua transformação. Entregou-lhe as rédeas da carruagem em que seguiam e
correu para o meio dos arbustos, onde, murmurando uma fórmula mística, deu três
cambalhotas sobre uma vala.
"Logo
depois, a mulher, que esperava em vão pelo marido, foi atacada por um cachorro
furioso, que saiu latindo do mato e conseguiu mordê-la com força e rasgar-lhe o
vestido. Quando, uma ou duas horas depois, a mulher chegou a casa depois de dar
o marido como perdido, ficou surpresa ao vê-lo a vir sorrindo ao seu encontro;
mas quando entre os dentes dele ela avistou os pedaços de seu vestido mordidos
pelo cachorro, o horror dessa descoberta a fez desmaiar."
Há referências
muito antigas ao lobisomem em Portugal. Aparece no “Rifão” de Álvaro de Brito
(Cancioneiro Geral):
"Sois danado lobisomem,
Primo d’Isac nafú;
Sois por quem disse Jesus
Preza-me ter feito homem."
(Garcia de
Resende, in “Excertos”)
É também
mencionado no “Vocabulário Português e Latino”, de Rafael Bluteau, e num soneto
de Bocage:
"Profanador do Aónio
santuário,
Lobisomem do Pindo, orneia ou
brama,
Até findar no Inferno o teu
fadário!"
(Bocage, in “Obras Escolhidas”.
No século XIX,
Alexandre Herculano escreveu sobre o lobisomem da região da Beira-Baixa:
“Os
lubis-homens são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio
de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas,
espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude
disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não
faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que têm uma cenreira mui
galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, senão dando
grandes assopros e assobios para se lhas apaguem, de modo que seria a coisa
mais fácil deste mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, acendendo luzes por
todos os lados por onde ele pudesse sair do sítio em que fosse pressentido. É
verdade que nenhum dos que contam semelhantes histórias fez a experiência. (in
“Opúsculos”).
Nos seus
estudos sobre mitologia popular, o escritor e etnógrafo Alexandre Parafita
reconhece que, embora a designação sugira tratar-se de um ser híbrido de homem
e lobo, muitas das crenças sobre esta criatura identificam-na na figura tanto
de lobo, como cavalo, burro ou bode, consistindo o seu fadário em ir despir-se
à meia-noite numa encruzilhada, espojando-se no chão, onde um animal já antes
fizera o mesmo, após o que se transforma nesse animal para ir “correr fado”.
Camilo escreve
nos “Mistérios de Lisboa”:
“A porta em que
bateu o padre Diniz comunicava para a sala em que estavam duas criadas da
duquesa, cabeceando com sono, depois que se fartaram de anotar as
excentricidades de sua ama, que, a acreditá-las, há cinco anos que cumpria
fado, espécie de Loba-mulher, ou Lobis-homem fêmea, se os há, como nós
sinceramente acreditamos.”
Pronto, por
hoje basta. Já estou a ficar com fome, como quando saí da barbearia do Sr.
Manuel Sacristão, naquela noite enluarada de lobisomens.
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