Costa ajusta
contas com Marcelo em prefácio de novo livro: “Legitimidade reforçada do PR em
nada tem contribuído para a estabilidade”
Rita Dinis, Jornalista
“Éramos felizes e não sabíamos”, chegou a
dizer Marcelo sobre a coabitação com Costa. No prefácio do livro “Que
Presidente da República para Portugal?”, de Vital Moreira, o
ex-primeiro-ministro defende como o PR deve ser um mediador e promotor de
consensos – coisa que, escreve Costa, Marcelo não foi, a não ser na pandemia
Num sistema de
governo parlamentar (e não semipresidencialista) como é o português, o
Presidente da República deve ter uma função "essencialmente
moderadora", como "garante do regular funcionamento das
instituições", deve ser promotor de "acordos de regime", deve
ter um "sábio uso da gravitas da palavra" e deve
usar a sua "autoridade política para prevenir crises e mobilizar consensos
políticos e sociais". Mas não é isso que tem acontecido, conclui o
ex-primeiro-ministro e atual presidente do Conselho Europeu, António Costa, no
prefácio do novo livro , com o título "Que Presidente da República
para Portugal? - Contra a tentação presidencialista", do
constitucionalista Vital Moreira.
Prova disso,
escreve, são as dez dissoluções da Assembleia da República que
aconteceram nos últimos 25 governos do regime democrático, incluindo
em contextos de maioria absoluta, como foi o caso do seu último governo.
"Vinte e cinco governos e dez dissoluções da Assembleia
da República em 50 anos confirmam que a legitimidade eleitoral
reforçada do PR em nada contribuiu para a estabilidade, antes pelo contrário",
considera António Costa, lembrando que "todos os presidentes utilizaram no
segundo mandato" essa legitimidade reforçada para "confrontar a
solução de governo existente, mesmo que dispondo de maioria na AR".
António Costa,
recorde-se, viu a Assembleia da República ser dissolvida por duas vezes às mãos
de Marcelo Rebelo de Sousa, provocando a queda de dois dos seus governos e a
consequente ida a eleições. A primeira aconteceu em outubro de 2021, aquando do
chumbo do Orçamento do Estado para 2022, e resultou na maioria absoluta do PS;
a segunda aconteceu em novembro de 2023, depois de António Costa ter
apresentado a sua demissão como primeiro-ministro na sequência do comunicado da
PGR que o visava na investigação judicial da Operação Influencer. Nessa altura,
Costa alegou que o PS dispunha de maioria absoluta no Parlamento, pelo que
deveria nomear um novo primeiro-ministro, mas Marcelo entendeu que a maioria
absoluta do PS estava personalizada na figura de António Costa e, caindo um,
caía o outro também. É essa espinha que está entalada: logo na altura, o então
líder do PS considerou que tinha faltado "bom senso" ao Presidente .
Depois disso,
Marcelo, que foi eleito em 2016 com 52% dos votos, e reeleito em 2021 com uns
esmagadores 60%, ainda usaria mais uma vez o poder de dissolução, depois de
Luís Montenegro ter visto uma moção de confiança rejeitada pelo Parlamento, na
sequência da investigação à empresa familiar de Luís Montenegro, que levou ao
reforço da votação do PSD nas urnas.
No prefácio do
livro sobre os poderes do Presidente da República da autoria do
constitucionalista e ex-deputado do PS Vital Moreira, Costa começa por
sublinhar que não está em causa qualquer recuo no modo de eleição direta do
Presidente da República, consagrado na Constituição, mas não deixa de
realçar que essa forma de eleição direta - que reforça a legitimidade
eleitoral do Presidente, na medida em que é eleito com a maioria dos votos dos
portugueses - não tem sido sinónimo de estabilidade, nem sequer de
acordos de regime ou de prevenção de crises.
Costa até pega
no exemplo italiano e alemão, onde o PR é eleito de forma indireta, para dizer
que não só não é por isso que aqueles Presidentes têm a autoridade beliscada,
como até se verifica que há, naqueles casos, um "reforço do seu papel
verdadeiramente moderador".
Segundo o
ex-primeiro-ministro, raros foram os Presidentes que conseguiram promover
verdadeiros acordos de regime, devendo esse mérito ser concedido aos partidos
do regime, PS e PSD. "Os verdadeiros acordos de regime, na
política externa, na defesa nacional ou na integração europeia, foram mais
fruto da coincidência de posições políticas do PS e PSD, consolidada pela
força centrípeta da NATO e da UE, do que da ação de qualquer presidente",
escreve, enumerando aquilo que diz terem sido "exceções" a este
entendimento.
"A
legitimidade conferida pela eleição direta do PR não se traduziu, nos
sucessivos mandatos presidenciais, na autoridade política para prevenir crises
e mobilizar consensos políticos e sociais. As exceções que confirmam a regra
são raras", escreve, dando como "poucos exemplos que a memória
regista" os casos de Mário Soares e a sua "magistratura de
influência" na mobilização do programa de erradicação das barracas nas
áreas metropolitanas; o caso de Jorge Sampaio na defesa da causa de Timor ou
até o caso de Cavaco Silva na mediação da crise do "irrevogável" que
salvou a coligação de Passos Coelho. Sobre Marcelo Rebelo de Sousa - o
Presidente com o qual coabitoudurante a quase totalidade do seu tempo como
primeiro-ministro - Costa identifica a sua "valiosa ação pedagógica
durante a pandemia da Covid-19". Ou seja, em tudo o resto,
Marcelo não soube mediar consensos nem prevenir crises, e o carimbo das três
dissoluções ajudam a ilustrá-lo.
Dissolução
só com maioria alternativa
No livro, Vital
Moreira, também autor do blogue Causa Nossa, que tem sido muito crítico dos
mandatos de Marcelo Rebelo de Sousa, defende duas propostas de alteração
constitucional que vão no sentido de conferir maior centralidade ao Parlamento
num sistema de governo que é parlamentar: uma delas é a necessidade de
o programa de Governo ser votado e aprovado na Assembleia
da República (atualmente só tem de ser discutide e a votação só ocorre se algum
partido o propuser); a outra é a consagração da figura da moção de
censura construtiva, há muito defendida por António Costa.
A combinação
destas duas alterações, no entender de Costa, "reforçaria de modo
inequívoco o parlamento como fonte da legitimidade do governo, que perante si
responde politicamente". Por outras palavras, o ex-primeiro-ministro
lembra que o Governo responde perante o Parlamento e não perante o Presidente
da República.
Segundo Costa,
estas alterações são sobretudo necessárias num contexto em que a crescente fragmentação
parlamentar faz com que seja cada vez mais difícil haver maiorias
absolutas de um só partido (o governo que encabeçou em 2022/2023 era uma
raridade ao nível europeu), e num contexto em que facilmente se formam aquilo a
que Costa chama de "maiorias artificiais".
"A
criação de maiorias artificiais por via de mudanças no sistema eleitoral é
altamente penalizador da representatividade democrática. É, por isso,
necessário incentivar o diálogo parlamentar, uma cultura de compromisso que
assegure o necessário apoio parlamentar para a execução de um programa de
governo", escreve, defendendo que o programa de governo ganhe aqui uma
nova centralidade no momento de o PR decidir a dissolução da Assembleia da
República "por proposta do primeiro-ministro".
Paralelamente,
com a figura da moção de censura construtiva, defendida por Vital Moreira e
secundada por António Costa, o derrube do governo via Parlamento só
passaria a ser possível "mediante a designação por maioria de um novo
primeiro-ministro acompanhado do respetivo programa de governo".
Ou seja, o derrube do governo por parte dos partidos com representação
parlamentar só passaria a ser possível se esses mesmos partidos tivessem uma
solução alternativa. Isto evitaria "os riscos de um parlamentarismo
disfuncional" e evitaria as situações de impasse em que o Governo cai por
falta de apoio parlamentar, mas, não havendo alternativa naquele quadro
parlamentar, é preciso convocar novas eleições.
Neste sentido,
Vital Moreira defende também que a Assembleia da República deve ser dissolvida
quando é incapaz de fazer aprovar um programa de governo e quando não é capaz
de aprovar um Orçamento do Estado - coisa que, na prática, aconteceu sob a
batuta de Marcelo, mas que, a menos de três meses das eleições presidenciais,
não é o entendimento partilhado por todos os candidatos. Sobre o
Orçamento do Estado e o seu papel, Costa sugere uma "dessacralização"
do Orçamento tal como a que Luís Montenegro fez com a proposta para 2026: em vez de ser visto como uma espécie de
moção anual de confiança ou censura ao Governo, deve ser um "mero
instrumento de execução obrigatória dos atos legislativos vigentes",
derivado da lei de enquadramento orçamental.
Ainda sobre
Marcelo Rebelo de Sousa e o entendimento que fez - e faz - do seu mandato
presidencial, António Costa deixa a dúvida: terá Marcelo abdicado do
"sábio uso da gravitas da palavra", como
sucessivamente lhe apontou Vital Moreira, por ser esse o seu entendimento da
função presidencial, ou terá sido por causa das circunstâncias do "novo
ecossistema comunicacional" dominado pelo peso das redes sociais? "Poderá
um PR diretamente eleito pelos cidadãos regressar ao sábio uso da gravitas da
palavra, ou o novo ecossistema comunicacional desenhou um novo espaço
público onde tal não é possível?", questiona.
E deixa ainda
outra pergunta no ar, à atenção dos candidatos presidenciais que concorrem para
a sucessão de Marcelo: Como é possível compatibilizar a
"omnipresença" do PR com um sistema em que é ao governo que cabe a
direção política do país, e onde o governo responde "perante a AR e não
perante o PR"? É a pergunta para um milhão de euros que Costa e
Marcelo parecem não ter sabido responder nos últimos oito anos e que António
Costa deixa agora ao próximo Presidente da República - para refletir.
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