JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA
Contra
a possibilidade de loucos atingirem o poder e contra "a fúria revisionista
que assalta pelos extremos", a escritora e conselheira de Estado Lídia
Jorge dedicou o discurso que proferiu no âmbito das celebrações do Dia de
Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas a uma condenação do racismo,
da escravatura e da cultura da mediocridade. Para ler aqui na íntegra
10.06.2025 às 21h48
Lídia Jorge,
conselheira de Estado falava enquanto presidente da Comissão Organizadora das
Comemorações do 10 de Junho, em Lagos, num discurso que antecedeu o do chefe de
Estado, Marcelo Rebelo de Sousa.
Na sua
intervenção, com cerca de 30 minutos, citou Shakespeare, Camões e Cervantes,
“três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras
enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e
subvertam todas as regras da boa convivência”.
O discurso na
íntegra
“Os países
escolhem datas de referência para celebrarem a sua história, contemplando
memórias de batalhas, ações de independência, encontros civilizacionais,
momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e
promovem o orgulho patriótico.
Mas, em
Portugal, é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico
de unidade mais relevante.
Muito se tem
discorrido sobre o significado desta nossa singularidade e, muitas vezes, é
difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu
oposto.
Há a assunção
de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por
ser adotada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo e que a
própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso
português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação
prometeica sobre a terra.
A fidelidade
que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens
remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade
que os portugueses que se encontram longe mantêm com a sua cultura de origem.
O país
retribui-lhes, reconhecendo, desde há muito, que as comunidades portuguesas são
o corpo essencial do nosso ser identitário.
Mas as
celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar,
porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado, foi cidade
anfitriã em 1996.
Passados 29
anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera.
O que mudou e
o que justifica que, de novo, tenha sido escolhida para ser palco das
celebrações foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar
obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos
séculos.
É sabido que
Lagos, lugar de saída para a África e lugar do comércio prático, tem como
símbolo complementar o Promontório de Sagres.
A escassos 40
quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma
dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação.
A comunicação
digital que se afirmou a partir dos anos 90 permite agora uma divulgação ampla
dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar
neste espaço geográfico designado por Terras do Infante.
Era a altura
de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade vencedora e de apoiar estas
celebrações de importância ou de interesse cultural.
Mas há outro
motivo para que, este ano, a celebração deste dia seja particular. Desde há
dois anos que estamos a invocar o nascimento de Camões, ocorrido há 500 anos,
presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a
pena refletir sobre o facto, pois, tal como não sabemos como decorreu a sua
infância, nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o
poeta nasceu.
Para sermos
justos sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um certo maestro
célebre disse de Beethoven: Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu. Nunca
mais morreu.
Provam-no a
forma como, passados cinco séculos, tem sido revisitado ao longo destes dois
últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das
artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie
de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior.
Novos autores
têm surgido, atualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento
acumulado em torno da vida de Camões.
O jovem
ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que
Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo que
resultaria definitivamente na Língua Portuguesa moderna que hoje usamos.
Demonstrou
como a língua portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva
que devemos ao grande cantor do Oceano, como lhe chamou Baltasar Estaço.
Por sua vez, a
biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente, profusamente documentada que faz
à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os
últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos
da sua vida, afinal, não são lendas, são verdades.
O receio de
sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a
mim, não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o
comentário que Frei José Índio redigiu na margem de um exemplar d’Os Lusíadas,
presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o
frade: Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa sem tener uma sábana com
que cobrisse, despues de haver navegado 5.500 léguas per mar.
Assim foi, sem
um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sábana, já depois
de morto.
Não me parece
que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos
sobre a vida humana e seu mistério, isso, talvez.
Entretanto,
por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido
escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi.
Hélder Macedo,
um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que, se
Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de
escrever um verso. Essa hipérbole é linda.
Assim como é
reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças
epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões, como se fossem filos modernos,
feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente
enamorados do seu poeta maior.
Mas se o
patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor
conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e
teológico, como é em “Sôbolos rios que vão”, e o poeta dos longos versos
enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses
versos, escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a
compreender que os tempos duros que atravessamos têm conformidade com os tempos
em que o próprio viveu.
Camões, tal
como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo e, sobre
a consciência dessa mudança, no conjunto das 1.102 oitavas que compõem Os
Lusíadas, 22 delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então.
Aliás, hoje é
ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género, o paradoxo
de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado da
criação do Império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que,
passados 50 anos, impediam a manutenção desse mesmo Império.
E nesse campo
pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o dia de
Portugal seja o dia de Camões, expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto
dos poderes que elogia.
É bom lembrar
que, entre os séculos XVI e XVII, três dos maiores escritores europeus de
sempre coincidiram no tempo apenas durante 16 anos e, no entanto, os três
desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram
testemunhas.
Foram eles
Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência,
procederam à anatomia dos dilemas humanos e, entre eles, os mecanismos
universais do poder, corpus que continua válido e intacto até
aos nossos dias: sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, o
poder temeroso e o poder laxista.
No caso de
Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da
história para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então?
Queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse e sede imiga/Do
dinheiro, que a tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários aspetos da
degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado um
mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer cultura. Mais
do que isso, queixava-se da subversão do pensamento, queixava-se da falta de
seriedade intelectual, que resultava depois, na prática, na degradação dos atos
do dia a dia.
Escreve o
poeta no final do canto oitavo: “Este deprava às vezes as ciências,/ Os
juízos cegando e as consciências./ Este interpreta mais que sutilmente/ Os
textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a gente/E mil
vezes tiranos torna os Reis”.
Na verdade,
Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da
dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios que viveram.
Por essa
altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam
entre si pelo domínio do globo terrestre. Ou mais concretamente, dizia-se então
que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a terra ao pescoço
como se fosse um berloque.
Os três
autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras
enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e
subvertam todas as regras da boa convivência.
Escreveu
Shakespeare no ato IV do Rei Lear: “É uma infelicidade da época que os
loucos guiem os cegos”.
Enquanto isso,
Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de La Mancha, que até
hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido.
Por seu lado,
Camões, no corpo d’Os Lusíadas, não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe
demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas, em
resultado dela, da loucura. O desastre de Alcácer-Quibir, ocorrido em 1578,
estava assinalado numa das últimas estrofes do Canto X. Era a história, como
sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela literatura.
No entanto, o
fim do ciclo, que neste caso aqui interessa, não é mais uma transição
localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa.
Nos dias que
correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala
global. Porque nós, agora, somos outros.
Deslocamo-nos
à velocidade dos meteoros e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam
para o espaço.
Mas alguma
coisa desse outro fim de século, que se seguiu ao tempo da Renascença
malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente,
aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos
ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada
por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um
berloque.
E os cidadãos
são apenas público, que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma
razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus
ídolos são fantasmas.
É contra isso
e por isso que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o
nome de um poeta por patrono. Por isso mesmo, também vale a pena regressar a
Lagos.
Sobre estes
areais, aconteceram momentos decisivos para o mundo.
No início da
Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa
que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta
do Infante austero que sonhou com o achamento de ilhas e outros descobrimentos,
como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência
férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como
criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e
depois se entornou pela terra inteira e a lenda coloca-o a meditar em Sagres.
Numa
referência um tanto imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu:
“Ali vimos a veemência do visível/ o aparecer total exposto inteiro/ e
aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ era o verdadeiro”.
Esta ideia de
que, na mente do Infante, se processou uma epifania, anda-lhe associada
enquanto mentor de uma equipa mais ou menos informal que teve a capacidade de
motivar e dirigir. Sagres passou, assim, para a história e para a mitologia
como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo.
Mas existe uma
outra perspetiva, como é sabido, e hoje em dia o discurso público que prevalece
é, sem dúvida, sobre o pecado dos Descobrimentos e não sobre a dimensão da sua
grandeza transformadora.
É verdade que
a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os
vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma estratégia de
submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na
atualidade.
É preciso
sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um
processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade.
O que sempre
se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de
intensidade.
E é
indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de
escravização longo e doloroso.
Lagos,
precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos
Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.
Falo com o
sentido justo da reposição da verdade e do remorso pelo facto de que se ter
inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, como polos de
abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de
exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros
países europeus até ao final do século XIX.
Lagos expõe a
memória desse remorso. Mostra como, num dia de agosto de calor tórrido de 1444,
desembarcaram aqui 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia e como
foram repartidos e por quem.
Alguém que,
muito prezamos, encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de
46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o próprio Infante
D.Henrique.
Lagos não se
furta a expor essa verdade histórica.
Lagos também
mostra o local onde depois levas sucessivas iriam ser mercadejados os escravos.
E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo quando morriam sem um
pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo de Lagos os
restos mortais de 158 indivíduos de etnia Banta.
Lagos mostra
esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos
aqui,no dia de hoje.
Aliás, a
UNESCO criou a Rota do Escravo e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura, para
que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se
fundamentam em religiões fundadas sob os princípios do amor e sob a lei dos
direitos humanos.
Lagos mostra
esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio
moderno o pedido solene: Homens não se matem uns aos outros.
É verdade que
só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de agosto de 1444 porque o cronista
do infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um
sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a
partilha dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da
“Crónica dos Feitos de Guiné” para termos a certeza de que havia quem não
achasse justo semelhante degradação e o dissesse.
Aliás, sabemos
que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse.
O que
significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante de que Sagres é a metáfora,
passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes
de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença.
É uma luta
nossa, contemporânea.
Em Lagos, hoje em dia, está presente de outro modo a mensagem do cartoon de
Simon Kneebone, datado de 2014, que tem corrido mundo.
A cena é nossa
contemporânea. Passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas
defensivas, no alto da torre, está um tripulante que avista ao longe uma barca
frágil, rasa, carregada de migrantes.
O tripulante
da grande embarcação pergunta: de onde vêm vocês? Da lancha, apinhada, alguém
responde: vimos da terra.
Sugiro que os
jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros,
netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este
cartoon nas camisas quando vão ao mar.
Consta que em
pleno século XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana.
Essa população
não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E
nos miscigenámos.
O que
significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única
não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma.
Tem sangue do
nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas
as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o
escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia
até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.
A consciência
dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos
assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte.
Agora que
percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e
a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos
interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte.
A pergunta é
esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos,
éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina,
entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que
passará a ser um humano?
Comecei por
dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.
Regresso à sua
obra para procurar entender que conceito tinha a poeta sobre o que era um ser
humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de
todas as potestades conjugadas. A sua obra lírica é uma resposta a esse
abandono essencial.
Em
conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o canto I d’Os Lusíadas, Camões
define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos: “Onde pode
acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida/ Que não se arme, e
se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno”.
Nestes versos,
se reconhece o conceito renascentista, o da grande solidão do ser humano e a
sua luta estóica contra, centrada na confiança em si mesmo.
Mas, na
prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa que facilmente a
fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo nu de Camões só
teve um lençol, o oferecido, a separá-lo da terra. Igual à sorte do seu corpo,
essa sorte não difere daquela que mereceram os corpos dos escravos aqui em
Lagos.
Mas
entretanto, no século XIX, o direito à proteção beneficiada pelo Estado começou
a emergir. Criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos
cidadãos. Depois das duas guerras mundiais do século XX, foi redigida e
aprovada a Carta dos Direitos Humanos e, durante algumas décadas, foi tentado
implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que
ultimamente regride-se a cada dia que passa.
O conceito de
representatividade respeitável da figura do Chefe de Estado, oriundo do povo
grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a
que se juntou depois o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa
conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está
a ser subvertida.
A cultura
digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos
exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.
Um Chefe de
Estado de uma grande potência, durante um comício, pôde dizer: adoro-vos,
adoro os pouco instruídos. E os pouco instruídos aplaudiram.
Pergunto,
pois, qual é o conceito hoje em dia de ser humano? Como proteger esse valor que
até há pouco funcionava e não funciona mais?
Hoje, dia de
Portugal, de Camões e das comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer
ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano
respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à
expressão da sua liberdade de consciência?
Nós,
portugueses, não somos ricos. Somos pobres e injustos. Mas, ainda assim,
derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos
sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e criámos uma
comunidade de países de língua portuguesa. E fomos capazes de instaurar uma
democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz.
Assim sendo,
por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as incógnitas que nos
assaltam, sabemos que temos a força.
Leio Camões,
aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque se alguma
coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que
partilho da sua ideia, de que um ser humano é um ser de resistência e de
combate. É só preciso determinar a causa certa.
Muito
obrigada.”
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