* Alexandra Lucas Coelho
"1. Eu estava a dormir num prédio de Gaza quando o soldado israelita Gilad Shalit foi feito refém, na madrugada de 25 de Junho de 2006. Combatentes palestinianos, do Hamas e não só, penetraram em Israel por um túnel de meio quilómetro junto a Rafah, atacaram um posto militar, mataram dois soldados, feriram quatro e voltaram com Shalit. Quando acordámos, toda a gente sabia o que aí vinha: Gaza ia ser bombardeada (crónica desses dias no arquivo do PÚBLICO). O que ninguém podia prever, claro, é que o refém Shalit sairia o mais caro de sempre ao Estado judaico. E seria o começo de uma história que de certa forma só acabou esta semana, quando soldados comuns, uma geração depois de Shalit, mataram por acaso o actual Inimigo nº1 de Israel: Yahya Sinwar. O cérebro do 7 de Outubro, aquele a que Netanyahu chama a encarnação do mal. E que o próprio Netanyahu tirou da prisão perpétua. Porque Sinwar foi um dos 1000 prisioneiros palestinianos trocados pelo soldado Shalit em 2011, acordo que hoje parece mirabolante, se pensarmos em tudo o que Netanyahu não fez para libertar os reféns do 7 de Outubro.
2. Nesse Junho de 2006, entre o rapto do soldado e o castigo a caminho, fui às barricadas que a população de Gaza erguia para atrasar a investida terrestre. Lá estava um beduíno que me descreveu com detalhe como na madrugada do rapto dormia na sua tenda quando foi acordado por carros com militantes armados na direcção de Israel. Depois ouvira explosões e tiros, e depois vira os militantes a voltarem, arrastando um ferido. Apontaram uma arma ao beduíno para o enxotar. O ferido seria Shalit.
Esse raide contra o posto israelita era uma resposta: semanas antes, Israel executara o líder da Jihad Islâmica, e explosões israelitas numa praia do norte de Gaza tinham feito oito vítimas civis, sete das quais da mesma família. Os executores do raide eram militantes da ala militar do Hamas, dos Comités de Resistência Popular e de um desconhecido Exército do Islão. Em comunicado conjunto pediam a libertação das mulheres e jovens até 18 anos presos nas cadeias de Israel.
Mas anos depois, quando o acordo foi feito, e Shalit trocado pelos 1000, entre os libertados havia barbas rijas, até grisalhas. Como a de Sinwar, que passara 22 anos na cadeia. Pensem em 22 anos da vossa vida. Na vida de Sinwar, 22 anos a aprender hebraico, estudar história, conhecer por dentro o inimigo. Inimigo desde antes de nascer e para além da morte.
Porque Sinwar se tornou o Inimigo nº1 de Israel a 7 de Outubro, mas Israel já era o Inimigo nº1 de Sinwar havia 75 anos. Ele herda a resistência ao nascer, e vai deixá-la em herança muito mais feroz. Implacável, a começar pelos traidores internos. As condenações que o levaram à cadeia incluem execuções de palestinianos colaboradores ou suspeitos. E os israelitas que o interrogaram na prisão lembram um homem sem qualquer medo, que ameaçava os seus carrascos ali mesmo, sendo prisioneiro.
O que também ajuda a entender porque não é possível resumir — ou destruir — o Hamas como um grupo terrorista. E como o Hamas cresceu perante 1) uma Autoridade Palestiniana minada por corruptos 2) um Estado cada vez mais ocupante, a quem convinha um inimigo como o Hamas 3) um Ocidente (ou Norte Global) que abandonou os palestinianos desde 1948, depois de a Europa, a mais antiga das anti-semitas, ter ajudado a criar Israel.
Esse mesmo Ocidente que agora se escuda com o Hamas para não ver, e tentar que não se veja, a sua própria ignomínia. Como se a crueldade do que aconteceu a 7 de Outubro fosse o início e não o fim de um status quo que nunca devia ter existido. O ferro do Hamas queimou Israel até ao osso. E os líderes ocidentais tapam o seu próprio crime contínuo com o Hamas. Tal como toda a gente que não quer ver Gaza (ou o Líbano). Mas o Hamas não é o vosso escudo humano. Sinwar não é o vosso monstro. Não vai fazer esse papel. Não vai tapar o abismo aqui. O nosso.
A verdade são várias, paralelas, não se excluem. O Hamas fortaleceu-se por ser incorruptível, dar a vida à causa e sendo implacável. É um movimento religioso, de resistência nacional, que encara todos os meios como legítimos para a sua visão da libertação da Palestina, incluindo terrorismo contra civis. E, sim, desfez-se de opositores internos, de "imorais", homossexuais. Torturou não-alinhados, denunciados ou suspeitos. Incluindo, como contei várias vezes, o palestiniano de Gaza que foi meu tradutor e guia em dezenas de reportagens para este jornal, ao longo dos anos. Cuja casa de família eu partilhava quando o soldado Shalit foi raptado naquela madrugada que de certa forma foi o ovo do 7 de Outubro.
3. Uma das primeiras memórias que tenho de entrevistar alguém do Hamas em Gaza, durante a Segunda Intifada, é a de um porta-voz que chegou com um daqueles pequenos telefones tipo Nokia que todos usávamos na altura. Antes mesmo de se sentar tirou a bateria para não ser localizado. Estávamos numa esplanada, vários membros do Hamas eram relativamente acessíveis, mas não me lembro de não haver precauções deste género. Quando eu aterrei no assunto já eles tinham toda uma linhagem de assassinados. Depois, ao longo dos anos, conheci muitos membros do Hamas, homens e mulheres, e alguns dos líderes, incluindo Mahmoud Zahar, que me lembro de entrevistar em casa, ou Ismail Hanyieh. Sobretudo durante a campanha para as eleições de Janeiro de 2006, as únicas a que o Hamas concorreu, e que ganhou de forma limpa.
Sinwar não existia nesse quotidiano porque estava preso. Só foi libertado em 2011, quando eu era correspondente no Brasil, e só se tornou líder anos mais tarde. Nunca o vi, que me lembre.
Ficará para a história como o homem que infligiu a Israel o maior golpe de sempre, e não vai ser fácil substituí-lo. Não seria eu a lamentar a extinção do Hamas (ou de qualquer partido ou regime teocrático). Mas não vai acontecer. Pelo menos não tão cedo.
4. Depois de confirmar a morte de Sinwar, Israel divulgou o vídeo de um drone que supostamente filma os últimos minutos do líder do Hamas. Um homem de cara coberta está sentado no meio de um andar bombardeado, mão direita talvez amputada. Ao reparar no drone, pega num pau com a mão que sobra e atira-o contra a câmara. Não sei se é Sinwar. Mas há algo naquela imagem que é Sinwar e é o Hamas, tanto quanto o Hamas é uma ideia sem fim de resistência, enquanto estiver lá o que mantém um povo inteiro refém. Não certamente a minha ideia. Não a ideia de tantos e tantos palestinianos. Mas uma ideia verdadeira para muitos. E que muitos outros adoptaram porque mais ninguém estava lá, para lutar com eles, por eles. Infelizmente. Tal como infelizmente a defesa internacional da Palestina é reclamada por um regime tão odioso como o Irão. Não por responsabilidade dos palestinianos, mas pela derrocada moral das democracias selectivas: as nossas.
Houve a Intifada das pedras e a Intifada das bombas suicidas, e passaram décadas. Os palestinianos perderam o passado há 76 anos, perdem o presente há 76 anos, e, mais rápido do que tínhamos visto em qualquer guerra, já perderam uma parte do futuro próximo desde 7 de Outubro. Todas aquelas crianças que continuamos a ver nos nossos telefones a serem desfeitas. E ainda assim há quem se incomode não com a continuação do holocausto, mas com o facto de se continuar a falar dele. Na verdade é simples, ou devia ser: o assunto não muda porque o assunto não mudou. E não mudará, enquanto Israel ganhar a vida à custa da morte da Palestina (ou do Líbano). E assim perder definitivamente a guerra. O futuro."
in "Público" de 19/10/2024
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