- De onde tu és? - perguntou Deolinda.
- Sou da Guarda.
Ingénua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa:
- Tu és o meu anjo da guarda.
O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.
- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho - respondeu ele.
- Por eu ser preta?
- Tu não és preta.
- Aqui, sou.
- Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente ...
- Sei prevenir-me.
- É porquê, então?
- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.
- Que olhar é meu nos olhos teus?
Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.
- Amar - disse ele - é estar sempre chegando.
Um ano depois, sentado sobre um banco de pedra, o português sente estar ainda chegando a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias do encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse já chegado?
Lembrou os versos que ele próprio rabiscara na ausência de Deolinda: «Eu sou o viajante do deserto que, no regresso, diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, eu sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver.»
Na poesia, haveria oásis e desertos. Mas, em Vila Cacimba, havia apenas uma praça onde um médico estrangeiro se banhava nas lembranças de sua amada. É no meio dessa praça que esse médico aspira o ar fresco e sorri de satisfação: no seu país é outono e, àquela hora, ele estaria submerso entre o frio cinzento.
Esses são os pensamentos de Sidónio Rosa enquanto se dirige a casa dos Sozinhos. Desta vez, porém, não entra. Está um dia demasiado luminoso para ele se adentrar naquele escuro. Ronda a casa, em bicos de pés, e bate na janela do quarto de Bartolomeu. Ensonado, o rosto do velho, inquisitivo, enfrenta a claridade.
- Deixe a janela aberta que é para respirar este arzinho da manhã - convida o médico.
- É uma coisa boa desta nossa Vila: o ar aqui é muito abundante. Isto não é atmosfera. Isto aqui, caro Doutor, é artmosfera.
Passa por eles um grupo de mulheres que saúdam apenas o médico, evitando olhar para o velho sem camisa que se debruça sobre o parapeito da janela.
- Donas mal comidas - resmunga Bartolomeu.
As mulheres da Vila não gostam das manhãs. É o tempo em que os maridos saem de casa. Para Dona Munda sempre fora o oposto. Durante toda a vida aquela tinha sido a melhor parte do dia. A ausência de Bartolomeu só lhe trazia alívio. Agora, tudo se invertera. O marido era uma presença obsidiante, uma espécie de corcunda que pesava sem descanso sobre o seu dorso.
- Gosto de sentir a Vila, assim cedinho – disse o português. - Gosto de ver como se vai cobrindo de gente.
- Odeio gente - rosnou Bartolomeu.
- Não tarda que os passeios se encham de vendedeiras.
- Estes não são gente da Vila. Os que o senhor vê por aqui são os que ainda não saíram.
-Hoje está um dia límpido numa vila que se chama Cacimba. Porquê estragar esta luz, meu caro paciente?
- Eles não saíram da Vila. Eu não saí da Vida.
O médico olha o céu e abre os braços como se quisesse abraçar a imensidão. A intenção do gesto é clara: nada alterará o seu bom humor.
- Não quer mesmo entrar, Doutor?
O português argumenta que está de passagem, sem função profissional. O seu afazer, naquele dia, era apenas ser feliz.
- Eu tenho uma curiosidade muito impessoal diz Bartolomeu, após uma pausa.
- O que quer saber?
- Você não veio para A/rica apenas por causa de Deolinda.
- Então, foi porquê?
- Ninguém sai da sua terra só por causa de uma mulher. Você saiu por outro motivo.
- E porquê?
- Por exemplo, porque não era feliz.
Saímos para o estrangeiro quando a nossa terra já saiu de nós. Ele, Bartolomeu Sozinho, sabia disso, calejado que estava de remotos paradeiros.
- Eu não saí de Portugal. Apenas vim buscar uma mulher.
É assim que responde mas, de si para si, reconhece: na sua terra não era feliz. Mais grave ainda: ele não mais sabia o que era o desejo de ser feliz. Em Lisboa estava entre família, no meio de tanta gente conhecida. Quando saiu para África receou que passaria a sofrer de solidão. Todavia, agora sabia: há muito que estava só. Solitário entre parentes e conhecidos. Ou como diz Bartolomeu, há muito que Sidónio Rosa deixara de ter quem o abençoasse.
-Mundinha disse que o seu pai morreu aqui, em Africa. E verdade?
- É verdade - admitiu o português -, não me vai dizer que venho visitar o espírito dele.
- Os espíritos não se visitam. Nós é que somos visitados.
- De qualquer modo, o corpo do meu velho não mora aqui. Transladaram-no para a terra dele.
O pai de Sidónio tinha-se exilado pouco tempo depois de ele ter nascido. Acreditava estar a fugir do fascismo. Mas a ditadura era apenas a máscara daquilo que ele fugia. Escapava do vazio que está para além dos regimes políticos. Desse mesmo vazio estava fugindo, quarenta anos depois, Sidónio Rosa.
- Pois eu lhe digo: dói mais termos que fugir da democracia ...
- Isso não sei, eu fujo apenas da minha mulher, e já me chega por motivo.
Por outro lado, o reformado não se importava nada de fugir das Suacelências todas que pululavam no país. Desses, como ele diz, a quem o cu cresce mais que a cadeira.
- Noutro dia, você zangou-se comigo porque eu não o chamava pelo seu nome inteiro. Mas eu conheço o seu segredo.
- Não tenho segredos. Quem tem segredos são as mulheres.
- O seu nome é Tsotsi. Bartolomeu Tsotsi.
- Quem lhe contou isso? De certeza que foi o cabrão do Administrador.
Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro, foram os outros que lhe mudaram o nome, no batismo. Depois, quando pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha do seu nome original. Ele se colonizara a si mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho.
- Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?
- Ini nkabe dziua (1).
-Ah, o Doutor já anda a aprender a língua deles?
- Deles? Afinal, já não é a sua língua?
- Não sei, eu já nem sei. ; .
O português confessa sentir inveja de não ter duas línguas. E poder usar uma delas para perder o passado. E outra para ludibriar o presente.
- A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o sobrolho, confrangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.
- Quais fungos? - reage Bartolomeu. - Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só falo português ...
O riso degenera em tosse e o português se afasta, cauteloso, daquele foco contaminoso. Quase colide com Suacelência que acaba de cruzar a estrada. O Administrador vem esbaforido e cumprimenta, de forma esquiva, os presentes. Detém-se sob a janela, aproveita a sombra para enxugar meticulosamente o afogueado rosto.
- Então, Excelência - inquire o velho Sozinho - tão cedo e já anda a chatear as moscas?
- Que se passa, Suacelência? - pergunta o português, emendando a indelicadeza do seu paciente.
- A rapaziada da banda eleitoral - suspira, contendo uma emergente onda de fúria -, a rapaziada fugiu com os instrumentos.
- Mas isso é um bambúrrio de azar. Então os bandos roubaram-lhe a banda?
Ignorando o tom irónico da pergunta, o Administrador acena com gravidade. Não se tratava, segundo ele, de um simples furto. Aquilo era uma cabala política, manobra dos inimigos da Pátria.
- Um feiticeiro conhece todos os feiticeiros ... ironiza o velho Sozinho.
- Por que não me respeita, Bartolomeu? A mim que fiz tanto pelo país?
- O país preferia que o senhor não tivesse feito nada.
- Por que não gosta de mim?
- Eu gosto da minha terra, da minha gente. E o senhor gosta de quem?
Contudo, o Administrador já desandou, estrada fora, coxeando levemente. Bartolomeu e Sidónio ficam olhando a figura do dirigente desvanecer-se como se assistissem ao seu ocaso político.
- Sinto pena dele - admite o português.
- Pois eu estou-me merdando para o gajo - remata Bartolomeu.
Ri-se para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse que o deixa sem respirar.
- Puta de vida - diz -, não vivemos se não nos rimos e depois morremos por nos termos rido - e conclui, após recuperar fôlego: - O Doutor acha que sou uma anormalidade?
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
- Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
- Depende - responde o português.
- O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
-Sim.
- Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
- Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente lucidez, uma pausa na obrigação de existir.
- Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.
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[(') Ini nkabe dziua: expressão que significa «Eu não sei» (língua chisena]
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