domingo, 22 de setembro de 2024

José Gameiro - Os pais não são amigos dos filhos

* José Gameiro

Psiquiatra e piloto

Seria impensável há poucas gerações que os filhos comentassem opções amorosas ou de outro tipo, dos pais
 
19 setembro 2024 

Otítulo pode parecer chocante, para os que pensam que o papel e a responsabilidade dos pais é serem solidários, compreensivos, educadores, cuidadores dos seus filhos. Sem dúvida que quase todos somos, fazemos tudo por eles, sofremos quando eles sofrem, apoiamos quando mais ninguém é capaz de o fazer.

Mas a relação dos pais com os filhos tem evoluído. Na infância nada de muito substancial terá mudado, a mais significativa alteração é a muito maior responsabilização dos homens. Os estereótipos clássicos, figura afetuosa e figura de autoridade, tendem a esbater-se, de uma forma em que os dois papéis se confundem e são solidários entre si.

O papel da família enquanto fonte de modelos relacionais, de transmissão de valores, até de endogamia social, tem vindo a sofrer uma notável mudança, em que outros atores podem ser de grande importância. Quantas vezes queremos falar com os filhos sobre questões mais sensíveis, como a questão sexual, e ouvimos, já sei tudo. Relações sexuais, cuidados a ter, preservativos, pílula do dia seguinte e outras tretas, como eles, por vezes, nos dizem.

Posso estar a ser injusto ou exagerado, mas instalou-se, nalgumas famílias, um novo paradigma. Os pais e os filhos são amigos. Esta relação pressupõe que são iguais, falam de igual para igual, tentando que desapareça, não a autoridade, que naturalmente na vida adulta dos filhos já quase não existe, mas que seja uma relação em que nos aceitamos uns aos outros, tal como os amigos fazem, sem críticas, sem remoques, com total abertura de todas as confidências.

Seria impensável há poucas gerações que os filhos comentassem opções amorosas ou de outro tipo, dos pais. Atualmente, qualquer comentário sobre um genro ou uma nora, feito discretamente, a casa vem abaixo. A própria relação dos avós com os netos é frequentemente condicionada e vigiada. No entanto, os filhos permitem-se opinar sobre estilos de vida e outras formas de estar dos pais, como se estivessem numa roda de amigos e dissessem, mas tu és parvo ou quê?

Há pais que vão atrás disto. Engolem sapos, em nome da paz familiar, encostando-se cada vez mais às tábuas, desculpem-me a imagem tauromáquica. Os que o fazem, ou decidem que passaram a ser amigos dos filhos, ou foram obrigados a prescindir de um valor secular, a responsabilidade, até à morte, de mostrarem os valores que têm, mesmo que aceitem que tudo mudou e nada era como dantes. É esta confusão entre culturas geracionais e desrespeito por uma autoridade, sempre discutível, mas necessária, que tem feito com que, por vezes, vemos famílias em que não conseguimos reconhecer os laços de sangue. Exagerado, com certeza.  

Quando num casal acontece um divórcio e a constituição de uma nova relação, o receio de alguns dos futuros “nubentes” acerca da reação dos filhos pode ser assustadora, como se os filhos tivessem qualquer direito de opinar sobre as escolhas amorosas dos pais. Se numa roda de amigos, podemos dizer, eh pá, vais viver com essa gaja ou com esse gajo, que disparate, fazer o mesmo em relação aos pais é considerar que o à vontade, à vontadinha, como agora se diz, é completo.

Podem pensar e bem, que isto é conversa de velho. Mas não é só. Confundir filhos adultos, com direito à sua vida e as suas opções, com amigos, pode ser mais prático e calmo do que manter a hierarquia, mas não se esqueçam que eles são nossos filhos e que, em situações limite, não nos querem como amigos, querem-nos como pais.

https://expresso.pt/opiniao/2024-09-19-os-pais-nao-sao-amigos-dos-filhos-2b013641

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